XII

O MAR

    


Do tombadilho do navio que me conduz, contemplo a imensidade das águas. Até os confins do firmamento, o mar expõe sua toalha móvel, faiscante aos fogos do dia. Nem uma nuvem, nem um sopro. O sol do meio-dia acende fugitivos relâmpagos na crista das vagas. Sobre esse vasto espelho, sua luz se expande em esbatidos delicados, em arrepios instáveis. Ela envolve as ilhas, os cabos e as praias de uma leve claridade; adoça o horizonte, idealiza lhe as perspectivas longínquas. Os raros passageiros dormem a sesta; o tombadilho está deserto. O silêncio só é perturbado pelo ruído da hélice e pelo cântico das vagas que acariciam brandamente o casco do navio. Por toda parte, em volta, reina profunda paz. Em parte alguma sentiu tal impressão de repouso. É como que uma pacificação, uma serenidade, um desprendimento de tudo, o esquecimento das miseráveis agitações humanas, uma dilatação da Alma, uma espécie de volúpia de viver, e de saber que se viverá sempre, a sensação de ser imperecível qual esse infinito da Terra e do Céu.


As costas douradas da Provença parecem fugir; a proa do paquete, orientado para a África, fende as águas azuis. O Mediterrâneo é encantador sob o céu azulado; mas, todos os mares têm o seu prestígio e beleza, quer em seus dias de cólera e de desencadeamento furioso, com a comovente fascinação das vagas espumosas, quer nas horas de calma, com o esplendor de seus sóis poentes. Seus horizontes sem limites levam a Alma à contemplação das coisas eternas e aos sonhos divinos. Quase todos os marinheiros são idealistas e crentes.


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Nossas costas de França são banhadas por dois mares. O Mediterrâneo é belo pela harmonia dos contornos, pela limpidez da atmosfera, pela riqueza de seu colorido. O Oceano é imponente em seus tumultos, e assim em seus recolhimentos, com as grandes vagas que varrem as areias duas vezes por dia, seu céu agitado, muitas vezes sombreado, e seu grande sopro purificador. É principalmente dos altos promontórios armoricanos que o Oceano é majestoso de ver, nas horas de furor, quando a vaga se precipita, roncando sobre os recifes, mugindo nas enseadas profundas e secretas, ou rolando, a estrondear, na sombra das cavernas talhadas na rocha. O queixume do mar tem qualquer coisa de penetrante, de solene, que torna a solidão mais triste, mais impressionante. O grito dos maçaricos, dos guinchos, das gaivotas, que voam girando no meio da tempestade, aumenta a desolação da cena. Toda a costa se torna branca de espuma. Aos pés do observador, o solo treme a cada embate surdo da vaga.


Do cabo da Cabra, do Raz de Sein, da ponta de Pernmarch, o espetáculo tem o mesmo caráter de grandeza épica e selvagem. Por toda parte, montões de rochas enegrecidas prolongam o continente, assim como outros tantos fragmentos arrancados à ossatura do globo pelo furor das águas. Longas filas de destroços estendem-se, testemunhando combates seculares que a onda empreende contra o áspero granito. É um cais formidável, em que os elementos desencadeados turbilhonam e se precipitam na terra, que geme sob esses golpes redobrados.


O mar acalmou; o vento se apaziguou. A noite desceu e os cintilamentos de estrelas se acendem no azul profundo do céu. Os faróis brilham com eclipses e iluminam as sendas do largo. O silêncio se faz, perturbado somente pela grande melopéia do Oceano, que se eleva grave, contínua, semelhante a uma salmodia, a uma encantação. Que a diz? Igual a todas as harmonias da Natureza, fala da Causa suprema, da obra imensa e divina. Lembra-nos quanto o homem é pequeno por sua forma material, diante da majestade das águas e do céu; quanto é grande por sua Alma, que pode abarcar todas as coisas, saborear lhe as belezas, desenvolverem os seus ensinamentos.


Que homem não experimentou esse sentimento misterioso, que nos retém, contemplativo e sonhador, diante do espetáculo do mar? Em alguns, segundo o grau de evolução, é uma espécie de estupor admirativo, misturado de temor; em outros, é uma comunhão íntima e muda que os invade de modo completo.


Cada elemento manifesta o seu modo os segredos de sua vida profunda. A Alma humana, por seus sentidos interiores, percebe essa linguagem. As coisas tendem para nós outros, sem nunca nos atingirem. Nossa Alma vai para as coisas, sem conseguir penetrá-las completamente, mas delas se aproxima bastante para sentir o parentesco que nos reúne. Daí, entre a Natureza e nós outros, laços, relações múltiplas e ocultas. Essa fusão com a alma Universal se traduz por uma embriaguez de vida que nos penetra por todos os poros, embriaguez que a palavra não poderia exprimir. O mar, e assim a montanha, agem sobre a nossa vida psíquica, nossos sentimentos e pensamentos e, por essa comunhão íntima, a dualidade da Matéria e do Espírito cessa um instante, para se fundir na grande unidade que tudo gerou. Sentimo-nos associados às forças imensas do Universo, destinados, seres e forças, a representar, de maneira diversa, um papel nesse vasto teatro.


