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As missões de Joana D'Arc



Joana d’Arc no século XX; seus admiradores; seus detratores


XX


Dói-me ver que os franceses

disputam entre si minha alma.


Jehanne


A segunda metade do décimo nono século e o começo do século XX assistiram à formação de uma forte corrente de opinião, simultaneamente leiga e religiosa, a favor da virgem Lorena. As reputações mal firmadas não resistem à ação do tempo. A fisionomia moral da heroína, ao contrário, se engrandece com o correr dos anos e rebrilha com mais vivo fulgor.


De duas fontes emana essa corrente de opinião. De um lado, servem-lhe de origem as numerosas obras de história e de erudição, publicadas por J. Michelet, Quicherat, H. Martin, Wallon, Siméon Luce, J. Fabre, e outros. Nesta ordem de idéias, nenhum assunto ainda gerou tão imponente cabedal de trabalhos.


Flui também dos inquéritos e do processo dirigidos pela Igreja Católica, tendo em vista a canonização de Joana d'Arc. De ambos os lados, a memória da heroína encontrou admiradores sinceros e defensores generosos. Após longo período de silêncio e de esquecimento, opera-se como que um acordar do entusiasmo. É de dar a supor que estamos no dia seguinte ao da libertação de Orleães. À medida que os trabalhos avançam, luz mais completa se faz. A grande figura sai dos limites estreitos em que o passado a confinara e aparece em toda a sua beleza, como a mais pura encarnação da idéia de pátria, como um verdadeiro messias nacional. Esse ímpeto magnífico de simpatia não cessou de acentuar-se, mau grado aos esforços de alguns detratores, dos quais mais longe falaremos. Hoje, a Pucela está a pique de tornar-se o vulto histórico mais popular de nosso país.


Em 1884, o gabinete político presidido por Dupuy tomou a iniciativa de uma festa nacional em honra de Joana d'Arc. A 30 de junho, uma primeira proposta foi feita à Câmara, assinada por 252 deputados, e começava por uma exposição de motivos assim concebida:


“Grande movimento de opinião acaba de produzir-se em favor da instituição de uma festa nacional de Joana d'Arc, festa que seria a do patriotismo.


Cumpriria optar por uma de duas datas: a de 8 de maio, data gloriosa da libertação de Orleães, e a de 30 de maio, data aniversária da morte de Joana d'Arc.


Estando a 30 de maio muito próxima do 14 de julho, proporíamos a 8 de maio.


“Nesse dia, todos os franceses se uniriam numa benéfica comunhão de entusiasmo.”


A comissão de iniciativa concluiu opinando que a proposta fosse tomada em consideração. Mas, ao encerrar-se a legislatura, ficou pendente e depois foi submetida ao Senado a requerimento de 120 senadores republicanos.


No parecer que sobre o assunto apresentou à alta câmara, o Sr. Joseph Fabre, senador do Aveyron, se exprimia assim:


“Nem o Oriente com todas as suas lendas, nem a Grécia com todos os seus poemas, nada conceberam que se possa comparar a esta Joana d'Arc que a História nos deu.”


Concluindo, dizia:


Não será azado o momento para opor-se esta grande memória às declarações perigosas de todos os pontífices do cosmopolitismo, que intentam persuadir-nos de que nem sequer nos resta a única religião que não comporta ateus, a religião da pátria?”


O Senado votou o projeto de lei e o enviou à Câmara.


A 29 de julho de 1890, o Conselho Superior da Instrução Pública, por sua vez, adotou a seguinte resolução:


“É declarado dia de festa, para todos os estabelecimentos de instrução pública, o 8 de maio de cada ano, data aniversária da libertação de Orleães.”


Essa decisão não teve andamento. Quanto ao projeto de lei que o Senado aprovou, dorme ainda nas pastas da Câmara. Nem o seu exame, nem a sua discussão foram iniciados em sessão pública, apesar de uma enérgica petição das mulheres da França. Grave falta cometeram assim os deputados republicanos. A indiferença, a má vontade que hão demonstrado permitiram que os católicos tomassem a dianteira, que se apoderassem da nobre figura da virgem e a colocassem nos seus altares. Quando ela devia pertencer a todos os franceses, constituir um laço que unisse os diversos partidos, para lhe honrar a memória, corre o risco de tornar-se exclusivamente prisioneira de uma religião.


