XIII

A MONTANHA


(Impressões de viagem)

    


Em certos pontos de nossas regiões costeiras, o mar e a montanha se juntam, se fazem frente. Eles se opõem um ao outro; esta, a variedade de suas formas, na imobilidade silenciosa; aquele, o ruído, o movimento incessante, na uniformidade. De um lado, a agitação sem tréguas; do outro, a majestosa calma.


Compraz-se a Natureza nestes contrastes. Os montes, ora ásperos e nus, ora adornados de verdura, erigem-se acima dos vales profundos e dos vastos horizontes do mar; sítios graciosos ou austeros orlam a esteira azul dos lagos. Acima de todas as coisas, o Espaço se desenvolve e, no imo dos céus, os astros prosseguem em seu rumo eterno.


A obra é variada em seus menores detalhes; mas, dos elementos diversos que a compõem, destaca-se uma harmonia poderosa, em que se revela a arte do divino autor. O mesmo sucede no domínio moral. Inúmeras Almas existem, de aptidões infinitamente variadas: almas obscuras e brilhantes, nobres ou vulgares, tristes ou alegres, Almas de fé, Almas. De dúvida, Almas de gelo, Almas de fogo! Todas parecem misturar-se, confundir-se na imensa arena da vida. Dessas discordâncias aparentes, dessas atrações, desses contrastes, provêm as lutas, os conflitos, os ódios, os amores loucos, as felicidades inebriantes, as dores agudas. Mas, desse bracejar contínuo, certa mistura se produz; perpétuas trocas se efetuam; uma ordem crescente se origina. Os fragmentos das rocas e as pedras arrastadas pela torrente transformam-se, pouco a pouco, em calhaus redondos e polidos. O mesmo acontece com as Almas: chocadas, roladas pelo rio das existências, de grau em grau, de vida em vida encaminham-se na senda das perfeições.


*


A França é admiravelmente dotada no que respeita a montanhas. Estas cobrem um terço de sua superfície e, segundo as latitudes, segundo a intensidade da luz que banha seus cimos, elas oferecem aspectos e colorações de uma diversidade maravilhosa.


O nordeste, os Vosges, em suas rochas grés­vermelho sobressaindo do solo, os velhos robles suspensos, qual se fossem ninhos de águia na altura das nuvens, e os sombrios pinhais que alcatifam suas encostas.


No centro, o grande maciço vulcânico do Auvergne, com suas crateras invadidas pelas águas e suas longas “cheires” ou correntes de lavas espalhadas na base dos “puys”. Ao sul, está à sombria e fantástica região dos Causses, com suas gargantas estreitas, seus avermelhados rochedos, seus precipícios, seus rios subterrâneos.


Qual moldura a esse vasto quadro, uma série de montes se escalona de Franco­Condado ao Béarn. São as cadeias do Jura, dos Alpes saboianos, deifineses e provençais, as costas batidas pelo Sol, de mar azul, o Estérel e as Cévennes. Enfim, a alta muralha dos Pireneus, com seus picos dentilhados, seus circos sublimes, suas românticas solidões.


Todas essas montanhas de França são para mim familiares. Tenho-as percorrido várias vezes. Posso dizer que constitui uma das raras felicidades de minha vida saborear lhes as inebriantes belezas. A montanha é meu templo! Ali nos sentimos mais longe das vulgaridades deste mundo, mais próximo do céu, mais perto de Deus!


Com o imprevisto dessas mutações à vista e a expansão desses fantásticos espetáculos: cimos nervosos, geleiras ofuscantes, desfiladeiros formidáveis, grotas, quebradas sombrias, prados, lagos, torrentes, cascatas, a montanha é fonte inesgotável de impressões fortes, de sensações elevadas, de ensinamentos fecundos.


Como é bom, pela fresca da madrugada,' inteiramente impregnada dos aromas penetrantes da noite, escalar os declives, com o cajado pontudo na mão, o saco de provisões ao ombro! Em volta, tudo é calma; a terra exala essa paz serena que retempera os corações e os penetra de uma alegria íntima. O atalho é tão gracioso em seus contornos, a floresta tão cheia de sombras e de misteriosa doçura!


