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As missões de Joana D'Arc



Joana d’Arc no estrangeiro


XXI


Na Inglaterra, consideramos Joana a


maior heroína que o mundo já conheceu;


lamentamos quanto com ela fizeram,


tudo o que foi muito mal feito.


Edward Clarke


A vida e a obra de Joana d'Arc suscitaram a admiração de todos os nossos vizinhos. A virgem Lorena, criticada, vilipendiada na França, é, fora de suas fronteiras, objeto de respeito e simpatia universais.


Domremy se tornou um lugar de peregrinações internacionais. A 14 de junho de 1909, os jornais de Nanci publicaram a seguinte notícia:


“Três trens especiais conduziram quinta-feira a Domremy senhoras italianas, que vieram em piedosa romaria à casa onde nasceu Joana d'Arc.”


Do seu lado, os ingleses para lá afluem, quer em grupos, quer isoladamente. Na pequenina aldeia também se encontram americanos, russos, holandeses, belgas, alemães, etc.


A Inglaterra inteira se tomou de entusiasmo pela grande inspirada, e seus filhos não perdem ocasião de glorificá-la.


Às festas normandas, que se celebram no mês de maio em Ruão, assistem todos os anos delegações inglesas, que atravessam a Mancha para, com solenidade, prestar culto à memória da Pucela. Em 1904, o Sr. Tree, presidente da municipalidade de Hastings, compareceu com pomposo cerimonial, revestido de seus trajes de gala, precedido pelos dois maceiros tradicionais, para depor um ramo de lírios, de ferro forjado, exatamente no local em que Joana foi supliciada.


Em 1909, esse belo gesto se repetiu. Numeroso cortejo de ingleses concorreu às festas de Ruão. O Sr. Edward Clarke, vice-presidente da União Joana d'Arc de Rouen, e que então desempenhava as funções que em 1904 eram exercidas pelo Sr. Tree, tomara a iniciativa dessa manifestação. Alguns dias antes, escrevia ele ao maire da importante cidade normanda:


“Não há neste fato uma lição aos franceses a renderem sincera homenagem a Joana d'Arc. Na Inglaterra, consideramos Joana a maior heroína que o mundo já conheceu; lamentamos quanto com ela fizeram, tudo o que foi muito mal feito”. (270)


A 30 de maio de 1909, Sir Edward Clarke, em nome da delegação inglesa a que presidia, renovava essas tocantes declarações, que provocaram muitos aplausos.


Em 1885, tendo um italiano, o conde Balsami, descoberto nos arquivos do Vaticano uma memória do décimo quinto século sobre os “milagres” praticados por Joana, constituiu-se uma comissão a fim de esmerilhar e verificar tal documento.


Para chefiá-la foi designado um cardeal inglês, o eminente Howard, de ilustre ascendência, o qual, a propósito desse encargo, se exprimiu de maneira nobilíssima:


“Não é com ensangüentadas mãos que vou folhear as páginas desta sublime história; ao virá-las, meus dedos serão movidos pelo arrependimento.”


A Inglaterra já repudiara o crime de Bedford, desde o dia em que a rainha Vitória, querendo ter sob os olhos a imagem da nossa Joana, mandou pintar-lhe o retrato.


Católica, a Inglaterra não procurara intimidar Roma, quando foi do Processo de reabilitação; já protestante, auxiliou quanto pôde a beatificação.


Espetáculo comovedor: o leopardo se estira aos pés da virgem de Domremy e lhe implora o perdão!


Não há neste fato uma lição aos franceses? um convite a que teçam a mais bela das coroas para a sua heroína e a que, como os nossos vizinhos de Além-Mancha, se penitenciem diante daquela para com quem todos os partidos se fizeram criminosos? Certamente que sim, criminosos! Eram católicos franceses os que a condenaram, exatamente quando os realistas a abandonavam à sua cruel sorte, e os livres pensadores não procederam melhor: um de seus chefes, Voltaire, a profanou e ainda hoje é entre eles que se enfileiram os que a detratam.


*


Indaguemos de que modo a memória de Joana conquistou pouco a pouco a opinião pública na Inglaterra e na Alemanha. Neste exame, inspirar-nos-emos muito especialmente no trabalho do Sr. James Darmesteter: Nouvelles Études Anglaises e na interessante brochura do Sr. Jorge Goyau: Jeane d'Arc devant l'opinion allemande.


