IX

OBJEÇÕES E CONTRADIÇÕES

    


Sendo o problema divino o mais vasto, o mais profundo dos problemas, pois que abrange todos os outros, embalou teorias, sistemas sem-número, que correspondem a outros tantos graus de compreensão humana, a outros tantos estádios do pensamento em sua marcha para o absoluto.


Neste domínio, as contradições pululam. Cada religião explica Deus à sua maneira; cada teoria o descreve a seu modo. E de tudo isso resulta uma confusão, um caos inextricável. Quantas formas variadas da idéia de Deus, desde o fetiche do negro até o Parabrahm dos hindus, até o Ato puro de São Tomás! Dessa confusão os ateus têm tirado argumentos para negar a existência de Deus; os positivistas, para declará-lo “incognoscível”. Como remediar tal desordem? Como escapar a essas contradições? Da mais simples maneira. Basta elevarmo-nos acima das teorias e dos sistemas, bastante alto para ligá-las em seu conjunto e pelo que têm de comum. Basta elevarmo-nos até à grande Causa, na qual tudo se resume e tudo se explica.


A estreiteza de vistas desnaturou, comprometeu a idéia de Deus. Suprimamos as barreiras, as peias, sistemas fechados, que se contradizem, se excluem e se combatem, substituindo-os pelas vistas largas das concepções superiores. As certas alturas, a Ciência, a Filosofia e a Religião, até então divididas, opostas, hostis, sob suas formas inferiores, unem-se e fundem-se em uma potente síntese, que é a do moderno Espiritualismo. Assim se cumpre a lei da evolução das idéias. Depois da tese, temos a antítese. Tocamos na síntese, que resumirá todas as formas e crenças, e será a glória do vigésimo século telas estabelecidas e formuladas.


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Examinemos rapidamente as objeções mais comuns. A mais frequente é a que consiste em dizer: Se Deus existe, se Ele é, como pretendeis, Bondade, Justiça, Amor, por que o mal e o sofrimento reinam feitos senhores em torno dos seres? Deus é bom, e milhões sofrem na alma e na carne. Tudo é dor e aflição na vida das multidões. A iniquidade é soberana em nosso globo e a ardente luta pela existência faz, todos os dias, vítimas sem-número.


Conforme mostramos em outra parte  (XXIV)  , o sofrimento é um meio poderoso de educação para as Almas, pois desenvolve a sensibilidade, que já é, por si mesma, um acréscimo de vida. Por vezes é uma forma de justiça, corretivo a nossos atos anteriores e longínquos.


O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo seria fixo, imobilizado em sua monótona perfeição. A magnífica ascensão das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos, sem esforços para obtê-la? Teria qualquer valor a nossos olhos? Em resumo, o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.


Deus nos fez livres; daí a mal, fase transitória de nossas ascensões. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos deu a liberdade com essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a escala das vidas sucessivas, à superfície dos mundos que povoam a imensidade.


Emanamos de Deus, tal qual nossos pensamentos emanam de nosso Espírito, sem fracioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, tornamo-nos senhores e artífices de nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em nós outros, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra tudo a que chamamos mal.


Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências inferiores, resgata-se e eleva-se pela expiação e purificação até à vida bem¬-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus, que, fazendo dela o árbitro de seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a maior soma de felicidade final para cada ser.


A condição atual de todas as Almas é o justo resultado de suas existências passadas. Da mesma forma, numa existência presente, nossa Alma tece dia por dia, por atos livres, a sorte que teremos no futuro.


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Outras objeções se apresentam. Há uma que não podemos desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia. Perguntasse-nos:


— Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?


O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo seria fixo, imobilizado em sua monótona perfeição. A magnífica ascensão das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos, sem esforços para obtê-la? Teria qualquer valor a nossos olhos? Em resumo, o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.


Deus nos fez livres; daí a mal, fase transitória de nossas ascensões. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos deu a liberdade com essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a escala das vidas sucessivas, à superfície dos mundos que povoam a imensidade.


Emanamos de Deus, tal qual nossos pensamentos emanam de nosso Espírito, sem fracioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, tornamo-nos senhores e artífices de nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em nós outros, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra tudo a que chamamos mal.


Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências inferiores, resgata-se e eleva-se pela expiação e purificação até à vida bem¬-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus, que, fazendo dela o árbitro de seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a maior soma de felicidade final para cada ser.


A condição atual de todas as Almas é o justo resultado de suas existências passadas. Da mesma forma, numa existência presente, nossa Alma tece dia por dia, por atos livres, a sorte que teremos no futuro.


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Outras objeções se apresentam. Há uma que não podemos desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia. Perguntasse-nos:


— Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?


Não pode ser ambos, porque — dizem — essas concepções são diferentes e se excluem mutuamente. Daí os dois grandes sistemas sobre Deus; o deísmo e o panteísmo. Na realidade, tal contribuição é apenas um erro de óptica do espírito humano, que não sabe compreender, nem a personalidade, nem o infinito.


A personalidade verdadeira é o eu, a inteligência, a vontade, a consciência. Nada impede concebê-la sem, limites, isto é, infinita. Sendo Deus a perfeição, não pode ser limitado. Assim se conciliam duas noções, na aparência contraditória.


Outra coisa: Deus é incognoscível, como dizem os positivistas e, entre eles, Berthelot?


É o abismo dos gnósticos, a foi velada dos templos do Egito, o terrível e misterioso Santo dos Santos dos Hebreus, ou pode ser conhecido?


A resposta é fácil: Deus é incognoscível em sua essência em suas íntimas profundezas; mas revela¬-se por toda a sua obra, no grande livro aberto nossos olhos e no fundo de nós mesmos.


Insiste-se ainda: disseste que o fim essencial da vida, de todas as nossas vidas, era entrar, cada vez mais, na comunhão universal, para melhor amar e melhor servir a Deus em seus desígnios. Não podendo Deus ser conhecido em sua plenitude, como se poderia amar e servir o desconhecido?


Sem dúvida, replicaremos nós, não podemos conhecer a Deus em sua essência, mas nós o conhecemos por suas leis admiráveis, pelo plano que traçou todas as existências e no qual brilham a sua sabedoria e sua justiça. Para amar a Deus não é necessário separá-lo de sua obra; é preciso vê-lo em sua universalidade, na onda de vida e amor que derrama sobre todas as coisas. Deus não é desconhecido: é somente invisível.


A alma o pensamento: o bem e a beleza moral são igualmente invisíveis. Entretanto, não devemos amá-los? E amá-los não será ainda amar a Deus — sua origem, e, ao mesmo tempo, o pensamento supremo, a beleza perfeita, o bem absoluto?


Não compreendemos, em sua essência, nenhum desses princípios; entretanto, sabemos que existem e que não podemos escapar à sua influência, dispensando-nos de lhes prestar culto. Se amarmos somente o que conhecemos e compreendemos com plenitude, que amaríamos, afinal, limitados qual o somos atualmente, nos marcos estreitos de nossa compreensão terrestre?


Aqueles que reclamam absolutamente uma definição poder-se-ia dizer que Deus é o Espírito puro, o Pensamento puro. Mas a idéia pura, em sua essência, não pode ser formulada sem, por isso mesmo, ser diminuída, alterada. Toda fórmula é uma prisão. Encerrado no cárcere da palavra, o pensamento perde sua irradiação, seu brilho, quando não perde seu sentido verdadeiro, completo. Empobrecido, deformado, torna-se assim sujeito à crítica e vê desvanecer-se o que nele havia de mais probante. Na vida do Espaço, o pensamento é uma imagem brilhante.


Comparado ao pensamento expresso por palavras humanas, é o que seria uma jovem resplendente de vida e de beleza, comparada à mesma, porém deitada em um esquife, sob as formas rígidas e geladas da morte.


Entretanto, apesar da nossa impotência em exprimi-la na sua extensão, a idéia de Deus impõe-se, dissemos, por ser indispensável à nossa vida. Acabamos de ver que o Bem, o Verdadeiro, o Belo, nos escapam em sua essência, porque são de natureza divina. Nossa própria inteligência é para nós incompreensível, precisamente porque encerra uma partícula divina que a dota de faculdades augustas. Só penetrando o sistema da alma humana chegaremos um dia a resolver o enigma do Ser infinito.


