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Parte Quarta



A Doutrina Espírita


Capítulo único


Materialismo e Espiritismo


O Espírito no Espaço

– As vidas sucessivas

– Provas da reencarnação

– Conclusão.


O movimento científico que caracteriza o século XIX é o da investigação positiva. Longe de quererem, como outrora, firmar hipóteses admitidas a priori e fazer que os fenômenos da natureza concordem com as suas idéias preconcebidas, os sábios buscaram, no estudo meticuloso dos fatos, sua norma de conduta e chegaram, seguindo esse método, aos maravilhosos resultados que diariamente estamos verificando. Mas se, deixando o domínio material, os homens de ciência quiserem aplicar o positivismo às realidades espirituais, esbarrarão em dificuldades invencíveis ou, pelo menos, por eles supostas como tais.


A escola alemã, com Büchner e Moleschott, declara, positivamente, que as velhas concepções de Deus e da alma já estão fora do seu tempo e que a Ciência reduziu a nada essas crenças fabulosas. Moleschott aplicou-se, sobretudo, a demonstrar que a idéia é o produto direto de um trabalho molecular do cérebro, e Karl Vogt não teme dizer que o cérebro segrega o pensamento, mais ou menos como a urina é segregada pelos rins. Em nossa época, Haeckel desenvolveu teorias análogas; nada há de novo em seu sistema, a não ser as palavras: o mecanismo e a adaptação patológica, que, no fundo, significam: materialismo.


Pois bem! Nós, espíritas, vimos dizer aos positivistas: Somos vossos discípulos; adotamos o vosso método e só aceitamos como reais as verdades demonstradas pela análise, pelos sentidos e pela observação. Longe de nos conduzirem aos resultados a que chegastes, esses instrumentos de investigação fizeram-nos descobrir um novo modo de vida e esclareceram-nos sobre os pontos controversos.


As grandes vozes dos Crookes, dos Wallace, dos Zöllner proclamam que, do exame positivo dos fenômenos espíritas, resulta claramente a convicção de que a alma é imortal e que não só ela não morre, mas também pode manifestar-se aos humanos, por meio de leis ainda pouco conhecidas que regem a matéria imponderável. Todo efeito tem uma causa e todo efeito inteligente faz supor uma causa inteligente: tais são os princípios, os axiomas inabaláveis sobre os quais repousam as nossas demonstrações.


Os materialistas podiam, há pouco ainda, repelir os argumentos favoráveis aos fenômenos, dizendo que eles não obedecem ao verdadeiro método que conduz à verdade; mas nada de semelhante dever-se-á temer. Não viemos dizer: Precisa-se de fé para compreender a nossa revelação. Não tolhemos o livre exame; mas, ao contrário, dizemos: Vinde instruir-vos, fazei experiências, buscai compreender todos os fenômenos, sede observadores meticulosos, não aceiteis uma experiência senão quando puderdes repeti-la muitas vezes e nas mais variadas circunstâncias; em uma palavra, caminhai prudentemente em busca do desconhecido, porque, avançando-se à procura de novos princípios, é fácil cair-se em erro. Quando tiverdes suficientemente estudado, o próprio fenômeno vos instruirá acerca da sua natureza e do seu poder. Não será essa uma conduta positiva por excelência? Que poderão os mais decididos materialistas responder a Robert Hare, ao professor Mapes, ao Sr. Oxon? Servimo-nos das armas dos nossos inimigos para vencê-los: é em nome do seu método que proclamamos a imortalidade da alma mesmo depois da morte do corpo.