Antes de tudo, no que concerne à opinião inglesa, citemos Darmesteter:


“Na Inglaterra, a vida de Joana d'Arc, a partir de sua morte até nossos dias, se divide em três períodos: feiticeira, heroína, santa; primeiramente, dois séculos de insultos e de ódio; depois, um século de justiça humana; finalmente, em 1793, uma era se abre de adoração e de apoteose!”


Pertencem ao primeiro período as crônicas de Caxton e Holinshed e o Henrique VI, atribuído a Shakespeare. Aí pára a onda de rancor e de calúnia, que a obra de Joana d'Arc levantou. Em 1679, o Dr. Howell já reconhece que “a famosa pastora Joana de Lorena fez bem grandes coisas”.


Em 1747, o historiógrafo Conservador William Guthrie escreve, a propósito do julgamento da Pucela: “Como o ouro, ela saiu mais pura de cada prova.” Pouco depois, John Wesley, comentando a narração de Guthrie, acrescenta: “Ela certamente não merecia aquela sorte, fosse uma entusiasta convencida, ou uma pessoa que aprouvera a Deus fazer nascer para a libertação de seu país.”


Em 1796, aparece a célebre obra de Southey: “Joan of Are”, poema épico cheio de lacunas e de erros, mas impregnado de um sentimento generoso. Destacaremos algumas de suas passagens.


Joana, a caminho de Chinon, conta aos companheiros de viagem, entre os quais o autor coloca Dunois, as impressões de sua meninice e como se inteirou da missão que lhe fora confiada. Os seus não a estimam; ela reside em casa de um tio e apascenta o rebanho do pai nas margens do Mosa. A beleza da paisagem e a solidão dos bosques pouco a pouco lhe atuam na alma contemplativa; a morte de uma amiga lhe abre o coração aos sofrimentos humanos; uma conversação entusiástica a abala e exalta. Diz ela:


“Idéias guerreiras assediam-me o espírito, a ponto de me não ser possível adormecer, senão quando raia a alvorada. O sono, porém, não me acalmou o espírito sobreexcitado, pois que surgiram visões, mandadas, estou crente, pelo Altíssimo! Vi uma cidade fortificada por todos os lados, guarnecida de altas torres e cercada pelo inimigo. A fome a espreitava com olhos chamejantes e, pousado perto de um monte de esqueletos, um corvo devorava despojos sangrentos. Voltei-me então para o campo dos sitiados e notei que lá havia festa; gargalhadas grosseiras ressoavam estrepitosamente aos meus ouvidos e admirei aqueles chefes, que até durante os festins concertavam planos de morticínio.


Confrangeu-me o coração e imenso desgosto me invadiu a alma. Pareceu-me, depois, que de uma nuvem, tão negra como as que geram a tempestade, um braço gigantesco surgiu e deixou cair uma espada, que riscou, qual relâmpago, as trevas da noite. Escutei então uma voz que de novo ressoará na hora de terrível júbilo em que, exânime, o inimigo desmaiará diante da minha cólera. Desde essa noite, senti minha alma cheia de cuidados, a palpitar sob a ação da força divina que se infiltrava no meu ser. Pus-me a cismar, pensando nos dias vindouros, sem ver o que se passava à volta de mim e sem me preocupar com coisa alguma, mergulhada nessa modorra da alma em que todos os sentidos corporais ficam como que entorpecidos e em que só o Espírito se mantém vigilante. Ouvi desconhecidas vozes, no sibilar do vento à tarde; formas estranhas, mal distinguíveis, povoavam, em multidão, o espaço, à hora do crepúsculo. Espantaram-se os que me tinham conhecido outrora jovial e descuidosa.” (Livro I, versos 440 e seguintes.)


“Sim, capitão – diz ela a Dunois –, o mundo, cedo, acreditará na minha missão, porque o Senhor fará com que a indignação se avolume e derramará sua cólera sobre os que oprimem e eles perecerão.” (Livro I, os quatro últimos versos.)