À medida que subimos, a perspectiva se alarga, soberbas escarpas se abrem ao longe, nas planícies. Os povoados mostram suas manchas brancas na verdura, entre as messes, as charnecas, os bosques. A água das lagoas e dos rios brilha qual o aço polido. Em breve, a vegetação se faz rara, o atalho se torna mais abrupto e se atravanca de troncos de árvores e de blocos esparsos. Por toda parte, aparecem os jardins das altitudes: a arnica de flores amarelas, os rododentros, as saxífragas, as Ísis azuis e brancas. Aromas balsâmicos flutuam no ar. Por toda parte, águas que jorram em límpidas fontes. Seu murmúrio enche a montanha de agradável sinfonia.


Estendido sobre a relva, quantas horas tenho passado a ouvir o cristalino marulhar das fontes entre as rochas, a voz da torrente que se eleva no grande silêncio! Tudo se idealiza nestas alturas. Os falares longínquos e os cânticos melancólicos dos pastores, o tinir das campainhas dos rebanhos, o ronco das águas subterrâneas, a queixa dos ventos nas frondes, tudo se torna melodia. Mas eis a tempestade; à sua voz possante tudo se cala!...


Amo tudo da montanha: seus dias de sol, cheios de eflúvios e de raios, e suas noites serenas, sob milhões de estrelas que cintilam em maior força e parecem mais perto. Amo até suas tempestades e os clarões dos raios sobre os alcantis.


A tormenta passou. A Natureza retomou seu ar de festa. Por toda parte se escuta o rangido dos gafanhotos e o matraquear dos grilos. Insetos de todas as formas e de todas as cores manifestam, a seu modo, a alegria de viver, inebriando-se de ar e de luz.


Mais abaixo, na floresta profunda, na floresta encantada, o concerto dos seres e das coisas, que domina o ciciar do vento nas ramagens; cânticos de pássaros, zumbidos de insetos, melopéias dos regatos, das fontes e das cascatinhas, tudo isso nos arrebata, nos envolve em um encanto indefinível, irresistível.


Retomemos nossa marcha: ainda alguns esforços, cansados, e atingimos o cimo. Mas que compensação ao nosso trabalho! Um panorama esplêndido se manifesta, uma decoração incomparável se revela subitamente, espetáculo que ofusca o olhar e enche a alma de religiosa emoção.


Cimos, sempre cimos, eretos na glória da alva. No fundo do horizonte, picos solenes se alinham, brancos de neve, com suas geleiras que o Sol faz brilhar, feitas toalhas de prata. Entre seus enormes cabeços, cavam-se desfiladeiros selvagens nos quais se abrem vales agradáveis. Para o lado do norte, a cadeia se abaixa em ondulações suaves, dando lugar à planície sem-fim. Os últimos contrafortes estão Cobertos de bonitos bosques, de frescos prados, de aldeias pitorescas. Além, desenrolam-se, sem limites, os tapetes verde-e-ouro dos campos, dos prados, das campinas, um xadrez de culturas, uma variedade de tons e de cores, que se fundem em um longínquo vaporoso. Mais longe ainda, o mar imenso resplandece sob o infinito azul.


O tempo escoa rápido nessas alturas. Em breve, é preciso pensar na volta. Lentamente, o Sol declina; os vales enchem-se de sombra. Já as silhuetas negras dos grandes picos erigem no céu, onde se acendem os fogos estelares. A voz da torrente se eleva, mais alta e mais grave, na paz da tarde. Os rebanhos voltam, reunidos pelos pastores, sob o olhar vigilante dos cães. Os sinos tangem, argentinos, convidando ao repouso, ao sono. As luzes extinguem-se, uma a uma, no vale. E minha alma, embalada pelas harmonias da montanha, dirige uma ardente homenagem ao Deus potente, ao Deus criador!


*


Moços que me ledes, meu pensamento vai até vós, num transporte fraternal, dizer-vos: — Aprendei a amar a montanha. É o livro por excelência, diante do qual todo livro humano é pequeno. Folheando suas páginas grandiosas, mil vezes recônditas vos aparecerão mil revelações que não suspeitais. Colhereis alegrias preciosas, que enriquecerão vossa Alma, purificando-a. Aprendei a ver, a ler, a ouvir. Enchei vossos olhos e vossos corações dessas paisagens agrestes e encantadoras. Penetrai-lhes a graça e a força, a severidade e a doçura. Alternativamente, a árvore antiga e venerável, a torrente ruidosa e o cimo altaneiro dar-vos-ão lições sublimes, que ficarão gravadas para sempre em vossa memória e acalentarão mais tarde, com doces recordações, as tardes tristes e escuras de vosso declínio. Sabei compreender lhes a linguagem. Suas vozes unidas compõem o hino de adoração que os seres e as coisas cantam ao Eterno.