Todas as teorias que querem fazer do homem um autômato, todos os sábios que fizeram da ciência um escudo para proclamarem a materialidade do ser humano encontram o mais formal desmentido no testemunho dos fatos. Não é verdade que sejamos só matéria; não é justo pensar-se que, pela morte do corpo, sendo reduzidos a pó os elementos que o constituíam, nada restará daquilo que foi o ser pensante. A experiência demonstra-nos que, assim como a borboleta sai da crisálida, assim a alma deixa o seu vestuário grosseiro de carne para atirar-se, radiante, no éter, sua pátria eterna. Nada morre neste mundo, porque nada se perde. O átomo de matéria que se escapa de uma combinação entra no grande laboratório da natureza, e a alma, que se torna livre pela dissolução de seus laços corporais, volta ao seu ponto de partida. A gélida noite do túmulo não mais nos aterroriza, porque possuímos a prova certa de que os mausoléus não encerram senão cinzas inertes e que o ser pensante não desaparece.


É sobretudo para os miseráveis, para os deserdados deste mundo que esta sublime prova da imortalidade é doce e consoladora. A certeza absoluta de uma vida melhor anima o trabalhador na luta encarniçada que, diariamente, ele sustenta contra a necessidade. A morte não lhe aparece mais brutal e triste, como o aniquilamento supremo, mas, ao contrário, a porta que se abre para um mundo melhor, a aurora brilhante de um dia novo, mais compensador de seus sofrimentos que esta triste Terra sobre a qual vegeta.


Que todos aqueles a quem a perda de um ser ternamente querido deixou abatidos, desanimados, levantem a cabeça, porque as vozes dos Espíritos bradam-nos que essa dor os atinge, que eles vivem ao redor de nós, que nos envolvem em sua ternura e que de seus corações elevam-se constantes preces pedindo ao Eterno que nos proteja contra os perigos da existência. Eis as claridades sublimes que se desprendem da ciência espírita, eis as venturosas certezas que não podiam dar-nos as religiões nem as filosofias, porque seus dogmas e suas doutrinas, não estando mais em harmonia com os progressos do século, deixam o homem a braços com a dúvida, esse verme roedor da sociedade moderna.


Não nos iludamos: o tempo da fé cega passou; hoje, é necessário, para que uma teoria filosófica moral ou religiosa seja aceita, que ela repouse no fundamento inabalável da demonstração científica. Outros tempos, outros costumes. O mundo antigo apoiou-se na revelação; o de hoje precisa da certeza lentamente adquirida. A fé, por si só, não basta; é indispensável que a razão sancione o que se pretende fazer-nos aceitar como verdades.


A grande força do Espiritismo consiste na liberdade de exame que ele deixa ao cuidado dos seus adeptos. Todos os seus princípios podem ser discutidos e submetidos ao estudo. Cada vez que essa experiência foi feita, ele surgiu mais forte e mais robusto que nunca dessa prova temível. As religiões, na hora atual, assemelham-se a essas andadeiras que são indispensáveis à criança para aprender a caminhar, porém que se tornam inúteis, e mesmo prejudiciais, quando ela adquire o desenvolvimento preciso para se dirigir por si só. Encerrado em um dogmatismo estreito, o homem do século décimo nono sente que esse ensino caduco não mais está em harmonia com os seus conhecimentos e, forçado a escolher entre as certezas da ciência e a fé imposta, atira-se de corpo e alma para o materialismo. Se, porém, esse homem encontrar uma doutrina que concilie as exigências da ciência com as necessidades que a sua alma tem de crer em alguma coisa, ele não hesitará: adotará essa fé nova, que satisfaz plenamente a todas as suas aspirações. Estas considerações sumárias explicam a enorme aceitação do Espiritismo. Não devemos, contudo, crer que o Espiritismo seja inimigo das religiões: ele não combate senão os seus abusos; dirige-se mais particularmente aos materialistas e àqueles que, sem serem completamente ateus, estão indecisos acerca da vida futura.


Em vez de ser ridiculizada e combatida, esta doutrina deveria achar-se na base de todo o ensino moral ou religioso. Dando ao homem a prova evidente de que a sua passagem pela Terra é temporária, de que terá de responder, depois, pelo bem ou mal que fez, impõe um paradeiro aos seus maus instintos, que, em nossos dias principalmente, ameaçam corromper a sociedade. O Espiritismo faz conhecer, com efeito, as condições em que se acha a alma depois da morte do corpo. Em vez de considerar o Espírito de um modo abstrato, nossa doutrina demonstra que ele é, depois da morte, uma individualidade verdadeira, que não tem menos realidade que o homem; somente a natureza do corpo mudou, quando as condições da existência deixaram de ser as mesmas.