O autor não pinta Joana como uma devota: ela declara, aos teólogos que a interrogam, que, na contemplação da Natureza e não nas práticas exteriores da piedade, é que agora se lhe depara o conforto e a comunhão divina. (Livro III, versos 400 e seguintes.) Têm-na por herética e querem submetê-la ao julgamento de Deus; mas, eis que Joana exclama, apontando para um túmulo próximo:


“A espada de Deus está aqui; a tumba vai falar para prová-lo. Ouvis? Lá estão as armas que espalharão o terror no exército inimigo; empunha-las-ei na presença do nosso rei e do povo reunido; tira-las-ei deste túmulo onde se acham enterradas a longo tempo, incorruptíveis, ocultas, destinadas a mim, a enviada do céu!”


Não sem dificuldade Joana consegue pôr-se a caminho, para ir ao encontro do exército. Enverga o arnês no santuário de Santa Catarina. Vai partir desassombradamente, não obstante saber de que maneira morrerá:


“Corria a última noite que passei em Domremy; sentara-me perto do regato, com a alma transbordante do espírito divino. Divisei então uma tropa de bandidos, cercando uma fogueira; no poste, estava amarrada uma mulher; os ferros lhe magoavam o peito e em torno de seus membros o fogo lançava ardentes labaredas. Observei-lhe os traços e me reconheci.” (Livro IV, linhas 310 e seguintes.)


A obra de Southey acentuou a reviravolta da opinião em prol de Joana. Certos críticos ingleses, entretanto, a consideraram insuficiente. Thomas de Quincey, um dos mais eruditos escritores daquele tempo, censura o poeta, por haver posto termo à carreira da heroína na sagração de Remos e por se ter esquivado de tratar da sua paixão. Diz a esse respeito:


“Tudo o que lhe cumpria fazer estava feito; restava-lhe sofrer. Jamais, desde que os primeiros fundamentos da Terra foram lançados, houve processo comparável ao seu, se pudéssemos desdobrá-lo em toda a sublimidade da defesa produzida, em todo o horror infernal dos ataques suportados. Oh! filha da França, pastora, camponesa calcada aos pés por todos os que te cercam!”


Há um século a Inglaterra não cessa de render à memória de Joana as mais calorosas homenagens. Richard Green a considera como “a figura toda pureza que se destaca do seio da avidez, da luxúria, do egoísmo, da incredulidade do tempo.” Multiplicam-se as biografias, as apologias da heroína. Citemos também estas palavras de Carlyle:


“Joana d'Arc deve ter sido uma criatura de sonhos cheios de sombras profundas e de intensa luz, de sentimentos indizíveis, de pensamentos que erravam pela eternidade. Quem pode descrever as provações e os triunfos, as esplendências e os terrores que tiveram por palco aquele Espírito simples?”


Há sessenta anos, o jovem pastor e poeta John Stirling celebrava, a seu turno, a nossa libertadora e nela via e a personagem talvez mais maravilhosa, mais delicada, mais completa de toda a história do mundo. E acrescenta:


“Muito alto, entre os mortos que dão melhor vida aos que vivem, vede brilhar, vestindo a sua sagrada couraça, a jovem camponesa que o Senhor da paz e da guerra enviou, qual carro chamejante, bem longe do aprisco materno.”


A obra recentíssima do escritor escocês Andrew Lang, sobre Joana d'Arc,(271) veio completar esse acervo de trabalhos e constitui magnífica defesa da heroína, cuja causa o autor sustenta com chiste e sagacidade, contra os ataques dissimulados de Anatole France. Desde que, pelo meado do século XVIII, diz ele, David Hume, graças aos cronistas escoceses, pôde convencer-se da iniqüidade que presidiu à condenação de Joana, toda a gente na Inglaterra ficou esclarecida a respeito desse acontecimento histórico.


Daí por diante, glorificaram a mártir de muitas maneiras. Todas as crenças lhe conhecem a história sem paralelo, afirma Andrew Lang. Quaisquer que fossem as dificuldades que se apresentassem, Joana as compreendia imediatamente, resolvia o problema e, conforme as circunstâncias, procedia como um capitão, como um sábio, ou como grande dama (pág. 6). Na virgem, o que, sobretudo, lhe causa admiração é a vontade, a tenacidade (pág. 193). Nada consegue descoroçoá-la, quando se trata de chegar ao que considera ser em benefício do reino. Em Ruão, é sublime de coragem e de resolução, quando se nega a prometer sob palavra que não se evadirá, preferido assim suportar a odiosa companhia de “malfeitores”, a sacrificar seu legítimo direito! (Pág. 252.)