A montanha é uma bíblia, dizíamos, cujas páginas apresentam um sentido oculto, um sentido profundo. Em suas camadas rochosas, enrugadas, revolvidas pelos abalos plutônicos, podeis ler a gênese do globo, as grandes epopéias da história do mundo, antes da aparição do homem. Os movimentos da crosta terrestre, escritos ao redor de vós, em caracteres formidáveis, vos mostrarão a ação das forças combinadas, criando vossa morada comum. Depois, será o lento trabalho das águas, gota a gota, cavando os círculos e as gargantas, esculpindo os colossos de granito. Finalmente, virá o estudo da flora e da fauna em sua diversidade sem limites.


Os empuxos eruptivos, as correntes resfriadas e os pórfiros gigantescos dir-vos-ão dos esforços da massa esbraseada levantando as cadeias em jorros agudos ou em zimbórios arredondados. Os vulcões são os orifícios respiratórios da Terra. Acima, sentem-se muito bem a circulação violenta, o empuxo da seiva e da vida que, sem esses exutórios, abaferiam o solo, quebrariam a crosta planetária. As fontes quentes nos demonstram que as entranhas do globo encerram ainda a vida ardente, crepitante, prestes a jorrar, e que a ação do enorme e tenebroso ciclope é sempre possível.


Do foco central, do fundo do abismo, sobem à superfície as forças expansivas que transformam os elementos, liquefazendo-os e carregando-os de eletricidades desconhecidas em seu transporte para o Sol, cujas irradiações os solicitam e os atraem através do espaço.


E o laboratório onde se trabalha a grande obra, a preparação do teatro em que se representarão os dramas da vida.


Para todos aqueles que a sabem amar e compreender, a montanha é uma longa e profunda iniciação.


*


A flor abre ás carícias do Sol e das lágrimas do rocio; de igual modo a Alma se expande sob a influência radiosa da grande Natureza. Sob essas poderosas impressões, tudo nela se comove e vibra. Ela ora, e sua prece é um grito de reconhecimento e de amor. Da prece, passa à contemplação, essa forma Superior do pensamento, onde se infunde misteriosamente em nosso imo o sentido augusto, o sentido divino da obra universal.


Mas a contemplação não basta. A verdadeira vida é a ação; a lei nos impõe a luta e a provação; somente por elas adquire méritos. Nossos deveres e nossa tarefa cotidiana nos absorvem, nos retêm longe das fontes puras do pensamento. Eis por que é bom, é salutar, voltarmo-nos, de tempos a tempos, para a Natureza, a haurir forças e inspirações. Quem quer que a desconheça ou a ignore, padece, diminui-se. Aos que a amam, ela comunica, em compensação, o socorro moral, o viático necessário para marchar através dos abrolhos e das brumas da vida, para o fim supremo, luminoso, longínquo.


De igual modo que o mar, e mais do que ele ainda, a montanha é paciente, fortificadora. Possui um princípio regenerador, que dá a calma aos nervos, a saúde aos degenerados, um meio de levantamento para a débil Humanidade.


Na montanha, as agitações febris, as preocupações da vida fictícia e acabrunhadora das cidades esvaem-se para dar lugar a um modo de existência mais simples, mais natural.


A altitude é uma escola de energia para aqueles que a cidade não enfraqueceu de todo.


As vastas perspectivas aguçam a vista. Os pulmões se dilatam ao ar puro dos cimos. Os obstáculos estimulam nossos esforços; a ascensão e a escalada nos dão músculos de aço. Ao mesmo tempo em que as forças físicas se desenvolvem, as potências intelectuais se reconstituem, as vontades se retemperam. Ficamos habituados a agir, a vencer, a desprezar a morte.


A razão disso está em que à montanha tem seus perigos. Seus atalhos são escarpados, seus precipícios aterradores. A vertigem nos espia nas alturas. O vento aí é áspero em certos dias, e o raio retumba frequentemente. Ou então são as brumas repentinas que nos envolvem e nos escondem o perigo. Às vezes, é preciso caminhar sobre estreitas cornijas, entre o abismo e a avalancha, evitar as aberturas escancaradas das geleiras, descer os declives escorregadios que terminam nos sorvedouros.