O Espírito no Espaço


O Espírito está revestido de um invólucro a que chamamos perispírito. Esse corpo é formado pelo fluido universal terrestre, isto é, pela matéria sob a sua forma primordial. A união entre o corpo e a alma pode ser comparada a uma combinação. Quando essa combinação se desfaz, o que sucede na ocasião da morte, a alma desprende-se com o seu invólucro espiritual, que é indecomponível, pois que é composto pela matéria em sua forma inicial, e conserva as suas propriedades, como o oxigênio que, saindo de uma combinação, nada perdeu de suas afinidades. Nesse estado, o corpo espiritual, segundo a expressão de São Paulo, tem sensações que nos são desconhecidas na Terra e que lhe devem propiciar gozos muito superiores aos que experimentamos aqui.


A Ciência ensina-nos que os nossos sentidos apenas nos fazem conhecer ínfima parte da natureza, porém que, além e aquém dos limites impostos às nossas sensações, existem vibrações sutis, em número infinito, que constituem modos de existência de que não podemos formar idéia, por falta de palavras para exprimi-la.


A alma assiste, pois, a espetáculos que não temos meios de descrever: ouve harmonias que nenhum ouvido humano tem apreciado, move-se em completa oposição às condições de viabilidade terrestre. O Espírito libertado das cadeias do corpo não tem mais necessidade de alimentar-se, não se arrasta mais pelo solo: a matéria imponderável de que é formado permite-lhe transportar-se para os mais longínquos lugares com a rapidez do relâmpago, e, segundo o grau do seu adiantamento moral, suas ocupações espirituais afastam-se mais ou menos das preocupações que nutria na Terra. Não se pode mais negar a existência do corpo espiritual, porque experiências diretas permitiram-nos estudar a sua natureza e o seu modo de condensação.


Vimos, nas experiências de Crookes e de Aksakof, esse corpo espiritual ir revestindo aos poucos os caracteres da matéria, e as moldagens mostram-nos que ele é rigorosamente idêntico ao que o Espírito tinha na Terra.


Uma simples analogia pode, senão explicar, ao menos ajudar a compreender o que se dá em tal caso:


O perispírito pode ser comparado a um eletroímã; o corpo, ao espectro magnético; a vida, à eletricidade.


Enquanto o fluido elétrico não circula, não há espectro, o eletroímã fica indiferente: eis um estado análogo ao do perispírito no espaço; ele contém, virtualmente, em si, todas as linhas que formam o organismo, mas não as dispõe. Logo que a corrente circula no eletroímã, a limalha acomoda-se, seguindo uma certa ordem, e forma esse desenho a que chamamos espectro magnético; do mesmo modo sucede com o perispírito: sob a influência do fluido vital subtraído ao médium, ele acomoda a matéria, conforme o desenho do organismo, e reproduz o corpo humano, como este era na vida terrena.


O perispírito, se bem que formado de matéria primitiva, é mais ou menos livre de misturas, conforme o mundo habitado pelo Espírito. Essa observação nos conduz ao assinalamento do verdadeiro lugar que ocupamos no Universo.


Uma verdade que a Astronomia hoje tornou vulgar é a de não ser o nosso mundo o centro do Universo; segundo ela, a nossa pequena Terra é um dos planetas mais pobremente dotados do sistema solar. Nada, em seu volume ou na posição da sua eclíptica, da qual resultam as estações, lhe dá o direito de orgulhar-se do lugar que ocupa, e, não muito longe de nós, o planeta Júpiter oferece-nos o exemplo de condições de habitabilidade preferíveis às nossas.


