IV

AS HARMONIAS DO ESPAÇO

    


Uma das impressões que nos causa, à noite, a observação dos céus, é a de majestoso silêncio; mas esse silêncio é apenas aparente; resulta da impotência dos nossos órgãos.


Para seres mais bem aquinhoados, portadores de sentidos abertos aos ruídos sutis do Infinito, todos os mundos vibram, cantam, palpitam, e suas vibrações, combinadas, formam um imenso concerto.


Esta lei das grandes harmonias celestes podemos observá-la em nossa própria família solar.


Sabe¬-se que a ordem de sucessão dos planetas no Espaço é regulada por uma lei de progressão, chamada lei de Bode  (XIV)  . As distâncias dobram, de planeta a planeta, a partir do Sol. Cada grupo de satélites obedece à mesma lei.


Ora, este modo de progressão tem um princípio e um sentido. Esse princípio se liga ao mesmo tempo às leis do número e da medida, às matemáticas e à harmonia.  (XV)  


As distâncias planetárias são reguladas segundo a ordem moral da progressão harmônica; exprimem a própria ordem das vibrações desses planetas e as harmonias planetárias; calculadas segundo estas regras, resultam em perfeito acordo. Poder¬-se¬ ia comparar o sistema solar a uma harpa imensa, da qual os planetas representam as cordas. Seria possível, diz Azbel, “reduzindo a cordas sonoras à progressão das distâncias planetárias, construir um instrumento completo e absolutamente afinado”.  (XVI)  


No fundo (e nisso reside à maravilha), a lei que rege as relações do som, da luz, do calor, é a mesma que rege o movimento, a formação e o equilíbrio das esferas, de igual maneira que lhes regula as distâncias. Esta lei é, ao mesmo tempo, a dos números, das formas e das idéias. É a lei da harmonia por excelência: é o pensamento, é a ação divina vislumbrada!


A palavra humana é muito pobre; é insuficiente para exprimir os mistérios adoráveis da harmonia eterna. A escrita musical somente pode fornecer a sua síntese, comunicar a sua impressão estética. A música, idioma divino exprime o ritmo dos números, das linhas, das formas, dos movimentos. É por ela que as profundezas se animam e vivem. Ela enche com suas ondas o edifício colossal do Universo, templo augusto onde retine o hino da vida infinita. Pitágoras e Platão acreditavam já perceber “a música das esferas”.


No sonho de Cipião, narrado por Cícero em uma das suas belas páginas, que nos legou a Antiguidade, o sonhador entretém-se com a Alma de seu pai, Paulo Emílio, e a de seu avô, Cipião, o Africano; contempla com elas as maravilhas celestes e o diálogo seguinte se estabelece:


— “Que harmonia é essa, tão poderosa e tão doce que me penetra?” — pergunta Cipião. Responde-lhe o avô:


— É a harmonia que, formada de intervalos desiguais, mas combinados, de acordo com justa proporção, resulta do impulso e do movimento das esferas; fundidos os tons graves e os tons agudos em um acorde comum, faz de todas essas notas, tão variadas, um melodioso concerto. Tão grandes movimentos não se podem executar em silêncio”.


Quase todos os compositores de gênio que ilustraram a arte musical, assim os Bach, os Beethoven, os Mozart, etc., declararam que percebiam harmonias muito superiores a tudo que se pode imaginar, harmonias impossíveis de serem descritas. Beethoven, enquanto compunha, ficava fora de mim, arrebatado numa espécie de êxtase, e escrevia febrilmente, ensaiando em vão reproduzir essa música celeste que o deslumbrava.


É preciso uma faculdade psíquica notável para possuir a tal ponto o dom da receptividade. Os raros humanos que a possuem afirmam que, quantos já surpreenderam o sentido musical do Universo, encontraram a forma superior, a expressão ideal da beleza e da harmonia eternas. As mais elevadas concepções do gênero humano são, apenas, um eco longínquo, uma vibração enfraquecida da grande sinfonia dos mundos.


É a fonte dos mais puros gozos do Espírito, o segredo da vida superior, cuja potência e intensidade os nossos sentidos grosseiros nos impedem, ainda, de compreender e sentir.


Para aquele que os pode gozar plenamente, o tempo não tem medida e a série dos dias inumeráveis não parece mais que um dia.


Mas essas alegrias, ainda ignoradas, no-las dará a evolução, à medida que nos formos elevando na escala das existências e dos mundos.


Já conhecemos médiuns que percebem, em estado de transe, suaves melodias. As lágrimas abundantes que vertem testemunham não serem ilusórias suas sensações.