No correr das minhas excursões, ouvi frequentemente troar, de eco em eco, o pesado ruído das quedas de pedras e de massas de neve. Em certo recanto selvagem dos montes, em certa quebrada solitária, nós nos encontramos, repentinamente, em presença de cruzes que marcam o lugar onde muitos viajantes pereceram. Em compensação, há também lá, no alto, todas as ebriedades, todas as harmonias da luz e os encantos que as planícies não conhecem. Percebe-se aí a sinfonia universal e misteriosa dos ruídos, dos perfumes, das cores, a íntima e doce música das brisas e das águas. Ali se goza melhor a melancolia das tardes, quando o aroma dos prados e dos bosques sobe do seio dos vales até aos cimos. Então, a Alma do homem rompe os laços que o encadeiam à carne, e paira no éter sutil. Goza ele, nesse instante, de êxtases quase divinos.


Não é sem razão que os fatos mais consideráveis da história religiosa se têm passado sobre os cimos. O Merom, o Gaya  (XXVII)  , o Sinai, o Nebo, o Tabor e o Calvário são os altares soberbos de onde sobe, em poderoso transporte, a prece dos iniciadores. Nas almas de escol, a majestade dos grandes espetáculos desperta os sentidos íntimos, as faculdades psíquicas, e a comunhão com o Invisível se estabelece. Mas, em graus diversos, quase todos sentimos essa influência. Nesses momentos, o que há de artificial ou de vulgar, em nossa existência, desaparece para dar lugar a impressões sobre­humanas.


E qual clareira que se abre no meio de nossas trevas, através das densas fumaradas que nos escondem habitualmente o céu e asfixiam as mais belas inteligências. Em um instante percebemos o mundo superior, celeste, infinito. Então, as irradiações do pensamento divino descem, qual benéfico orvalho, à maravilhada Alma.


Longe dos preconceitos e das rotinas sociais, a Alma se expande livremente; encontra o seu gênio peculiar: o “awen” dos druidas. Suas seguras intuições lhe dizem que todos os sistemas são estéreis e que somente a grande mãe natureza, o grande livro vivo, nos pode ensinar a verdade e a beleza perfeitas. Nas horas de recolhimento profundo, seja quando o Sol lança a prodigalidade de sua púrpura sobre a assembléia dos montes, seja quando a Lua derrama sua luz argêntea no meio do silêncio formidável, um diálogo solene se estabelece entre a Alma e Deus.


Esses grandes pousos da vida são indispensáveis para que nos retemperemos, nos reconheçamos, para que possamos ver o fim supremo e nos orientemos, em passo seguro, para esse fim. Então, à semelhança dos profetas, descemos dos cimos, engrandecidos, iluminados de uma claridade interior.


Aos apelos do meu pensamento, as recordações despertam em multidão. Eis nos Pireneus, em ascensão ao, pico de Ger, perto de Eaux¬ Bonnes. Para atingir a plataforma rochosa, espécie de mirante que constitui o cimo, é preciso empoleirarmo-nos sobre uma aresta, aguda qual lâmina de navalha, de cinquenta metros de comprimento, acima de um vertiginoso abismo profundo de dois mil pés! Mas, dali, que vista! Toda a cadeia central se desdobra, desde os montes Malditos até o pico de Anie, cujo negro cimo emerge de um mar de nuvens, qual ilha do seio do oceano.


A atmosfera é tão límpida, tão pura, que se distinguem os contornos dos montes mais longínquos. O Vignemale, o grupo dos grandes picos do Bigorre, com suas finas arestas, suas cores de geleiras, suas neves imaculadas, erigem-se quais brancos fantasmas sob a ardente luz do meio-dia. Graças à transparência do ar, os picos espanhóis, situados para além de cem quilômetros, mostram-se com tanta nitidez, que se poderia supor estarem próximos.


Eu os torno a ver, como se fosse ontem, esses cimos grandiosos, dominando linhas de cristal que se sucedem até ao fundo do horizonte: o enorme Baleitous e, além, em uma aberta, o sombrio Monte­Perdido. Mais próximo, as formas familiares do Monné, do Gabizos, os pilones do Marboré, a brecha de Roland, velhos conhecidos que saúdo, de longe, com prazer.