Que considerações detiveram os políticos cépticos da Câmara? Provavelmente, as idéias de Joana d'Arc e o caráter espiritualista de sua missão. Mas, as vozes existiram, o mundo invisível interveio. A solidariedade que liga os seres vivos se estende para além do mundo físico, enlaça duas humanidades e se revela por fatos. As Entidades do Espaço salvaram a França no décimo quinto século, por intermédio da heroína. Agrade ou não, a História não se suprime. A França e o mundo estão nas mãos de Deus, ainda quando governam os ateus e materialistas. A própria Revolução traduz um gesto das potências invisíveis; porém, a idéia matriz, que a inspirou, permaneceu incompreendida.


Pode-se combater o clericalismo e seus abusos; mas, o ideal espiritualista e religioso nunca poderá ser destruído. Dominará os tempos e os impérios, transformando-se com eles, para assumir uma amplitude e elevação sempre e sempre maiores.


Quanto a essa espécie de monopolização da memória de Joana pela Igreja Católica, só foi possível, não o esqueçamos, graças à pequenez d’alma de certos republicanos.


Joana se constituiu credora da afeição tanto dos democratas, como dos clericais, por títulos da mesma valia. De fato, sua obra não é somente uma afirmação do Além, senão também a glorificação do povo, de cujo seio ela emergiu, a glorificação da mulher, a do direito das nações e, sobretudo, a consagração da inviolabilidade das consciências.


Muito diversa da dos republicanos de nossos dias era a maneira pela qual os homens de 89 e de 48 concebiam a personalidade ideal de Joana. Ante a sua memória, todos se inclinavam e Barbès escrevia: “dia virá em que até a mais pequenina de nossas aldeias lhe erigirá uma estátua.”


Da parte dos católicos, o movimento de opinião em favor da libertadora se operou regular e continuamente. O bispo de Orleães, Monsenhor Dupanloup, foi o primeiro a pensar no projeto da canonização. A 8 de maio de 1869 dirigiu ao papa Pio IX um requerimento, assinado por grande número de bispos, pedindo que a “Pucela, proclamada santa, pudesse receber nos templos as homenagens e orações dos fiéis”. Os sucessos de 1870 e a queda do poder temporal retardaram os efeitos dessa primeira súplica. Mas, pouco depois a questão voltou à baila e o “processo de informação”, ordenado em 1874, terminou em 1876.


A 11 de outubro de 1888, trinta e dois cardeais, arcebispos e bispos franceses dirigiram a Leão XIII “uma suplicação, para que Joana d'Arc fosse sem demora colocada nos altares”.


A 27 de janeiro de 1894, a Congregação dos Ritos unanimemente se pronunciava favorável à admissão da causa e Joana era declarada “venerável”. É o primeiro grau da canonização.


Em seguida, veio a beatificação, celebrada com grande pompa a 24 de abril de 1909, em São Paulo de Roma, por Pio X, estando presentes 30.000 peregrinos franceses, entre os quais 65 bispos. A multidão, transbordando do templo, enchia o adro e se comprimia na praça, até à colunata de Bernin.


Para justificarem essa beatificação, recorreram a motivos de causar pasmo: “curas milagrosas” de cancros e outras moléstias operadas por Joana d'Arc em religiosas, a cujas preces atendera. Sabemos que tais curas são uma das condições que a Igreja impõe para a canonização; mas não achariam coisa melhor?


De maneira alguma pensamos em censurar as manifestações solenes que se efetuaram em Roma e na França inteira. A todos os franceses assiste o direito de honorificar a seu modo a libertadora. Apenas lamentamos que um partido político aproveite quase exclusivamente dessa beatificação, por culpa de republicanos materialistas e maus patriotas, baldos de senso prático e de clarividência.