Com esses conhecimentos que fazem das estrelas sóis como o nosso, em cujo redor circulam planetas, caíram os erros seculares dos nossos avós, segundo os quais o inferno achava-se colocado no centro da Terra, e o terceiro céu, aquele aonde foi elevado São Paulo, distava nos confins da criação. Esses dados cosmológicos baseavam-se na ignorância dos teólogos a respeito das verdadeiras proporções do Universo.


Quando a Ciência, com a inexorável lógica dos fatos, abriu aos nossos olhos atônitos e deslumbrados as perspectivas ilimitadas do Infinito, quando a Astronomia projetou o seu telescópio para os espaços siderais, as velhas lendas evaporaram-se ao sopro da realidade. Os mundos que povoam o Universo são terras como a nossa, sobre as quais palpita a vida universal, e o homem moderno ri das pretensões infantis dos nossos antepassados, que quiseram limitar a este imperceptível grão de areia, chamado Terra, as manifestações da força infinita, incriada e eterna, a que se dá o nome de Deus.


Se, porém, o céu não existe no lugar em que o indicavam, para onde foi ele transportado? Em que região do imenso Universo devemos colocar o éden de delícias prometido às almas que cumpriram aqui dignamente a sua missão? Eis o que nenhuma religião indica, e somente o Espiritismo, demonstrando o verdadeiro destino do homem, põe-nos no estado de compreender o progresso infinito do Espírito, por transmigrações sucessivas. Tomando por ponto de partida os atributos de Deus e a natureza do homem, Allan Kardec mostrou qual devia ser o nosso futuro espiritual. Vamos, resumindo, expor-lhe a teoria.


O homem é composto de corpo e Espírito; o Espírito é o ser principal, o ser racional e inteligente; o corpo é o invólucro material que o Espírito reveste temporariamente para o cumprimento da sua missão na Terra e para a execução do trabalho necessário ao seu adiantamento. O corpo, quando gasto, é destruído, mas a alma sobrevive a essa destruição. Em suma, o Espírito é tudo, e a matéria não é mais que um acessório, de modo que a alma, libertada dos laços corporais, entra no espaço, que é a sua verdadeira pátria.


Há, pois, o mundo corporal, composto de Espíritos encarnados, e o mundo espiritual, formado pelos Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, em virtude do seu invólucro material, estão presos à Terra ou a outro globo qualquer; o mundo espiritual está por toda parte, ao redor de nós e no espaço; ele é ilimitado. Como o dissemos, em razão da sua natureza fluídica, os seres que o compõem têm um modo de vida particular, dependente do seu organismo imponderável.


Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas com aptidão para adquirirem tudo e progredirem em virtude do seu livre-arbítrio. Pelo progresso, adquirem novos conhecimentos, novas faculdades e, por conseqüência, novos gozos desconhecidos aos Espíritos inferiores; vêem, ouvem, sentem e compreendem o que os Espíritos atrasados não podem ver, ouvir, sentir e compreender. A felicidade está na razão direta do progresso feito; de modo que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto o outro, unicamente por não ser tão adiantado intelectual e moralmente, sem que tenham necessidade de achar-se cada um em lugar diferente.


Achando-se mesmo ao lado um do outro, pode um estar em trevas, quando tudo é resplandecente ao redor do outro, exatamente como se dá com um cego caminhando ao lado de uma pessoa que vê perfeitamente; um percebe a luz, ao passo que o outro nenhuma impressão tem a esse respeito. Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às qualidades que possuem, eles a gozam onde quer que estejam: na superfície da Terra, no meio dos encarnados ou no Espaço.