Serenidade inalterável envolve esta assembléia de gigantes, reunida em um conciliábulo eterno. No primeiro plano, o pico granítico de Ossau, solitário e feroz, continua seu sonho de cem séculos.


Mais longe, esses cabeços avermelhados que se escalam para o sul pertencem à vertente espanhola, áspera, devorada pelo Sol, mas rica de colorido! Dessa vertente, explorei muitas vezes os circos selvagens, tão pouco conhecidos e de tão difícil acesso, as gargantas, despenhadeiros onde se precipitam torrentes invisíveis, que conseguiram cavar um leito subterrâneo no meio de um caos infernal. E que atalhos, cortados em forma de cornija nos flancos das paredes a pique! Aos nossos pés, abre-se o abismo, a muitas centenas de metros; sobre nossas cabeças, o abutre, de vorazes apetites, descreve grandes círculos. Entre essas cristas recortadas, alonga-se o Bramatuero, corredor sinistro, cortado de nevadas e lagos gelados, aonde um padre italiano, que ia para Lourdes, foi assassinado, alguns dias antes da minha passagem. Mais adiante, escondido no fundo de um circo em forma de funil, de paredes abruptas e desornadas, Panticosa, estação terminal espanhola. O sítio é triste; por toda parte, do fundo das gargantas, eleva-se o estrondo das águas, semelhante aos rumores de uma tropa em marcha ou ao rodar surdo dos carros.


Voltemos ao pico do Ger. Sobre a geleira vizinha, um guia me faz notar um ponto negro imóvel, que eu tomo por um rochedo. Mas a seus gritos, 0 objeto se desloca, move, escapole lentamente. Era um animal. Os gritos do guia despertaram os ecos da montanha. De todos os recantos do solo, das quebradas selvagens e das gargantas estreitas saem milhares de vozes. Dir-se-ia uma legião de duendes, de gnomos, de Espíritos escarninhos. O efeito é surpreendente.


Lancemos um último e demorado olhar sobre esse panorama esplêndido. Sob a cúpula azulada, as altas montanhas se tingem de tintas fundidas, de pureza e de riqueza incomparáveis. O sol do Meio-dia derrama sobre elas uma profusão de claridade, um jorro de luz dourada, que aumenta ainda o prestígio de suas formas fantásticas, atormentadas. Um mundo inteiro de torres, de agulhas, de picos canelados, de zimbórios, de campanários, de pirâmides, se levanta sob o céu, amontoado gigantesco de linhas, ora rudes e ásperas, ora arredondadas pelo rude trabalho das águas. Depois, aqui e ali, no intervalo, altas pastagens verdejantes, semeadas de currais, de onde sobem, em estreitos fios, fumos azulados; percebem-se as espessas florestas que bordam a fronteira, cascatas cintilantes, lagos tranquilos, risonhos prados e planaltos gelados, tristes, desertos de cascalhos e entulho, ruínas de montanhas derruídas.


Diante desse espetáculo, todas as impressões se fundem na sensação do imenso. É um esplendor de formas, de aspectos e de cores que não se podem descrever com as pálidas palavras da linguagem terrestre. O homem se reconhece bem pequeno; todas as suas obras lhe parecem efêmeras e miseráveis em face de tais colossos. Que estes se agitem somente, levantando os ombros, e todo trabalho humano desaparece, desmoronando-se. Mas a Alma se engrandece pelo pensamento. Um mundo de intuições e de sonhos desperta. Ela sente que estes espetáculos são um simples antegozo das maravilhas que o destino lhe reserva em sua ascensão eterna, de orbe em orbe, na sucessão dos tempos e dos mundos siderais.


O Universo inteiro se reflete em nós outros qual em um espelho. O mundo invisível, por transmissão, não percebida, liga¬se ao mundo visível. Em cima, reina a lei de harmonia que rege ambos. A Alma, em sua contemplação, projetada para além de si própria, exteriorizada de alguma sorte, penetra-os e abraça-os. Em um momento, sentiu passar por si o grande frêmito do Infinito; comungou com o Pensamento Supremo; compreendeu que este só criou os mundos para que servissem de degraus às ascensões do Espírito.