Dizemos – partido político. Com efeito, no movimento católico em favor de Joana, evidencia-se o interesse de casta. Exploram a memória da heroína e a deformam, santificando-a; procuram fazer dela um troféu, um emblema de aliança, para lutas semipolíticas, semirreligiosas. Essas homenagens, parece, pouco sensibilizam a virgem Lorena. Às cerimônias ruidosas, Joana prefere a afeição de tantas almas modestas e obscuras, que a sabem amar em silêncio e cujos pensamentos ascenderam até ela, como o perfume suave das violetas, na calma e no recolhimento da prece. Tocam-lhe mais esses preitos mudos, do que o estrépito das festas e o ressoar do órgão ou dos canhões.


*


A corrente católica provocou uma corrente oposta. Só de há pouco tempo se observa, com um misto de admiração e de assombro, o delineamento de uma campanha de enxovalho contra Joana d'Arc. Ao passo que todos os povos no-la invejam, que os alemães a glorificam pela obra de Schiller, que os próprios ingleses a enaltecem, proclamando-a um dos mais belos exemplos oferecidos à Humanidade, é na França que se ouve criticar, rebaixar uma das mais puras glórias do nosso país.


Uma classe inteira de escritores, pensadores livres, se encarniçou contra o renome de Joana. Até a franco-maçonaria, associação poderosa, que, por séculos, foi o asilo de todas as idéias generosas, o refúgio e o esteio dos que pela liberdade combatiam a opressão, obcecada agora pelo seu materialismo doutrinal, desceu a ponto de tomar a iniciativa de um movimento infenso à grande inspirada. A instituição de uma festa de Joana d'Arc infundiu provavelmente nos grão-mestres da maçonaria francesa o temor de que a glorificação da epopéia da Pucela determinasse a revivescência do ideal religioso.


Seja qual for o móvel a que tenham obedecido, eis aqui a circular que o presidente da loja “Clemente Amizade” endereçou aos deputados francos-maçons do Parlamento, no dia em que se ia dar começo na Câmara à discussão sobre a instituição da festa de Joana d'Arc:


“A Câmara vai hoje ocupar-se com um parecer sentimental, apoiado em petições de mulheres sugestionadas pelos curas. O projeto de lei instituindo uma festa de Joana d'Arc traz numerosas assinaturas de membros do Parlamento, cegos, ou cúmplices da reação clerical. Os cegos deixamos aos vossos cuidados, MM.. CC.. II.. ; abri-lhes os olhos. Dos cúmplices, cúmplices do Papa e dos Jesuítas, desses nos encarregamos nós; havemos de conhecê-los e não os esqueceremos. Mas, suplicamos aos MM.. CC.. II.., republicanos sem compromissos sórdidos, que impeçam a instituição da festa de Joana d'Arc.”


Esta injunção produziu o desejado efeito: a inclusão do projeto em ordem do dia foi definitivamente repelida em 1898.


Terão obedecido à imensa palavra de ordem o diretor de um jornal parisiense e o professor da Universidade, que granjearam notoriedade especial, desnaturando a obra de Joana, ou apenas cederam à necessidade malsã, peculiar a certos espíritos, de apoucar tudo o que traz um cunho de superioridade? Não sabemos; mas, ninguém pode deixar de deplorar a atitude desses dois homens, cuja cultura intelectual os devera preservar de semelhante aviltamento.


Leiamos o que escreveu o Senhor Bérenger, diretor do jornal L'Action, sobre a grande alma cuja vida acabamos de estudar:


“Doentia, histérica, ignorante, Joana d'Arc, mesmo queimada pelos padres e traída pelo seu rei, não merece as nossas simpatias. Nenhum dos ideais, nenhum dos sentimentos que a Humanidade hoje inspira guiou a alucinada mística de Domremy. Sustentando um Valois contra um Plantagenet, que foi o que praticou de heróico, ou, sequer, de louvável? Contribuiu, mais do que ninguém, para criar, entre a França e a Inglaterra, o miserável antagonismo, de que ainda temos dificuldade em nos livrar-mos, passados seis séculos. Pois que os sotainas pretendem impor seu feiticismo à República, saberemos responder convenientemente a essa provocação. Aquela virgem estéril só amou a religião e o exército, os santos-óleos e o arcabuz. O fato de haver expirado numa fogueira dá motivo para que dela nos compadeçamos, não para que a admiremos. Portanto, abaixo o culto de Joana d'Arc! abaixo a legenda da Pucela! abaixo a histeria contrária à Natureza e à razão e que paralisa a Humanidade em proveito de uma dinastia!”