Deus está na criatura, e a criatura Nele. Deus é o grande foco de vida e de amor do qual cada Alma é uma centelha, ou antes, um foco ainda obscuro e velado que contém, em estado embrionário, todas as potências; a tal ponto, que, se soubéssemos tudo quanto em nós outros existe, e as grandiosas obras que podemos realizar, transformaríamos o mundo: elevar-nos-íamos, de um salto, na senda imensa do progresso.


Para nos conhecermos, é mister, pois, estudar Deus, porque tudo que está em Deus está nos seres, quando menos em estado de gérmen. Deus é o Espírito Universal que se exprime e se manifesta na Natureza, da qual o homem é a expressão mais alta.


Todos os homens devem chegar a essa compreensão de sua natureza superior; na ignorância dessa natureza e dos recursos que em nós dormitam, é que está a causa de todas as provações, de nossos desfalecimentos e de nossas quedas.


Eis por que a todos diremos: Elevemo-nos acima das querelas de escola, acima das discussões e das polemica vãs. Elevemo-nos bastante alto para compreender que somos outra coisa mais do que uma roda na máquina cega do mundo: somos os filhos de Deus e, por isso, ligados estreitamente a Ele e à sua criação, destinados a um fim imenso, ao lado do qual tudo mais se torna secundário; esse fim é a entrada na santa harmonia dos seres e das coisas, que não se realiza senão em Deus e por Deus!


Elevemo-nos até lá, e sentiremos a potência que está em nós; compreenderemos o papel que somos solicitados a desempenhar na obra do progresso eterno. Lembremo-nos de que somos Espíritos imortais. As coisas da Terra são um degrau, um meio de educação, de transformação. Podemos perder neste mundo todos os bens terrestres. Que importa? O indeclinável, antes de tudo, é engrandecer, arrancar de sua grosseira ganga esse Espírito divino, esse deus interior que é, em todo homem, a origem de sua grandeza, de sua felicidade no porvir. Eis o fim supremo da vida!


Concluamos: Deus é a grande Alma do Universo, o foco de onde emana toda a vida, toda a luz moral. Não podeis passar sem Deus, de igual modo que a Terra e todos os seres que vivem em sua superfície não podem dispensar seu foco solar: Se o Sol se extinguir, de repente, que acontecerá? Nosso planeta rolará no vazio dos espaços, levando nessa carreira a Humanidade deitada para sempre em seu sepulcro de gelo. Todas as coisas morrerão, o globo será uma necrópole imensa. Triste silêncio reinará nas grandes cidades adormecidas em seu último sono.


Pois bem! Deus é o Sol das Almas! Extingui a idéia de Deus, e imediatamente a morte moral se estenderá sobre o mundo. Precisamente porque a idéia de Deus está falseada, desnaturada por uns, desconhecida por muitos outros, é que a Humanidade atual erra no meio das tempestades, sem piloto, sem bússola, sem guia, presa da desordem, entregue a todas as aflições.


Levantar, engrandecer a idéia de Deus, desembaraçá-la das escórias em que as religiões e os sistemas a têm envolvido, tal é a missão do Espiritualismo moderno!


Se tantos homens são ainda incapazes de ver e compreender a harmonia suprema das leis, dos seres e das coisas, é que a Alma deles não entrou ainda, pelo senso íntimo, em comunicação com Deus, isto é, com seus pensamentos divinos, que esclarecem o Universo e que são a luz imperecível do mundo.


Indagamos de nós mesmos, ao terminar, se conseguimos dar um resumo da idéia de Deus. A palavra humana é muito fraca, muito árida e extremamente fria para tratar de semelhante assunto. Só a própria harmonia, a grande sinfonia das esferas e a voz do Infinito poderiam esboçar e exprimir a lei universal.


Há coisas que, de tão profundas, só se sentem, não se descrevem. Deus, somente em seu amor sem limites, pode revelar-nos o seu sentido oculto. E é o que fará, se em nossa fé, em nossa ascensão para a Verdade, soubermos apresentar, Aquele que sonda os recônditos mais misteriosos das consciências, uma alma capaz de compreendê-lo, um coração digno de amá-lo.


    

Nota(s)  Capítulo IX

    


XXIV


Vide, deste mesmo autor, DEPOIS DA MORTE, segunda parte; O PROBLEMA DO SER, DO DESTINO E DA DOR, caps. XVIII e XIX.