*


Certa tarde de julho, no curso de um passeio solitário nos arredores de Eaux¬ Bonnes, perdi-me na montanha, cheia de bosques, de Gourzy. Tendo vindo à noite, e tornando-se impossível à volta pelas sendas escarpadas que eu tinha percorrido, tive de resignar-me a esperar que o dia retornasse, e descansei num leito de relva improvisado. Essa noite deixou em minha memória uma recordação cheia de encanto e poesia penetrantes. Quantas impressões recolhidas! Eu ouvia os gemidos, os apelos dos hóspedes dos bosques: a raposa, o galo das charnecas, o grande mocho das montanhas, de grito quase humano. A vida rodava em volta de mim, misteriosa; eu lhe percebia os rumores, as palpitações ligeiras.


Em uma touceira, a certa distância, iluminação estranha atrai a minha atenção; aproximo-me: é uma assembléia de pirilampos; suas pequenas lanternas verdes constelam as ramadas, enquanto no céu outras luminárias mais poderosas resplandecem acima de minha cabeça. Posso acompanhar com os olhos, durante essa noite, todo o desfilar do exército celeste. Depois, com a marcha solene das estrelas, o levantar da Lua, cuja tremulas claridade passa através da folhagem e vem brincar entre os musgos e os fetos. Nenhum pensamento de temor perturba minha alma. Sinto-me cercado de beatitude inexprimível. A grande voz da torrente retine no silêncio da noite, entretendo-me com coisas graves e profundas. Que a diz? Diz a aspiração para o divino, conta a imortalidade, a participação de todos os seres segundo suas forças, na obra imensa, na potente harmonia do mundo. Ela diz: “Observa meu curso; é a imagem do teu destino. Agora fujo, torrente impetuosa, por entre os blocos atormentados. Minha onda rola em cascatas ou se quebra em espumas; mais tarde, porém, tornar-me-ei o largo rio, cortado de ilhas, que correrá calmo, imponente, através da esmeralda dos prados, sob a opala do céu”. Eis o que diz a voz solene, soberba de grandeza e de eloquência, enquanto contemplo os céus.


Lá em cima, outros problemas me atraem. Para onde vão esses mundos inumeráveis? Em virtude de que forças se movem, se procuram no seio do insondável abismo? Sempre, no fundo de tudo, surge o pensamento de Deus, energia eterna, eterno amor! A mão que dirige os astros na extensão, escreveu ali um nome, em letras de fogo! Todos esses mundos conhecem seu trilho, sua missão sagrada; prosseguem infalivelmente. Sabem que representam um papel no plano divino, e a este se associam estreitamente. Todo o segredo da Natureza está nisso. Os mares, as florestas e as montanhas não dizem outra coisa. A Via Láctea, que desenrola através do Espaço sua poeira de mundos; os cedros gigantescos, que estendem seus longos ramos acima dos precipícios; a flor, que se expande aos beijos do Sol; tudo nos murmura: É a Ele que devemos o ser; é por Ele que vivemos e morremos!


Sim, está ali o santuário em que a Alma se abre e se expande à visão do grande céu e de Deus, autor de sua ordem e sublime beleza. É aquele o templo da religião eterna e viva, cuja inelutável lei está escrita nas frontes das noites estreladas e nas profundezas da consciência humana!


Mas eis a alvorada, o majestoso levantar do Sol sobre os cimos longínquos. Qual esfera de metal incandescente, o astro rei sobe no horizonte. A princípio, os cimos dentados dos picos flamejam na luz renascente, e, de igual modo que na tarde anterior, a tinha subido rapidamente em volta de mim, enquanto a sombra descia com igual velocidade. Como se um véu se tivesse rasgado, todas as minúcias da floresta, as altas ramarias, as escarpas abruptas dos rochedos e as sinuosidades do caminho se iluminam. Admirável prestígio da cor! Em um instante tudo se anima, freme, palpita; o céu e a terra vibram em largo estremecimento. Acima da garganta estreita onde canta a torrente, a negra silhueta do pico de Ossau se desenha nitidamente. E retomo o caminho do hotel, bendizendo as circunstâncias que me permitiram gozar tais espetáculos.


*


Outras impressões me esperavam nos Alpes. Poder-se-ia dizer com razão que os Pireneus, por suas formas esbeltas, arrojadas, elegantes, representam o tipo feminino da montanha. Eles têm frequentemente o encanto e a graça da mulher. Um véu ligeiramente adorna suas frontes soberbas. Outras vezes, jorros de luz os transfiguram, transformando-os em montanhas fadas.