Que dizer deste amontoado de insânias, onde quase que cada palavra é um ultraje, cada pensamento um desafio à História e ao bom senso?


E que dizer também do Senhor Thalamas, professor de um liceu de Paris, procurando incutir nos cérebros juvenis dos que lhe freqüentam os cursos, meninos de quinze anos, a dúvida sobre o verdadeiro caráter da Pucela! Em que fonte terá ele bebido sua pretensa erudição?


Jaurès, o grande orador socialista, mais hábil se mostrou quando, a 1º de dezembro de 1904, tomou, na Câmara dos Deputados, a defesa desse original professor de História e logrou salvá-lo das penas disciplinares, que lhe seriam talvez impostas, indo haurir nas suas reminiscências da Escola os elementos para um arremedo de panegírico da grande caluniada. Em seu discurso, Joana não é mais a alucinada, que o professor do Liceu Condorcet pintara aos alunos. O orador se vê obrigado a conceder-lhe “uma grandeza maravilhosa de inspiração moral”. Depois, atenua essa apreciação, sem dúvida muito espiritualista, encomiando excessivamente “a maravilhosa finura e a sutileza de espírito” da virgem, elo que a prende “ao antigo fundo gaulês de nossa raça”.


Em seus artigos, conferências e brochuras, o Senhor Thalamas se revela tão alheio ao patriotismo e aos nobres sentimentos que formam o tecido da história da Pucela, quanto às noções psíquicas e aos conhecimentos militares indispensáveis à boa compreensão e, sobretudo, à narração dessa história. A quem lhe perlustrar o opúsculo: Jeanne d'Arc, 1'histoire et la légende, surpreenderá desde logo a leviandade com que ele se abalança a dar lições a historiadores, tais como Michelet, H. Martin e outros, que leram os textos, que os entenderam e interpretaram logicamente, numa bela linguagem, do ponto de vista psicológico, patriótico e humano, em que se colocaram. Não obstante fazer, aqui e ali, justiça à “esplêndida convicção” e mesmo ao “heroísmo” da Pucela, a fisionomia da virgem Lorena lhe sai esfumada, apagada, da pena; sua memória empalidece, seu papel se torna insignificante, passando ela a ser uma personagem de segunda ou terceira ordem.


Por vezes, adota a tática de compará-la a outros videntes: Catarina de la Rochelle e Perrïnaic a Bretã. Ora, fora inútil rebuscar, na existência destas duas pobres mulheres, um fato, um ato, uma palavra comparáveis aos que abundam na vida de Joana. Tal confronto evidencia uma premeditação, um desejo de amesquinhar a heroína.


Em suas conferências através da França, o Senhor Thalamas emitia a opinião de que os orleaneses sitiados podiam por si sós libertar-se; na brochura, seu parecer é inteiramente outro. A tomada de Orleães, diz (pág. 34), em prazo mais ou menos longo, apesar da má direção do cerco, era igualmente fatal.


Os parisienses, em 1870, também podiam expulsar os alemães; não lhes faltavam nem homens, nem dinheiro, nem coragem. Faltou-lhes, porém, um chefe dotado de comunicativa fé e dos talentos militares precisos. Orleães encontrou tal chefe e foi salva por ele!


Entre os escritores, que se propuseram a tarefa de detratar Joana d'Arc, o Senhor Anatole France conquistou lugar saliente, publicando em 1908 dois grossos volumes in-8°. Sua obra, porém, tão importante na aparência, pela extensão e pela documentação, perde muito de valor, assim que submetida a uma atenta análise. O que nela predomina são as ironias pérfidas e as zombarias sutis. Não encerra brutalidades análogas às de Bérenger e outros críticos. O hábil acadêmico procede por insinuação. Tudo, no seu escrito, concorre para rebaixar a heroína e, muitas vezes, para cobrila de ridículo.


Se é certo que, nalguns casos, se digna de lhe fazer justiça, não menos certo é que, na grande maioria dos outros, a deprime ao último ponto e lhe atribui a condição de uma imbecil. Assim é que, vindo Loyseleur inúmeras vezes falar-lhe demoradamente na prisão, ora em trajes de sapateiro, ora vestido de eclesiástico, ela não chega nunca a perceber que o indivíduo é sempre o mesmo.