E fácil compreender que o organismo fluídico seja mais ou menos apto para perceber as sensações, conforme o Espírito for mais ou menos grosseiro. Sabemos que as paixões más viciam o invólucro perispiritual, do mesmo modo que as enfermidades corrompem a carne terrena; visto isso, existe para os seres desencarnados uma recompensa proporcional à soma de virtude que eles adquiriram. Na Terra, acontece, muitas vezes, ficarmos cheios de admiração à vista das maravilhosas perspectivas de um radiante ocaso do Sol ou de uma aurora esplêndida; mas, que são esses matizes de luz ao lado das inumeráveis vibrações fluídicas que, sem cessar, se cruzam no espaço e que dão àqueles que as testemunham os mais inefáveis gozos! Uma comparação vulgar fará melhor compreender essa situação:


Se num concerto se acharem dois homens, um deles bom músico, de ouvido educado, o outro sem conhecimentos musicais e de ouvido pouco delicado: o primeiro experimenta uma sensação de agrado, ao passo que o outro fica insensível; porque um compreende e percebe o que nenhuma impressão causa ao outro. O mesmo se dá em relação a todos os gozos dos Espíritos; eles são proporcionais à aptidão que estes têm para senti-los.


O mundo da erraticidade tem por toda parte esplendores e harmonias que os Espíritos inferiores, ainda dominados pela matéria, nem mesmo entrevêem, e que somente são acessíveis aos Espíritos purificados.


O Espiritismo ensina que a nossa situação, na vida de além-túmulo, é a resultante do nosso estado moral e dos esforços que fizermos para nos elevarmos no caminho do bem. Podemos trabalhar em nosso adiantamento espiritual, com atividade ou negligência, segundo o nosso desejo, mas também os nossos progressos são apressados ou retardados, e, por conseqüência, a nossa felicidade aproxima-se ou afasta-se segundo a nossa vontade.


Os Espíritos são os próprios construtores do seu futuro conforme o ensino do Cristo: “A cada um segundo as suas obras.” Todo Espírito que tornar demorado o seu progresso somente de si próprio deverá queixar-se, do mesmo modo que aquele que se adiantar tem todo o mérito do seu procedimento: a felicidade que ele conquistou tem por esse fato mais valor aos seus olhos.


A vida normal do Espírito efetua-se no espaço, mas a encarnação opera-se numa das terras que povoam o Infinito; esta é necessária ao seu duplo progresso, moral e intelectual: ao progresso intelectual, pela atividade que ele é obrigado a desenvolver no trabalho; ao progresso moral, pela necessidade que os homens têm uns dos outros. A vida social é a pedra de toque das boas e das más qualidades. A bondade, a malvadeza, a doçura, a violência, a benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a fraqueza, a lealdade, a má-fé, a hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o homem perverso tem por móvel ou por incentivo as relações do homem com os seus semelhantes; aquele que vivesse só não teria vícios nem virtudes, porque, se, pelo isolamento, ele se preserva do mal, anula, com isso, o bem. Uma só existência corporal é manifestamente insuficiente para que o Espírito possa adquirir tudo o que lhe falta de bem e despojar-se de todo o mal que em si exista. O selvagem, por exemplo, não poderá numa só encarnação atingir o nível moral do europeu mais adiantado. Isso lhe é materialmente impossível. Deverá ele, portanto, ficar eternamente na ignorância e na barbárie, privado dos gozos que só lhe podem vir com o desenvolvimento de suas faculdades? O simples bom senso repele tal suposição, que seria, ao mesmo tempo, a negação da justiça, da bondade de Deus e da lei progressiva da Natureza.


As vidas sucessivas


A lei das existências sucessivas é-nos ensinada pelos Espíritos instruídos. O testemunho de milhares de almas que se comunicam vem trazer a esta crença a autoridade da experiência diária, porque todos dizem-nos que vêem os erros de suas vidas passadas, que sofrem por isso e que procuram voltar à Terra para reparar as faltas anteriormente cometidas.


Eis o que a respeito diz Allan Kardec:


“O dogma da reencarnação, afirmam certas pessoas, não é novo: ressuscitou de Pitágoras. Nunca dissemos que a doutrina espírita fosse invenção moderna; o Espiritismo, sendo uma lei da Natureza, existe desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos em provar que seus indícios aparecem desde a mais remota antiguidade. Pitágoras, como se sabe, não é o autor do sistema da metempsicose: colheu-o entre os filósofos da Índia e do Egito, onde ele existia desde tempos imemoriais. A idéia da transmigração das almas era, pois, uma crença vulgar, admitida pelos homens mais eminentes. Como lhes veio essa idéia? Pela revelação ou por intuição? Não o sabemos; mas, como quer que tenha sido, uma idéia não transpõe as idades e não é aceita por inteligências escolhidas, se não tiver um lado sério.”