Os Alpes, com suas formas maciças, sua potente ossatura, lembram de preferência o tipo masculino.


Eles simbolizam a força, a duração, a grandeza austera, parecendo os marcos gigantescos que determinam as fronteiras do Tempo e da Eternidade.


Quando se contempla pela primeira vez o Monte Branco, esse gigante solitário cujo cimo domina a Europa, sente-se o homem como que esmagado diante dessa imensa brancura semelhante a um sudário. Com efeito, sua aparência é a da morte. Entretanto, sob esse manto de gelo, esconde¬-se uma vida sempre ativa, quente, fulgurante, que se manifesta e difunde pelas fontes ferventes de Saint¬ Gervais.


Adicionai as cinquenta léguas de geleiras que coroam os Alpes, seus vastos reservatórios subterrâneos, que dão nascimento aos maiores rios do Ocidente, vertendo a fecundidade sobre tantas planícies, e tereis um aspecto de tal cadeia formidável.


No maciço do Oisans, a sensação não é menos viva que no Monte -Branco. Do belvedere da Tête¬ de¬ Meie, vê-se alevantar uma floresta inteira de picos e de agulhas, um rendado completo de granito. No dia em que subi, as geleiras resplandeciam, fundindo-se lentamente sob os ardores do Sol; de toda parte, jorravam as torrentes e as cascatas. A passagem das águas, engolfando-se no solo, produzia um ruído surdo, que variava de hora em hora, segundo o volume da massa líquida. Ao redor de mim, o deserto; tão longe quanto à vista pudesse alcançar, nem um ente humano. O silêncio impressionante das alturas me envolve. Não se ouve senão o murmúrio das águas e as queixas do vento que agita as ervas e as florinhas alpestres. Uma flora maravilhosa se ostenta nessas alturas. Eis a edelweiss e a agrinete de haste frágil. Campânulas balançam suas graciosas campainhas. Mais longe, é a genciana azul, bordada de negro, tão altiva em suas atitudes, a soberba anêmona amarela, tão apreciada pelos botânicos. Depois, é a dafne, a orquídea, digitalis, vinte espécies de que ignoro os nomes; em uma palavra, todo um pequeno mundo vegetal se expande sob este céu de fogo. O ar se embalsama.


Fechando o horizonte, o Meije, esse terrível “comedor de homens”, mostra seus contrafortes potentes, coroados por um diadema de neve e de gelo. O Pelvoux, o Barra dos Escrínios, outros cimos ainda, erigem-se qual família de titãs disposta em semicírculo.


*


Eis na Grande Chartreuse. Passei muitos dias neste asilo de paz e de recolhimento. Explorei¬lhe os arredores, passeando sob as abóbadas sombrias da floresta que o encerra, escutando a canção das torrentes, os grandes órgãos dos ventos nas ramadas, as vozes longínquas dos pastores e dos lenhadores. Os sons do sino do mosteiro me chegavam às asas da brisa; suas vibrações, em ondas sonoras, iam morrer e renascer, e depois perder-se no fundo das gargantas e nas encostas das montanhas. De todos os lados a, vista é limitada por grandes cimos calvos, ásperos, nus, batidos pelas tempestades. Mas o pensamento do Absoluto, do Infinito, envolve estes montes, e o olhar de Deus pousa por sobre todas as coisas.


No grande silêncio do claustro, ressoam lentamente as horas no relógio. Quantas Almas sacudidas pelas tempestades da vida têm vindo buscar ali o repouso e o esquecimento! Essa mística cristã, que as atraía, tem profundezas de abismos que fascinam. Sem dúvida ela se perde em muitos pontos e se afasta das realidades invisíveis. Cria no cérebro do crente todo um mundo de ilusões, de quimeras supersticiosas impostas pela tirania dos dogmatistas. Entretanto, ela não é sem beleza. Nas épocas de ferro e de sangue, a vida monástica era o único refúgio para uma Alma delicada e estudiosa. Mesmo nos tempos modernos, podia ser, até certo ponto, um meio de encaminhamento para as coisas superiores, uma preparação para o Além. Eis por que, desse santuário alpestres, irradiam sobre todo o país benéficas influências. Já há algum tempo, os monges desapareceram, a Charteuse foi abandonada; o sítio perdeu seu prestígio religioso.