O primeiro volume do Senhor France era notável pelo estilo e pela coordenação das idéias. Suas páginas denunciavam o fino literato. O segundo surgiu incoerente, escrito num estilo frouxo, recheado de anedotas jocosas ou trágicas, de fatos curiosos, não raro estranhos ao assunto, cujas narrativas, entretanto, fazendo amena a leitura, lhe garantiram a voga. Mas, inutilmente se buscaria em toda a obra um sentimento elevado e alguma grandeza. Qualidades são essas desconhecidas do autor. E quantos erros intencionais!


O Sr. Aquiles Luchaire, professor da Sorbona, um dos mestres incontestados nos estudos sobre a Idade Média, foi dos primeiros a assinalar tais erros. Um exemplo: no cavaleiro Roberto de Baudricourt descobriu o Senhor Anatole France um homem “simples e jovial” e, afirmando-o, cita (Processo, t. III, pág. 86), página onde absolutamente não se encontra a menor referência a essa personagem. (Luchaire, Grande Revue, 25 de março de 1908, pág. 231, nota). O Sr. France empresta ao mesmo Baudricourt a opinião de que “Joana daria uma bela ribalda e que seria um apetitoso bocado para os soldados”. “Mas, o Processo (t. III, pág. 85), a que o Sr. France se reporta para esta citação, diz o Sr. Luchaire, não alude a outra coisa que não seja a entrevista de Chinon e o cerco de Orleães, nada dizendo com relação ao comandante de Vaucouleurs.” (Grande Revue, 25 de março de 1908, pág. 230, nota). (264)


Ainda outros exemplos enumera o Sr. Luchaire. Na Revue Critique, idênticas comprovações se encontram, feitas pelo Sr. Salomon Reinach. O Sr. France escreve: “Ela ouviu a voz que lhe dizia: Ei-lo!” e cita numa nota o Processo (t. II, pág. 456), onde não se acha coisa alguma que com isso se pareça. (Revue Critique, 19 de março de 1908, pág. 214).


Ao mesmo trabalho se deu o Sr. Andrew Lang, na Fortnightly Review. A propósito de uma pretendida profecia que os padres teriam revelado a alguns devotos, no número dos quais estava Joana d'Arc, o Sr. Lang pondera: “Em apoio do que avança, indica o Sr. France uma passagem do Processo, que prova exatamente o contrário do que ele acaba de afirmar.”


Noutro ponto, o Sr. France relata viagens que Joana teria empreendido a Tule (Toul), a fim de comparecer aí perante o Vigário Geral, sob a acusação de haver faltado a uma promessa de casamento e o Sr. Lang objeta: “Apoiando suas narrativas, o Sr. France aponta três páginas do Processo (t. I e II). Uma delas (t. II, pág. 476) não existe, as duas outras em nada confirmam o que ele narra, e uma das páginas seguintes o contradiz.”


Num artigo bibliográfico, publicado pela Revue Hebdomadaire, (265) o Sr. Funck-Brentano realça com precisão estas imperfeições graves da obra do Sr. France:


“As inexatidões se sucedem ininterruptamente. São de causar surpresa, partindo de um escritor que, no correr do seu prefácio, se mostra tão severo para com os que o precederam; isso, entretanto, não passa de pecado venial. Fica-se, porém, perplexo, relativamente ao valor histórico da obra de France, quando se verifica que os textos têm uma inteligência diversa da que lhes ele atribui. Se já é lamentável que um historiador force seu pensamento na direção de idéias preconcebidas, que se há de dizer daqueles que sujeita à igual violência os próprios documentos?


Os diferentes críticos que até hoje se ocuparam com a obra retumbante do Sr. France, dessa Vie de Jeanne d'Arc que tanto ruído produziu antes mesmo que aparecesse, tomaram-se de espanto verificando, em muitos pontos, a propósito dos textos citados pelo autor como fundamento de sua narrativa ou de suas opiniões, que, não só esses textos estavam reproduzidos ou comentados inexatamente, mas que não continham o que quer que se relacionasse, próxima ou remotamente, com o que o autor os obrigava a dizer.