Quanto às forças de que a Inglaterra lançou mão para invadir a França, afirma o autor, baseado em documentos até agora inéditos, que, para infundir terror ainda nos mais audaciosos corações franceses, a nação inglesa fez preparativos consideráveis e despesas sem conta, aproveitando as últimas invenções da arte militar (pág. 66). Mas, acrescenta, os ingleses não eram em número bastante para conservar a conquista.


Andrew Lang se vê forçado a confessar que a Ciência não pode explicar tudo o que se nota na vida de Joana d'Arc. Espera, entretanto, que o consiga um dia (página 14). Sua expectativa não será vã.


A América também possui uma “Vida de Joana d'Arc”, (272)muito apreciada e devida à pena de Francis Lowell.


*


Na Alemanha, os feitos heróicos de Joana d'Arc, diz-nos o Sr. Jorge Goyau,(273) eram conhecidos e acompanhados dia a dia, do que existem provas escritas; por exemplo – o Memorial de Eberhard de Windecke, historiógrafo do imperador Sigismundo.


Um século mais tarde, pelos fins do reinado de Francisco I, na mesma ocasião em que Du Maillan, cronista privilegiado dos Valois, difamava a Pucela e em que Étienne Pasquier testemunhava com dor o descrédito em que sua memória caíra em nosso país, um jovem prussiano, Eustáquio de Knobelsdorf, improvisava patético elogio à grande inspirada.


Em 1800, Schiller, que a Convenção honrara com o título de cidadão francês, num poema trágico de belo surto, vingava Joana d'Arc das insânias de Voltaire.


Esse poema foi levado à cena e obteve em toda a Alemanha extraordinária aceitação. De 1801 a 1843, representou-se a “Pucela de Orléans” nada menos de 241 vezes, unicamente em Berlim; não se cansavam de aplaudi-la. Assim é que, diz Goyau, graças à obra de Frederico Schiller, a glória da heroína Lorena se confunde com a glória literária da Alemanha.


Goethe escrevia a Schiller: (274) “Sua obra é tão boa, tão boa e tão bela, que não vejo o que se lhe possa comparar.” Longe, no entanto, está ela da perfeição.


O autor viu em Joana uma alma inflamada pelo patriotismo, mas, em seu drama,(275) deturpou completamente a História.


O poema, não obstante, contém passagens que merecem assinaladas. Aqui está, primeiramente, como Schiller nos apresenta a heroína:


“Um campônio traz de Vaucouleurs um capacete, que uma cigana, por assim dizer, lhe impusera. Ao notá-lo, Joana se aproxima e, vendo nesse capacete um sinal do céu, dele se apodera e avidamente escuta a narração do lavrador, que acaba de ser informado da situação angustiosa de Orleães e da desunião dos franceses. Inspirada, ela profetisa a ressurreição da pátria com o auxílio de Deus. Ganha Chinon, onde, imediatamente, a vitória que alcança num combate e a sua clarividência, muitas vezes verificada, lhe granjeiam a benevolência da corte.”


A partir daí o drama se transforma em puro romance. No fim, Joana, capturada pelos ingleses, lhes propõe altivamente, em nome do rei Carlos VII, um tratado de paz, se concordarem em restituir à França o que lhe tomaram, advertindo-os de que chega a seu termo o poder de que se orgulhavam. Enquanto isso se passa, o exército francês tenta libertar Joana, que os inimigos desejam sacrificar. Do alto da torre em que a enclausuraram, sob a guarda de Isabeau, encarregada de lhe dar o golpe de misericórdia se os ingleses levassem a pior, a heroína segue emocionada as peripécias do combate, conforme lhe é descrito por um soldado, que ocupa um posto de observação. As preces da virgem acompanham os franceses. Eis, porém, que os adversários cercam o rei! Uma invocação ardente dá a Joana o poder de despedaçar as grossas cadeias que a prendem e de correr em socorro dos seus. Da torre, vêem-na libertando o monarca e alcançando a vitória para os franceses, mas a troco da vida. Morre assim gloriosamente, no campo de batalha, tendo uma última visão, em que a Virgem Santíssima a acolhe sorrindo. A um aceno do rei, todos os estandartes delicadamente cobrem o belo corpo enregelado da Pucela.


Indubitavelmente, não conseguiríamos reconhecer a nossa Joana em a personagem do poeta alemão, que não se embaraçou com a verdade histórica. Seu drama passará, todavia, à posteridade, porque documenta o nobre ideal do autor, em versos, ora incisivos, que se gravam na memória como sentenças, ora tão tocantes, tão verdadeiramente humanos, que deixam na alma funda impressão.