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O mar é um grande regenerador. Sem ele, a terra seria estéril e infecunda; em seu seio se elaboram as chuvas benéficas; todo o sistema de irrigação do globo a ele deve o nascimento. Sua efusão de vida é sem limites. Esta grande força salutar, embora áspera e selvagem, atenua nossas fraquezas físicas e morais. Pelo perpétuo perigo que apresenta, o mar é uma escola de heroísmo. Comunica ao homem suas energias; dá-lhe o pensamento, o caráter, esse modo sério, recolhido, esse conselho particular de calma e de gravidade que caracteriza as populações costeiras. Com seus sopros vivificantes, tempera ao mesmo tempo os corpos e as vontades; proporciona a tolerância e o vigor. Por isso, têm seus fiéis, seus amantes, seus devotos. Apesar de suas cóleras, revoltas e perigos constantes, quantos com ele largamente trataram não podem mais dele separar-se; ficam-lhe ligados por todas as fibras do ser.


O vasto mar é a imagem do poder, da extensão, da duração. Todos quantos o têm descrito, comparam o globo a um organismo vivo, felizes por perceberem em alguns dias de estio as suas pulsações. O fluxo e refluxo são a sua respiração. Durante a noite, ouvindo ao longe o rumor monótono da vaga, tive muitas vezes a impressão de que o Oceano respira, qual um Leviatã adormecido. Suas grandes correntes fazem irradiar até às extremidades do mundo o calor e a eletricidade.


Há em nosso planeta dois centros intensos de vida: Java e o mar das Antilhas, cercados por dois círculos de vulcões, formidáveis focos de vitalidade e de atividade submarina. Dois enormes rios deles se destacam semelhantes a aortas, e vão aquecer o hemisfério boreal. Mary lhes chamou “duas vias lácteas do mar”. Outras correntes secundárias vão fecundar o Oceano indico, banhando a vasta rede de ilhas, de recifes e de bancos em que o trabalho dos pólipos estabelece as bases de um continente futuro. Se o mar tem palpitações, também possui espasmos e convulsões. Entretanto, sua verdadeira personalidade não se revela nos acidentes ou nas crises de sua superfície; as mais violentas tempestades não agitam senão parte muito fraca de sua massa líquida. Para conhecê-lo, é necessário estudá-lo em suas profundezas misteriosas.


Ali, a uma profundidade de oito mil metros, agita-se uma vida obscura, estranha, iluminada por fenômenos de fosforescência que aclaram, com alvores fantásticos, as noites silenciosas dos abismos.


Seres luminosos aí pululam; quando atraídos à superfície, brilham um instante em esteiras de fogo, em feixes cintilantes, mas para se extinguirem logo. Suas formas são infinitamente variadas; apresentam os aspectos e as cores mais inesperadas: rosáceas de catedral, rosários de pérolas e de coral, lustres de cristal de ricos candelabros; estrelas marinhas, tintas de verde, de púrpura, de azul. Essa aparição fugitiva é um deslumbramento; dá-nos uma idéia enfraquecida das maravilhas que se encerram nas criptas secretas do mar. Depois, são vegetações de contos de fadas, sargaços gigantescos, nácares, esmaltes de brilhantes cores, florestas de corais, gorgõnias e Ísis, todo um mundo singular, primeiro rebate de vida, esforço de um pensamento que aspira à luz. Quantos mistérios no fundo dessas trevas! Quantos continentes devorados, cidades outrora florescentes, jazem também sob o sudário das grandes águas!


Esse foi o cadinho gigantesco em que se elaboraram as primeiras manifestações da vida. Ainda hoje ela é a mãe, a nutriz fecunda por meio da qual se desenvolvem as existências prodigiosas, a seiva transbordante, da qual nada, nem a raiva destrutiva do homem, nem as causas reunidas de mortalidade, de luta, de guerra entre as espécies, podem minorar a intensidade. O poder de reprodução de certas famílias é tal que, sem as forças que a combatem e lhe atenuam os efeitos, o mar ter-se-ia, há muito tempo, transformado em massa sólida.


Os arenques vogam em bardos inumeráveis, em torrentes de fecundidades  (XXVI)  . Cada fêmea contém a média de cinquenta mil ovos, e cada ovo se multiplica por sua vez por cinquenta mil. O bacalhau, que se alimenta do arenque, tem nove milhões de ovos (o terço do seu peso), e gera nove meses sobre doze. O solho, que devora o bacalhau, não é menos prolífico. Somente estas três espécies, em seu ardor de reproduzir, teriam conseguido cogular o Oceano, sem os elementos de morte que vêm restabelecer o equilíbrio.


Por aí a imolação se torna benfazeja, porque, sem o combate às espécies, seria rota a harmonia e a vida pereceria pelo seu próprio excesso.


Para o mundo dos mares a obra essencial é amar e multiplicar! Quando se examina a água salgada ao microscópio, em certas regiões, ela apresenta quantidades aterradoras de ovos, de germens, de infusórios. O Oceano é comparável a uma imensa cuba sempre em fermentação de existências, sempre em trabalho de parturição. A morte aí produzirá a vida; sobre os resíduos orgânicos dos seres destruídos, outros organismos aparecem e se desenvolvem incessantemente!


    

Nota(s)  Capítulo XII

    


XXVI


Perto de Uson, um pescador, diz Michelet, encontrou oito mil deles em suas redes. Em um porto da Escócia, encheram-se onze mil barris desses peixes em uma noite. Cem mil marinheiros vivem unicamente da pesca do bacalhau.