O senso comum, diz o Sr. France, raramente é o senso do justo e do verdadeiro (t. I, pág. 327). Por isso, o senso comum foi excluído de seu livro, com meticuloso cuidado, e substituído, para gozo do leitor, por pitorescas e inesperadas histórias. No t. I, pág. 532, tratando do dom, atribuído aos nossos antigos reis, de curar as escrófulas, o nosso atraente historiador afirma que, na velha França, as virgens possuíam o mesmo dom, com a condição de estarem completamente nuas e de invocarem Apolo. Aí tendes uma coisa que, quando menos, qualificar se deve de imprevista! A citação indica Leber (Des cérémonies du sacre). O Sr. Salomon Reinach a verificou: trata-se de um tópico de Plínio, que vivia no primeiro século, aproveitado por um clérigo!”


No mesmo artigo, o Sr. Funck-Brentano cita ainda a opinião de Andrew Lang, autor de apreciada obra sobre Joana d'Arc, publicada em inglês:


“O Sr. Lang assinala a eterna e displicente chacota com que o Sr. France martiriza literalmente os seus leitores. O termo chacota é, sem dúvida, um pouco duro. O Sr. France não chacoteia. Não vai além do fino sorriso de um ironista amável. Porém, a ironia não é História. O ironista moteja e o historiador deve explicar. Que é a História? A explicação dos fatos do passado.


Mas, voltemos ao Sr. Lang, que diz: “A primeira qualidade do verdadeiro historiador é a imaginação simpática que, só ela, permite ao leitor compreender a época de que o historiador fala, conhecer-lhe os pensamentos e sentimentos e, de certo modo, reviver a vida dos homens de outrora. Ao Sr. Anatole France falece tal dom, por maneira surpreendente.


O Sr. France é um admirável sofista, tomada esta expressão no seu verdadeiro sentido.”


Finalmente, o Sr. Funck-Brentano comenta um artigo do crítico alemão Max Nordau, sobre a Joana d'Arc de Anatole France. Começa o artigo por estas palavras, tomadas a Schiller, a propósito da “Pucela d'Orléans”: “O mundo gosta de empanar tudo o que brilha, de arrastar pelo pó o que é elevado”. A conclusão correspondia a este intróito:


“Depois do trabalho de Anatole France, difícil nos será passar, sem um movimento de ombros, por diante da estátua eqüestre da Pucela d’Orleães. Sem brutalidade, com a mão leve, cariciosa e delicada de uma criadinha, ele a despojou de sua legenda e eis que, privada dos ricos enfeites formados de contos e de tradições, Joana d'Arc não mais inspira senão piedade; não mais pode pretender admiração, nem mesmo simpatia.”


Estas linhas acentuam fortemente o caráter pérfido e malfazejo da obra de um escritor que se diz nacionalista, mas que, não compreendendo os efeitos, tem no entanto a pretensão de lhes indicar as causas, que não hesita em desfigurar os textos, para falsear a opinião.


A obra do Sr. Anatole France é, sob certos pontos de vista, um erro grosseiro e uma ação má. Podem ser-lhe aplicadas estas palavras de Mme. de Staël a propósito da Pucela de Voltaire : “É um crime de lesa-pátria!”


A essas diatribes vamos opor a opinião de contemporâneos ilustres, que não se deixaram cegar pelo ódio político.


Já no fim do século passado, um jornalista, Ivan de Wœstyne, tendo tido a idéia de pedir aos membros da Academia Francesa suas opiniões sobre Joana d'Arc, colheu uma série de manifestações de sentimento, que constitui o mais precioso elogio da inspirada. (266) Esses homens, que são os mais graduados representantes do talento e do espírito em nosso país, timbraram em depor aos pés da heroína tributos de admiração e de reconhecimento.


Pasteur escrevia:


“A grandeza das ações humanas se mede pela inspiração de que decorrem; sublime prova desse asserto nos dá a vida de Joana d'Arc.”


Gaston Boissier exclamava por sua vez:


“Reconhecemo-la; ela é bem de nossa raça e de nosso sangue: Francesa pelas qualidades do espírito, tanto quanto por seu amor à França.”