Um crítico eminente, A. W. Schlegel, exprimia nestes termos a admiração que lhe causava o caráter de Joana d'Arc, na obra de Schiller:(276) “A alta missão, de que se mostra consciente e que infunde respeito a quantos dela se acercam, produz um efeito extraordinário e prenhe de grandeza.”


Schlegel, ilustre amigo de Mme. de Staël, consagrou uma peça em verso ao suplício da heroína. Nessa obra, censura violentamente a Voltaire e parece mesmo pedir contas a todo o povo francês do erro cometido pelo filósofo: “Um poeta, diz, não! um insultador da piedosa vidente ultraja a criatura puríssima; a glória da História, num poema infame, vos serve de repugnante passatempo.” E, com veemência, trata os franceses de “raça sem coração, alheia à lealdade e ao direito, ora opressora ora escrava, nunca branda, nunca livre”.(277) Por outro lado, Mme. de Staël escrevia no seu livro De l'Allemagne: “Só os franceses permitiram que se insultasse a memória de Joana; é um grande erro do nosso país não resistir ao motejo, quando se lhe apresenta sob uma forma picante”. (278) Schlegel, diz J. Goyau, (279) traduzia em invectivas a severa observação de Mme. de Staël; para lhe reprimir a torrente de injúrias, seria bastante dizer-lhe, numa palavra, que a França de Voltaire não é a França inteira.


Aí termina a odisséia literária da Pucela, na Alemanha.


Depois de 1815, um publicista bávaro, Friedrich Gottlob Wetzel, escreveu uma tragédia sobre Joana d'Arc.


O barão de la Motte-Fouqué, descendente de refugiados protestantes, para celebrar a heroína, se faz tradutor e adaptou ao gosto alemão a História de Joana d'Arc, de Lebrun des Charmettes.


Porém, a obra mais rigorosamente histórica, consagrada, além Reno, à nossa Joana, é a de Guido Gœrres. José Gœrres e seu filho Guido escreveram um livro “em que depunham aos pés da virgem francesa as homenagens da Alemanha”.


Joana d'Arc é a enviada de Deus para a salvação da França: tal a tese que José Gœrres sustenta, no prefácio que compôs para o livro do filho. Explica-nos ele:


“Já de muito longe se vinha preparando a Reforma e, de mais longe ainda, a Revolução; ora, nem uma, nem outra devia encontrar a Inglaterra e a França reunidas sob o mesmo cetro, porquanto, no estado de completo absolutismo que houvera pesado sobre o mundo europeu, elas teriam sido sufocadas pela força puramente material, ou, então, estendendo-se vitoriosamente por sobre esta parte do globo, teriam produzido uma anarquia desenfreada, e, num caso como no outro, a dissolução da ordem social. Era, além disso, destino dos franceses tornarem-se, nas mãos de Deus, durante as eras subseqüentes, um látego e um aguilhão para os demais povos, e à França não fora possível desempenhar esse papel providencial, se não se livrasse da dominação estrangeira e não conservasse a sua individualidade”.(280)


Segundo José Gœrres, Joana pertencia a dois mundos, ao da Terra e ao do Céu; fora chamada a exercer sua ação naquela, como enviada deste. Assim sendo, pertencia a todos os povos, ao povo francês pelo sangue, aos outros pelos seus nobres feitos.


Por pouco Guido Gœrres não precedeu Quicherat em suas pesquisas. Montalembert tivera a intenção de atacar esse grande assunto; mas, o trabalho de Guido Gœrres, afigurando-se-lhe muito importante, fê-lo desistir da empresa, conforme comunicou ao pai desse escritor, em carta que lhe dirigiu. Guido, depois de passar algum tempo em Orleães, veio a Paris, freqüentou a Biblioteca Nacional e projetava novo livro sobre a Pucela, mais documentado do que o primeiro, quando foi chamado à Alemanha, onde outros trabalhos lhe ocuparam a atenção.


Dessa época em diante, uma plêiade de sábios, de historiadores, de escritores de todas as categorias, se pôs, além Reno, a comentar a epopéia da virgem Lorena.