Voltemos ao estudo do movimento das esferas, e notemos que não há, até mesmo tratando das próprias exceções à regra universal de harmonia, e dos desvios aparentes dos planetas, nada há que não se explique e não seja assunto de admiração. Elas constituem espécies de “diálogos de vibrações tão aproximados quanto possível do uníssono” e apresentam um encanto estético a mais nesse prodígio de beleza que é o Universo.


Um exemplo, dos mais incisivos, é o dos pequenos planetas, chamados telescópicos, que evolvem entre Marte e Júpiter, em número de cerca de 520, ocupando um espaço de oitava inteiro, dividido em outros tantos graus; de onde a probabilidade de que esse conjunto de mundículos não constitua, como se tem acreditado, um universo de destroços, mas o laboratório de muitos mundos em formação, mundos dos quais o estudo do céu nos dirá a gênese futura.


As grandes relações harmônicas que regulam a situação respectiva dos planetas de nosso sistema solar são em número de quatro e encontram sua aplicação:


Em primeiro lugar: do Sol a Mercúrio; neste ponto também as forças harmônicas estão em trabalho; planetas novos se esboçam.


Depois, de Mercúrio a Marte. É a região dos pequenos planetas, em que se move a nossa Terra, representando o papel de dominante local, com tendência a afastar-se do Sol para se aproximar das harmonias planetárias superiores. Marte, componente deste grupo e do qual podemos distinguir, ao telescópio, os continentes, os mares, os canais gigantes todo o aparelho de uma civilização anterior à nossa, Marte, embora menor, é mais bem equilibrado que a nossa morada.


Os 500 planetas telescópicos constituem, em seguida, um intervalo de transição; formam uma espécie de colar de pérolas celestes ligando o grupo de planetas inferiores à imponente cadeia dos grandes planetas, de Júpiter a Netuno, e além. Tal cadeia forma a quarta relação harmônica, de notas decrescentes qual o volume das esferas gigantescas que a compõem. Nesse grupo, Júpiter tem o papel de dominante; os dois mundos, maior e menor, nele se combinam.


“Semelhantemente à inversão harmônica do som, diz Azbel  (XVII)  , é por uma progressão constante que o grupo antigo de Netuno e Júpiter afirma a formação de seus volumes. O caos de corpúsculos telescópicos, que segue, fez estacar bruscamente essa progressão. Júpiter lá ficou qual um segundo sol, no limiar dos dois sistemas. Dos registros de oitava e de segunda dominante, passou ao de tônica secundária e relativa, para exprimir o caráter de registro especial, evidentemente menor e relativo, em paralelo ao do Sol, que ia preencher, enquanto formações mais novas se dispunham aquém, afastando-o, pouco a pouco, e aos mundos seus tutelados, do astro de que é o mais robusto filho”.


Robusto, com efeito, e bem imponente em seu curso, esse colossal Júpiter, que gosto de contemplar na calma das noites de verão, mil e duzentas vezes maior que o nosso globo, escoltado por seus cinco satélites, dos quais um, Gani medes, tem o volume de um planeta. Ereto sobre o plano de sua órbita, de maneira a gozar de igualdade perpétua de temperatura sob todas as latitudes, com dias e noites sempre uniformes em sua duração, é, além disso, composto de elementos de densidade quatro vezes menor que os de nossa maciça morada, o que permite entrever, para os seres que habitam ou terão de habitar Júpiter, facilidades de deslocamento, possibilidades de vida aérea que devem fazer dele uma vivenda de predileção. Que teatro magnífico da vida! Que cena de encanto e de sonho esse astro gigante!


Mais estranho mais maravilhoso ainda é Saturno, cujo aspecto se faz tão impressionante ao telescópio; Saturno é igual a oitocentos globos terrestres amontoados, com seu imenso diadema, em forma de anel, e seus oito satélites, entre os quais Titã, igual em dimensões ao próprio Marte.


Saturno, com o cortejo rico que o acompanha em sua lenta revolução através do Espaço, constitui, por si só, um verdadeiro universo, imagem reduzida do sistema solar. É um mundo de trabalho e de pensamento, de ciência e de arte, onde as manifestações da inteligência e da vida se desenvolvem sob formas de variedade e riqueza inimagináveis. Sua estética é sábia e complicada; o sentimento do belo tornou­se ali mais sutil e mais profundo pelos movimentos alternantes, pelos eclipses dos satélites e dos anéis, por todos os jogos de sombra, de luz, de cores, em suas nuanças se fundem em gradações desconhecidas à vista dos habitantes da Terra, e também por acordes harmônicos, bem comoventes em suas conclusões analógicas com os do universo solar por inteiro!


Vêm depois, nas fronteiras do império do Sol, Urano e Netuno, planetas misteriosos e magníficos, cujo volume é igual a quase uma centena de globos terrestres reunidos. A nota harmônica de Netuno seria "a culminante do acorde geral, o cimo do acorde maior de todo o sistema". Depois, são outros planetas longínquos, sentinelas perdidas do nosso agrupamento celeste, ainda despercebidos, mas pressentidos e até calculados, segundo as influências que exercem nos confins do nosso sistema, longa cadeia que nos liga a outras famílias de mundos.