Mézières, loreno, lhe consagra os seguintes versos:


Si tu ressuscitais, ó ma bonne Lorraine,

Tu conduirais au feu, par les monts, par la plaine,

Nos jeunes bataillons vengeurs de leurs ainés.


Léon Say dizia:


“Quando as desgraças afligem a pátria, resta aos franceses um consolo. Lembram-se de que houve uma Joana d'Arc e de que a História se repete.”


Enfim, Alexandre Dumas Filho, numa fórmula concisa, exprimiu os sentimentos do país inteiro:


“Creio que, na França, toda a gente pensa de Joana d'Arc o que eu penso. Admiro-a, tenho-lhe saudades, espero-a.”


Muitos outros pensadores e políticos se associaram a esta manifestação. Num discurso que pronunciou no Cirque Américain, Gambetta exclamava: (267)


“Precisamos pôr termo às contendas históricas. Devemos admirar apaixonadamente a figura da Lorena, que surgiu no século quinze para abater o estrangeiro e nos restituir a pátria.”


De seu lado, Júlio Favre fez em Antuérpia um panegírico de Joana d'Arc, terminando assim:


“Joana, Pucela d'Orléans, é a França! a França bem-amada, a quem devemos dedicar-nos tanto mais quanto maiores forem os seus infortúnios; é mais ainda, é o dever, é o sacrifício, é o heroísmo da virtude! Os séculos, cheios de gratidão, nunca a bendirão bastante. Felizes de nós, se os exemplos que ela nos legou puderem retemperar as almas, apaixoná-las pelo bem e espargir, por sobre a pátria inteira, os germens fecundos das inspirações nobres e das dedicações abnegadas!”


Antes de Júlio Favre, Eugênio Pelletan admirara Joana como a padroeira da democracia. Também ele dizia: (268)


“Oh! nobre virgem! tiveste que pagar com teu sangue a glória mais sublime que já aureolou humana fronte. Teu martírio ainda mais divinizou a tua missão. Foste a mulher mais admirável que já habitou a terra dos viventes. És agora a mais pura estrela que brilha no horizonte da História!”


Francisque Sarcey, inscrevendo-se nas listas do bispo de Verdun, declarava:


“... saudar com todo o seu patriotismo o dia em que as igrejas do país, sem exceção de nenhuma, se abrissem ao mesmo tempo para celebrar Joana e lhe consagrassem uma capela que as mulheres fossem alcatifar de flores.”


Esta declaração nos reconduz ao campo adverso, ao campo dos que pensam haver remido o passado, colocando em seus altares a estátua da heroína.


Já nos explicamos suficientemente a esse respeito, no lugar apropriado. Não temos, pois, que insistir. Nas mensagens, que deixamos transcritas, a própria Joana se pronunciou sobre esse ponto. Depois da sua, a nossa palavra careceria de autoridade.


Relembremos tão somente alguns conceitos e discursos, que singularmente destoam da afirmação dos escritores e oradores desse partido, conceitos e discursos segundo os quais o culto prestado à “nova santa” é um sentimento nobre e sem liga, uma das mais puras formas do amor ao país.


Numa circunstância solene, cercado de numerosa assistência, em que figuravam, na primeira linha, três grandes dignitários da Igreja, o bispo de Belley, Monsenhor Luçon, usava da linguagem que se vai ler. A cena se passa na Vendeia, ao ser inaugurado o monumento de Cathelineau. Depois de fazer, como era inevitável na ocasião, o panegírico do movimento da Vendeia, o orador termina por esta adjuração: “Praza à Divina Providência consagrar um dia, na pessoa de Cathelineau, como fez relativamente à libertadora da França, no décimo quinto século, um dos mais belos modelos do heroísmo, devotando-se pro aris et focis.”


Será verdadeiramente possível conciliar-se o amor da pátria com esta inflamada glorificação da guerra civil na pessoa de um dos seus chefes? Será patriotismo esta cegueira que confunde num só elogio a camponesa heróica, que outrora expulsava da França o inglês, e os vendeanos que o introduziam?