Pela pena dos dois Gœrres, o catolicismo alemão rendera homenagem à Pucela; e Carlos Hase, em 1850, lhe trouxe as homenagens do protestantismo. (281) Hase é também um admirador apaixonado de Joana d'Arc. Guido Gœrres instaurara, entre os católicos da Alemanha, uma espécie de culto de Joana d'Arc; Carlos Hase instituiu entre os protestantes uma espécie de religiosidade de Joana.


O historiador Reinhold Pauli, em 1860, declarava que “para todos os espíritos imparciais, ela era um enigma”. (282)


Um dos biógrafos alemães de Joana, (283) o professor Hermann Semmig, ousava escrever, em 1883: “Na França, fora de Orleães, a Pucela em parte alguma é tão cara ao povo francês, quanto ao alemão”. (284)


Escreve ainda J. Goyau: (285)


“A Alemanha parece afetar uma espécie de coquetismo para com a Pucela; e esse coquetismo, na expressão de que se reveste, quase que nos é ofensivo. Se a França pudesse ser acusada de esquecer Joana, aí estaria a Alemanha para festejá-la; se algum francês difama a donzela, surge logo um alemão como seu cavalheiro. Dir-se-ia que a Alemanha literária e sábia, constantemente enamorada da antiga Velléda, tem uma certa inveja dos franceses.”


Esse interesse apaixonado pela nossa heroína demonstra até que ponto os alemães amam o ideal. Entre eles, os escritores de todas as escolas – racionalistas e espiritualistas, fisiologistas e místicos –, dirigiram os olhares para essa figura tão francesa, que projeta, através dos séculos, uma faixa luminosa.


*


A Itália conta, sobre o mesmo assunto, A Crônica Geral de Veneza ou Diário, de Antônio Morosini, recentemente traduzida e publicada. (286)


A. Morosini, nobre veneziano e negociante armador de real mérito, redigiu com esse título um jornal, mantido sem interrupção desde 1404 até 1434, a respeito do qual fez a Revue Hebdomadaire os comentários seguintes:


“Observador perspicaz e judicioso, Morosini intercalou no texto vinte e cinco cartas ou grupos de cartas, em que se relatavam as ações da Pucela, à medida que iam sendo praticadas. Ficou assim composto, espontaneamente, o mais sincero dos conjuntos, a série mais cativante de noções, de impressões e de sensações, redigidas não só semana a semana, mas quase que dia a dia.


A maior parte dessa correspondência proveio de Burges, a grande praça comercial da Flandres, centro de negócios, de transações e de informações. As missivas, algumas vezes, são resumos de cartas de várias procedências, da Borgonha, de Paris, da Bretanha. Outras procedem diretamente de Avignon, de Marselha, de Gênova, de Milão, do Monferrat. Têm por principal autor o veneziano Pancrazio Giustiniani, residente em Burges. A seu lado, aparece também Giovanni de Molino, estabelecido em Avignon.


Em muito poucos dias, a 10 de maio talvez, com uma rapidez verdadeiramente assombrosa, chegava de Orleães a Flandres a notícia do combate das Tourelles, que se ferira a 7, com a previsão do levantamento imediato do cerco. Pelo correio ordinário, na mala que viaja entre Burges e a cidade dos Doges, Pancrazio Giustiniani a expede quase que imediatamente para Veneza, endereçada a seu pai. No mesmo dia, 18 de junho, Antônio Morosini transcreve a carta, a preserva e salva.


Em seguida, com intervalos mais ou menos curtos, registra, copia ou resume contínuas missivas. A retirada dos ingleses, Patay, a sagração e a marcha sobre Paris são anunciadas, observadas, transmitidas, refletindo a estupefação e o entusiasmo produzido por essas incompreensíveis realidades. Mesmo depois do horrível regresso ao Líger, do desastre de Compienha, as simpatias continuam. Correm boatos de invasão e de reabertura da campanha. Até ao suplício de Ruão, o drama é acompanhado com uma emoção que não desfalece”. (287)


*


Por esse rápido estudo, pode ver-se como Joana, glorificada em toda parte no estrangeiro, mesmo por seus inimigos de antanho, só encontrou detratores no país do qual ela fez uma nação livre e vitoriosa. O culto que lhe é prestado fora da França não será de molde a tocar os seus depreciadores, que se dizem animados de sentimentos internacionalistas? Somente na França Joana foi infamada, por escritores talvez de mérito, mas incapazes de compreendê-la, porque nela o humano e o divino se confundem e harmonizam numa ideal figura, que de muito nos sobrepuja a todos.