A antigüidade desta doutrina, em vez de constituir-lhe motivo de repulsa, deve ser considerada uma prova a seu favor. Contudo, vê-se que há, na metempsicose dos antigos, um ponto que a diferencia muito da doutrina moderna da reencarnação, e que os Espíritos rejeitam do modo mais absoluto: a transmigração do homem para os animais.


Os Espíritos, ensinando o princípio da pluralidade das existências corporais, fazem reviver uma doutrina que nasceu nas primeiras épocas do mundo e que se conservou até os nossos dias no pensamento íntimo de muitas pessoas; eles, porém, apresentam-na sob um ponto de vista mais racional, mais conforme com as leis progressivas da Natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador, despojando-a de todos os acessórios da superstição. Uma circunstância digna de nota é que não é somente em nossos livros que eles a ensinaram nestes últimos tempos: antes de nossa literatura, numerosas comunicações da mesma natureza foram obtidas em diversos países e se multiplicaram consideravelmente depois.61


Examinemos a coisa sob outro ponto de vista e, abstração feita de toda intervenção dos Espíritos, que ficam de parte por um instante, supondo-se mesmo que nunca se tivesse tratado dos Espíritos, coloquemo-nos momentaneamente num terreno neutro e admitamos no mesmo grau a probabilidade das duas hipóteses, a saber: a pluralidade e a unidade das existências corporais, e vejamos para que lado penderão a nossa razão e o nosso próprio interesse.


Certas pessoas repelem a idéia da reencarnação pelo único motivo de não lhes convir isso, dizendo que lhes basta uma existência e que não desejam ter outra igual; conhecemos alguns que se enfurecem só com o pensamento de reaparecerem na Terra.


Ouvimos fazer este raciocínio: Deus, que é soberanamente bom, não pode impor ao homem o recomeço de uma série de misérias e tribulações. Acharão, porventura, que haja mais bondade em condenar-se o homem a um sofrimento perpétuo por alguns momentos de erro, do que em fornecer-lhe os meios de reparar suas faltas? O pensamento de ser para sempre fixada a nossa sorte por alguns anos de provas, quando nem sempre depende de nós atingir a perfeição na Terra, tem alguma coisa de aflitivo, ao passo que a idéia contrária é eminentemente consoladora: ela deixa-nos a esperança. Por isso, sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências, sem admitirmos uma hipótese de preferência à outra, dizemos que, se fosse concedida a escolha, ninguém preferiria um julgamento sem apelo.


Se não há reencarnação, não haverá senão uma existência corporal: isto é evidente; se a nossa existência corporal é a única, a alma de cada homem é criada na ocasião do seu nascimento. Admitindo-se, segundo a crença vulgar, que a alma nasce com o corpo ou, o que significa o mesmo, que anteriormente à sua encarnação, ela só possui faculdades negativas, apresentamos as questões seguintes:


1º- Por que motivo a alma apresenta aptidões tão diversas e independentes das idéias adquiridas pela educação?


2º- Donde procede a aptidão extranormal de certas crianças para tal arte ou tal ciência, ao passo que muitos adultos ficam inferiores ou medíocres durante toda a sua vida?


3º- Donde vêm, para uns, as idéias intuitivas ou inatas que não existem em outros?


4º- Donde se originam, para certas crianças, esses instintos precoces de vícios ou de virtudes, esses sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza que contrastam com o meio em que elas nasceram?


5º- Por que certos homens, abstração feita da educação, são mais adiantados que os outros?


6º- Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomardes uma criancinha hotentote e a educardes nos nossos liceus de mais nomeada, conseguireis fazer dela um Laplace ou um Newton?