Mais longe se desenvolve o imenso oceano estelar, pélago de luz e de harmonia, cujas vagas melodiosas por toda parte envolvem, a embalá-lo, nosso universo solar, esse universo para nós tão vasto e tão mesquinho em relação ao Além. É a região do desconhecido, do mistério, que atrai sem cessar o nosso pensamento, sendo este impotente para medir, para definir seus milhões de sóis de todas as grandezas, de todas as potências, seus astros múltiplos, coloridos, focos terríficos que iluminam as profundezas, vertendo em ondas a luz, o calor, a energia, transportados na imensidão com velocidades formidáveis, com seus cortejos de mundos, terras do céu, invisíveis, mas suspeitadas, e as famílias humanas que os habitam, os povos e as cidades, as civilizações grandiosas de que são teatro.


Por toda parte as maravilhas sucedem às maravilhas: grupos de sóis animados de colorações estranhas, arquipélagos de astros, cometas desgrenhados, errando na noite de seu afélio, focos moribundos que se acendem de repente e fulgem no fundo do abismo, pálidas nebulosas de forma fantástica, fantasmas luminosos cujas irradiações, diz Herschel, levam 20.000 séculos para chegar até nossa Terra, formidáveis gêneses de universos, berços e túmulos da vida universal, vozes do passado, promessas do futuro, esplendores do Infinito!


E todos esses mundos unem suas vibrações em uma poderosa melodia... A alma livre dos raios terrestres, chegada a essas alturas, ouve a voz profunda dos céus eternos!


*


As relações harmônicas que regem a situação dos planetas no Espaço representam, como o estabeleceu Azbe  (XVIII)  , a extensão do nosso teclado sonoro e se acham conforme a lei das distâncias e dos movimentos. Nosso sistema solar representa uma espécie de edifício de oito andares, isto é, oito oitavas, Com uma escadaria formada de 320 degraus ou ondas harmônicas, sobre a qual os planetas estão colocados, Ocupando “patamares indicados pela harmonia de um acorde perfeito e múltiplo”.


As dissonâncias são apenas aparentes ou transitórias. O acorde encontra-se no fundo de tudo. As regras da nossa harmonia musical parecem ser apenas consequência, aplicação muito imperfeita da lei da harmonia soberana que preside à marcha dos mundos. Podemos, pois, crer, logicamente, que a melodia das esferas seria inteligível para o nosso Espírito, se nossos sentidos pudessem perceber as ondas sonoras que enchem o Espaço.  (XIX)  


A regra geral, embora absoluta, não é, entretanto; estreita e rígida. Em certos casos, no de Netuno, a harmonia relativa parece afastar-se do princípio; nunca, entretanto, de maneira a sair dele. O estudo dos movimentos planetários fornece a demonstração evidente desse fato.


Nessa ordem de estudos, mais do que em qualquer outra, vemos manifestar-se, em sua imponente grandeza, a lei do Belo que rege o Universo. Mal nossa atenção é dirigida para as imensidades siderais, a sensação estética torna-se intensa. Esta sensação vai engrandecer-se agora e crescer, à medida que se precisarem às regras da harmonia universal, à proporção que se levantar para nós o véu que nos ocupa os esplendores celestes.


Por toda parte, encontraremos essa concordância que encanta e comove; nesse domínio, nenhuma dessas discordâncias, dessas decepções, tão frequentes no seio da Humanidade.


Por toda parte se desdobra essa potência de beleza que leva ao infinito suas combinações, abrangendo em igual unidade todas as leis, em todos os sentidos: aritmética, geométrica, estética.


O Universo é um poema sublime do qual começamos a soletrar o primeiro canto. Apenas discernimos algumas notas, alguns murmúrios longínquos e enfraquecidos! Já essas primeiras letras do maravilhoso alfabeto musical nos enchem de entusiasmo. Que será quando, tornados mais dignos de interpretar divina linguagem, percebermos, compreendermos as grandes harmonias do Espaço, o acorde infinito na variedade infinita, o canto modulado por esses milhões de astros que, na diversidade prodigiosa de seus volumes e de seus movimentos, afinam suas vibrações por uma simpatia eterna?


Perguntar-se-á, porém: Que diz essa música celeste, essa voz dos céus profundos?


Essa linguagem ritmada é o Verbo por excelência, aquele pelo qual todos os mundos e todos os seres superiores se comunicam entre si, chamam-se através das distâncias; pelo qual nos comunicaremos um dia com as outras famílias humanas que povoam o Espaço estrelado.