Da tribuna reservada aos visitantes, assisti ao ofício da meia-noite. Três fracas luzes espaçadas na nave da capela esbatem sozinhas a obscuridade profunda. Os chartreuses chegam, um a um, munidos de pequena lanterna e ganham suas cadeiras. Os salmos começam: invocações, gritos de chamamento de Almas em sofrimento: Deus in adjutorium meum intende! “Meu Deus, vinde em meu socorro! Senhor, apressai-vos, eu sucumbo!”


Esta lamentação do velho Job, que atravessou os séculos, parece resumir toda a dor humana. É a queixa dos corações partidos, de todos aqueles que se desatam desta Terra de provações, em que não vêem mais que desesperança, abandono, exílio, para buscar, no seio do Pai, auxílio, consolação.


Esses monges austeros, que deixam o duro grabato para se unirem em pensamento à Humanidade sofredora, esses cânticos de tristeza pungente, que retinem 'à hora em que todos repousam, tudo isso é comovente.


Os salmos se sucedem, em um ritmo lento, grave, solene. Dessas notas melancólicas, frequentemente monótonas, sobressai, de tempos a tempos, um grito de amor, verdadeira flor da Alma que, desse oceano de misérias humanas, sobe até ao céu para implorar ao Criador. Dentro em pouco, as frases salmódicas cessam. Na penumbra da bancada, os religiosos prostrados parecem imergidos em profunda meditação. Enfim, irrompe o último apelo de David em sua penitência, último soluço da Humanidade aflita, que um raio de esperança ilumina e aquece: De profundas clamava ad te Domine, exaudi vocem meam. “Das profundezas da minha dor gritei por ti, Senhor, ouve a minha prece!”.


O cemitério do convento é de aspecto. Lúgubre. Nenhuma laje, nenhuma inscrição determina as sepulturas. Na fossa aberta, deposita-se simplesmente o copo do monge, revestido de seu hábito e estirado sobre uma tábua, sem esquife; depois, cobrem-no de terra. Nenhum outro sinal, além de uma cruz, designa a sepultura desse passageiro da vida, desse hóspede do silêncio, do qual ninguém, à exceção do prior, saberá o nome verdadeiro!


Será a primeira vez que percorro estes longos corredores e estes claustros solitários? Não! Quando sondo o meu passado, sinto estremecer em mim a misteriosa cadeia que liga minha personalidade atual à dos séculos escoados. Sei que entre os despojos que ali jazem, nesse cemitério, há um que meu Espírito animou. Possuo um terrível privilégio, o de conhecer minhas existências passadas. Uma delas acabou nesses lugares. Depois dos cinco lustros de lutas da epopéia napoleônica, nas quais o destino me havia imergido, exausto de tudo, afrontado pela vista do sangue e do fumo de tantas batalhas, aqui vim buscar a paz profunda. Na série de vidas sucessivas, uma existência monástica pode ser útil, pois nos ensina à renúncia das coisas mundanas, a concentração do pensamento, a austeridade dos costumes. No claustro, o Espírito se liberta de sugestões materiais e se abre às visões divinas!


Seria bom que todas as Almas descidas à carne conservassem a lembrança de suas anterioridades?


Não penso assim. Deus agiu sabiamente velando aos nossos olhos, ao menos durante a difícil passagem pela vida terrestre, às cenas trágicas, os desfalecimentos, os erros funestos de nossa própria história. Nosso presente fica, assim, aliviado; a tarefa atual torna¬-se mais fácil. Chegará sempre, à nossa volta para o Espaço, tempo de ver alçarem-se diante de nós os fantasmas acusadores. Sem dúvida, muitos não terão que temer semelhante quadro. Que a paz esteja em seus Espíritos! Quanto a mim, sei uma coisa: quando deixar a Terra para voltar ao Além, as vozes do passado elevar-se-ão e gritarão contra mim, porque fui culpado, e o sangue enrubesceu minhas mãos. Mas, as Almas que eu pude esclarecer e consolar, nesta vida, levantar-se-ão também, eu o espero, para falar em meu favor, e o julgamento supremo a meu respeito será, assim, atenuado.


    

Nota(s)  Capítulo XIII

    


XXVII


Montanha da índia onde o Buda recebeu sua revelação.