Perguntamos: qual é a filosofia ou a teosofia que pode resolver esses problemas? As almas ao nascer ou são iguais ou são desiguais: das duas uma. Se são iguais, por que são tão diversas as suas aptidões? Dirão que isso depende do organismo? Porém, então nos encontramos com a doutrina mais monstruosa e mais imoral. O homem fica sendo apenas uma máquina, o joguete da matéria, sem a responsabilidade de seus atos e podendo lançar a culpa de tudo sobre as suas imperfeições físicas. Se são desiguais, é porque Deus o criou assim; mas então, por quê? Essa parcialidade se conformará com a justiça e com o amor igual que ele dedica a todas as suas criaturas?


Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e tudo se explica. Os homens trazem, ao nascer, a intuição do que adquiriram; são mais ou menos adiantados, segundo o número de existências que têm percorrido. Deus, em sua justiça, não podia criar almas mais perfeitas nem menos perfeitas; com a pluralidade das existências, a desigualdade que observamos nada tem de contrária à mais rigorosa eqüidade; esta parece não existir, porque só vemos o presente e não o passado. Este raciocínio repousará numa hipótese, numa simples suposição? Certamente que não; partimos de um fato patente, incontestável: da desigualdade das aptidões e do desenvolvimento intelectual e moral, que é inexplicável por todas as teorias em voga e que tem na nossa teoria uma explicação simples, natural e lógica. Será racional preferir-se aquelas que nada explicam?


A respeito da sexta questão, dirão, naturalmente, que o hotentote é de uma raça inferior. Mas, perguntamos, o selvagem é ou não um homem? Se é, por que Deus negou a ele e à sua raça os privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é um homem, por que procuram fazê-lo cristão? A Doutrina Espírita é mais lógica: para ela, não há muitas espécies de homens, e, sim, homens que são Espíritos mais ou menos atrasados e suscetíveis de progredirem; não será isto mais conforme à justiça de Deus?


A crença nas vidas sucessivas era o fundamento do ensino dos mistérios; os filósofos antigos, tendo à sua frente Platão, acreditavam nas vidas anteriores; ele dizia: “Aprender é recordar.


Portanto, a pluralidade das existências da alma tem a seu favor a autoridade da tradição, da razão e da experiência, e é lógico que ela seja aceita com entusiasmo por todos aqueles que já sentiram o vácuo das outras teorias. Com as vidas sucessivas, o Universo nos aparece povoado de seres que percorrem em todos os sentidos o infinito da imensidade. Quão pequena e mesquinha é a teoria que circunscreve a Humanidade a um imperceptível ponto do espaço, que no-la mostra começando num instante dado para acabar igualmente com o mundo que a sustenta, não abraçando assim senão um minuto na eternidade! Quão triste, fria e glacial é ela, quando nos mostra o resto do Universo antes, durante e depois da existência da Humanidade terrena, sem vida, sem movimento, qual imenso deserto imerso no silêncio! Como é desesperadora a pintura que nos faz do pequeno número de eleitos votados à contemplação perpétua, ao passo que a maioria das criaturas é condenada a sofrimentos infindáveis! Quão aflitiva é, para os corações amorosos, a barreira que ela levanta entre os mortos e os vivos!


Ao contrário, quão sublime é a teoria espírita! Como a sua doutrina engrandece as idéias e dilata o entendimento! A Terra nos oferece o espetáculo de um mundo essencialmente progressivo. Saído do estado caótico, ele se transforma e se modifica à medida que avança em seu curso secular. Os seres aparecidos então em sua superfície seguiram a mesma lei de progressão, e a sua estrutura aperfeiçoou-se harmonicamente à medida que as condições exteriores se tornaram melhores. O homem, enfim, saindo dos baixios da bestialidade, elevou-se até o conhecimento do mundo exterior.


Será possível supor-se que não haja laço algum entre as almas que viveram nas épocas passadas e as que vivem atualmente? Sabendo-se que a natureza do homem é ainda tão imperfeita, poder-se-á crer que, depois da morte, ele vá ficar parado e gozar de repouso eterno? E essa parada, esse termo de progresso estará em concordância com as noções que Deus nos permite conceber sobre Ele e sobre suas obras? A Natureza caminha sempre; ela trabalha sempre, porque Deus é a vida e é eterno, e a vida é o movimento progressivo para o supremo bem, isto é, para o próprio Deus.