É o princípio mesmo das vibrações que servem para traduzir o pensamento, a telegrafia universal, veículo da idéia em todas as regiões do Universo, linguagem das almas elevadas, entretendo-se de um astro a outro com suas obras comuns, com o fim a atingir, com os progressos a realizar.


É ainda um hino que os mundos cantam a Deus, ora cântico de alegria, de adoração, ora de lamentações e de prece; é a grande voz da coisas, o grito de amor que sobe eternamente para a Inteligência ordenadora dos universos.


Quando, pois saberemos destacar nossos pensamentos é elevá­los para os cimos? Quando saberemos penetrar esses mistérios do céu é compreender que cada descobrimento realizado, cada conquista prosseguida nesta senda da luz e de beleza, contribui para enobrecer nosso espírito é para engrandecer nossa vida moral e nos proporciona alegrias superiores a toda as da matéria.


Quando, pois, compreenderemos que é lá, nesse esplêndido Universo, que nosso próprio destino se desenvolve, e estudá-lo é estudar o próprio meio onde somos chamados a reviver, a evolver sem cessar, penetrando-nos cada vez mais das harmonias que o enchem? Que em toda parte a vida se expande em florescências de Almas? Que o Espaço é povoado de sociedades sem-número; às quais o ser humano está ligado pelas leis de sua natureza e de seu futuro?


Ah! Quanto é de lamentar aqueles que desviam seus olhares desses espetáculos e seu Espírito desses problemas! Não há estudo mais impressionante, mais comovente, revelação mais alta da ciência e da arte, mais sublime lição!


Não: o segredo da nossa felicidade, de nosso poder, de nosso futuro, não está nas coisas efêmeras deste mundo; reside nos ensinamentos do Alto, do Além. E os educadores da Humanidade são muito inconscientes ou muito culpados, porque não cuidam de elevar as Almas para os cimos onde resplandece a verdadeira luz.


Se a dúvida ou a incerteza nos assediam; se a vida nos parece pesada; se tateamos na noite à procura do fim; se pessimismo e tristeza nos invadem; acusemos a nós próprios, porque o grande livro do Infinito está aberto aos nossos alhos, com suas páginas magníficas, das quais cada palavra é um grupo de astros, cada letra um sol ­ o grande livro onde devemos aprender a ler o sublime ensinamento. A Verdade ali está escrita em letras de ouro e de fogo; chama solícita nossos olhos — Verdade — realidade mais bela que todas as lendas e todas as ficções.


E ela quem nos conta a vida imperecível da Alma, suas vidas renascentes na espiral dos mundos, as estações inumeráveis no trajeto radioso, o prosseguimento do eterno bem, a conquista da plena consciência, a alegria de sempre viver para sempre amar, sempre subir, sempre adquirir novas potências, virtudes mais altas, percepções mais vastas. E, acima da possessão da eterna Beleza, a felicidade de penetrar as leis, de associar-se mais estreitamente à obra divina e à evolução das Humanidades.


Desses magníficos estudos, a idéia de Deus se expande mais majestosa mais serena. A ciência das harmonias celestes vale um pedestal grandioso sobre o qual se erige a augusta figura — Beleza soberana cujo brilho, muito ofuscante para os nossos fracos olhos, fica ainda velado, mas irradia docemente através da obscuridade que a envolve.


Idéia de Deus — centro inefável para onde verguem e se fundem, em síntese sem limites, todas as ciências, todas as artes, todas as verdades superiores —, tu és a primeira e a última palavra das coisas presentes ou passadas, próximas ou longínquas; tu és a própria Lei, a causa única de todas as coisas, a união absoluta, fundamental, do Bem e do Belo, que reclama o pensamento, que exige a consciência e na qual a Alma humana acha a sua razão de ser e a fonte inesgotável de suas forças, de suas luzes, de suas inspirações.


    

Nota(s)  Capítulo IV

    


XIV


Tohann Elert Bode, astrônomo alemão (1747-1826).


    


XV


Vide Azbel, HARMONIA DOS MUNDOS.


    


XVI


Idem, pág. 29.


    


XVII


Azbel, HARMONIA DOS MUNDOS, pág. 13.


    


XVIII


Azbel, HARMONIA DOS MUNDOS, pág. 10.


    


XIX


“O Sr. Emílio Chizat, diz Azbel (A MÚSICA NO ESPAÇO), verifica que o jogo de órgão, chamado ‘vozes celestes’, é a aplicação musical intuitiva do papel importante das ‘idéias de estrela’. É provável que manifestações sinfônicas sejam feitas ulteriormente, a este respeito, que poderão reservar ao público impressões inesperadas. Que possam elas levar nossos músicos ‘terrestres’, que se extraviam, há noções um pouco mais altas e reais do sacerdócio da harmonia, que deveriam preencher entre nós”.