Sua vida é como que um reflexo da do Cristo. Como o Nazareno, nasceu entre os humildes; como ele, sofreu a injustiça e a crueldade dos homens. Morta ainda jovem, iluminaram-lhe a breve e dolorosa existência, como iluminaram a do Cristo, os raios cintilantes do mundo invisível. Nota-se mesmo a mais, na da virgem, um especial elemento de poesia: é que ela era mulher e, entre as mulheres, uma das mais sensíveis e das mais ternas. Coisa singular e emocionante: essa guerreira teve o dom de pacificar e de unir. Tudo ela atrai a si. Os ingleses, que a imolaram, são hoje os seus mais ardorosos partidários; na própria França, para todos aqueles cujas almas o vento do cepticismo não secou, as divergências na maneira de ver o que lhe diz respeito se esbatem e desvanecem numa veneração comum.


*


Falamos das almas ressecadas. Grande é o número delas entre nós. Há um século, o cepticismo vem fazendo a sua obra, que se traduz no empobrecimento cada vez maior das fontes da vida e do pensamento. Longe de constituir uma força, uma qualidade, ele é antes uma doença do Espírito. Destrói, aniquila a confiança que devemos depositar em nós mesmos, em nossos recursos ocultos; a confiança na possibilidade de nos desenvolvermos, engrandecermos e elevarmos, por um esforço contínuo, através dos planos magníficos do Universo; a confiança na lei suprema, que tira o ser do fundo dos abismos da vida e lhe abre à iniciativa, ao vôo, as infinitas perspectivas do tempo e o vasto teatro dos mundos.


O cepticismo bambeia pouco a pouco as molas da alma, amolece os caracteres, extingue a ação fecunda e criadora. Poderoso para destruir, jamais criou qualquer coisa de grande. Crescendo, pode tornar-se um flagelo, causa de decadência e de morte para um povo.


O criticismo é produto do espírito céptico do nosso tempo e já executou lento trabalho de desagregação, reduzindo a pó tudo o que compunha a força e a grandeza do espírito humano. Tem na literatura seu principal meio de influenciar. Nesse domínio, Renan foi um criador e um como modelo do gênero. Anatole France é atualmente o mais ilustre representante dessa escola, que todos os dias recruta numerosos prosélitos entre a nossa juventude. A nova geração se deixa seduzir pela forma elegante da linguagem e pela magia da expressão, nos seus predecessores, e também pela consideração mórbida de que é mais fácil criticar e zombar, do que estudar a fundo um assunto e tirar conclusões lógicas. Renunciam, assim, gradativamente, a toda e qualquer convicção, para se comprazerem numa espécie de diletantismo vago e estéril. É de bom tom ostentar uma atitude de desiludido, considerar vão todo esforço e inacessível a verdade, fugir de todas as tarefas penosas, satisfazendo-se com a comparação das opiniões e das idéias, para as tratar com ironia e lançá-las ao ridículo.


Tão indigente quanto funesto é o método, pois que debilita a inteligência e o discernimento, resultando daí, afinal, um amesquinhamento sensível das qualidades viris de nossa raça, uma despreocupação dos grandes deveres da existência, um desconhecimento do objetivo da vida, que avançam, passo a passo, penetram no coração do povo e tendem a secar as fontes da energia nacional.


Os progressos do cepticismo se explicam, até certo ponto, pelo fato de que, entre nós, as formas da fé não mais correspondem às exigências do espírito moderno e da lei de evolução. A religião carece de bases racionais, nas quais se possa edificar uma convicção forte. O espiritualismo experimental vem preencher essa lacuna e oferecer à alma contemporânea um terreno de observação, um conjunto de provas e de fenômenos, capaz de constituir apoio firme para as crenças do futuro.


Como nas épocas de Joana e do Cristo, o sopro do invisível passa sobre o mundo e vai reanimar as coragens abatidas, despertar as almas que pareciam mortas. Cumpre não desesperar jamais do porvir de nossa raça. O gérmen da ressurreição está dentro de nós, em nossos espíritos, em nossos corações. A fé esclarecida, a confiança e o amor são as alavancas da alma; quando esses sentimentos a inspiram, sustentam e arrebatam, não há culminância que ela não possa atingir!


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