Seria possível que somente o homem, ele que foi criado livre, pudesse ser bruscamente detido em sua marcha, com o grau de progresso que houvesse adquirido, sem participar do movimento da Natureza? Tal coisa seria incompreensível.


Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha e a outra amplia os atributos de Deus, das quais uma está em desacordo e a outra em harmonia com a lei do progresso, das quais uma estaciona e a outra avança, o bom senso indica de que lado se acha a verdade. Que cada um interrogue a sua razão; ela responderá, e a sua resposta será confirmada por um guia certo que jamais se engana: a consciência.


Se o nosso modo de ver é exato, alguns entretanto perguntarão por que o Poder Criador não revelou desde o princípio qual a verdadeira natureza do homem e seus destinos. A resposta é a seguinte: Deus não revelou isso desde logo, pela mesma razão que não se ensina à infância o que se ensina à idade madura. A revelação limitada foi suficiente durante certo período da Humanidade; Deus concede-a proporcionalmente às forças do Espírito. Aqueles que recebem hoje uma revelação mais completa, são os mesmos Espíritos que já receberam revelação parcial em outros tempos, porém que, desde então, aumentaram sua inteligência. Antes que a Ciência lhes tivesse feito conhecer as forças vivas da Natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro lugar e a conformação da Terra, poderiam eles compreender a imensidade do espaço, a pluralidade dos mundos? Antes que a Geologia tivesse feito conhecer a estrutura deste globo, poderiam eles lançar o inferno para fora de seu seio? Antes que a Astronomia tivesse descoberto as leis que regem o Universo, poderiam eles compreender que não há baixo nem alto no espaço, que o céu não está colocado acima das nuvens nem é limitado pelas estrelas? Antes dos progressos da ciência psicológica, poderiam eles identificar-se com a vida espiritual? Poderiam conceber, depois da morte, uma vida feliz ou infeliz, que não fosse em lugar circunscrito e sob uma forma material? Certamente que, não compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito vasto para o seu cérebro; fora preciso reduzi-lo a proporções menos amplas, que seriam alargadas mais tarde. É o que fazemos hoje, demonstrando, não a inanidade, mas a insuficiência dos primeiros ensinos. Portanto, os espíritas não admitem o paraíso, segundo o significado que ordinariamente se dá a esta palavra. Eles não podem compreender que exista lugar especial de delícias onde os eleitos estejam enfadados por uma eterna ociosidade, nem penitenciária onde as almas estejam eternamente torturadas.


Segundo os Espíritos, não há raça amaldiçoada nem existem demônios; segundo eles, há Espíritos maus em grande número, porém estes não são eternamente votados ao mal, pois têm constantemente a faculdade de se melhorarem nas reencarnações sucessivas. Neste caso, ainda o testemunho dos fatos é formal. Cada dia temos ocasião de verificar que Espíritos endurecidos voltam ao caminho do bem, devido às preces que fazemos por eles e às exortações que lhes dirigimos. Para muitos desses infelizes, a situação intolerável em que se acham parece-lhes eterna. Mergulhados em espessas trevas, desde o momento em que deixaram a Terra, e sofrendo horrivelmente, acreditam que esse estado não terá fim, e desesperam-se; mas, se um sincero arrependimento irromper do seu coração, seus olhos desvendar-se-ão: vêem, então, sua verdadeira situação e pedem, como uma graça, para voltar à Terra, a fim de resgatarem, por uma vida de expiação e de sofrimento, os seus crimes anteriores. Verifica-se que, no mundo dos Espíritos, há alguns que se conservam por muito tempo refratários a toda idéia de submissão; mas, esses também têm o livre-arbítrio: sabemos que a sua hora há de chegar e que ninguém é castigado eternamente.


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