Cumpre também notar que Le Monde et l'Univers combateram vivamente a idéia de a República instituir uma festa de Joana d'Arc e sustentaram que só aos católicos e aos realistas competia celebrar a Pucela. (269)


Em diversos pontos da França, inúmeras manifestações políticas se têm levado a efeito, nas quais fizeram do nome de Joana d'Arc um troféu, uma arma de combate. Citemos um único exemplo:


Le Journal, de 5 de julho de 1909, publicou o seguinte:


“Lila (Lille), 4 de julho. – Efetuou-se esta tarde uma reunião realista em Lila, achando-se presentes quatrocentas pessoas. Depois de o Sr. Pierre Lasseyne, professor jubilado, haver exposto o programa realista, o Sr. Maurice Pujo fez uma conferência sobre Joana d'Arc e concitou os realistas a adotarem a conduta da heroína, isto é, a empregarem o método violento, para chegarem ao seu objetivo.”


Certamente, é lícito aos católicos e aos realistas honrarem, a seu modo, tão bendita memória. Mas, que não esqueçam uma coisa: que seria um ato culposo envolverem o nome da grande inspirada em nossas lutas, em nossas dissensões e, sob o pretexto de lhe rendermos homenagem, nos empenharmos em dividir os franceses, desacreditando, pelas violências, a causa a que julgamos servir.


Joana pereceu vítima das paixões políticas e religiosas de seu tempo e vemos que ao presente não falta analogia com o passado, no que lhe diz respeito. Diversas correntes de opinião lhe arrastam a memória para todos os lados. Abandonada pelos republicanos da Câmara, que se dedignaram de sancionar a decisão do Senado, monopolizam-na os realistas, com intuitos muito interesseiros. Exaltada por uns, depreciada pelo espírito de oposição sistemática de outros, dar-se-á que seu prestígio soçobre nessa tempestade de idéias? Não, pois a pura e nobre imagem da virgem Lorena está gravada para sempre no coração do povo, que a saberá amar sem pensamentos preconcebidos. Nada conseguirá riscá-la dali!


Em meio de nossas discórdias, o nome de Joana d'Arc ainda é o único capaz de congregar todos os franceses para o culto da pátria. O amor da França arrefeceu no coração de seus filhos. Profundos dissídios os separam; os partidos se guerreiam sem tréguas. As reivindicações violentas de uns, o egoísmo e o ressentimento dos outros, tudo concorre para fragmentar a família francesa. Rareiam os grandes sentimentos; os apetites, as cobiças e as paixões reinam soberanamente. Como no tempo de Joana, a voz dos Espíritos se faz ouvir e nos fala, senão do ponto de vista material, pelo menos do ponto de vista moral, “da grande lástima em que está a terra da França”.


Elevemos nossas almas acima das misérias e dos esfacelamentos da hora que passa. Aprendamos, nos exemplos e nas palavras da heroína, a amar a pátria, do modo pelo qual ela a soube amar, a servi-la com desinteresse e ânimo de sacrifício. Repitamos bem alto que Joana não pertence nem a um partido político, nem a uma Igreja qualquer. Joana pertence à França, a todos os franceses.


Nenhuma crítica, nenhuma controvérsia logrará manchar a auréola de santidade que a envolve. Graças a um movimento nacional irresistível, sua prodigiosa figura subirá cada vez mais alto no céu do pensamento calmo, concentrado, liberto de preocupações egoísticas. Ela aparece, não mais como uma personalidade de primeira plana, mas como o ideal realizado da beleza moral. A História enumera brilhantes plêiades de seres geniais, de pensadores e de santos. Só menciona, porém, uma Joana d'Arc!


Alma feita de poesia, de paixão patriótica e de fé celestial, ela se destaca fulgurante do conjunto das mais belas vidas humanas. Mostra-se sem véu ao nosso século de cepticismo e de desencantamento, como pura emanação do mundo superior, fonte de toda a força, de toda a consolação, de toda a luz, desse mundo que tanto temos esquecido e para o qual devem agora voltar-se os nossos olhares.


Joana d'Arc volve ao nosso meio, não apenas pela lembrança, mas por uma presença real e por uma ação soberana. Convida-nos a contar com o futuro e com Deus. Sob a sua égide, a comunhão dos dois mundos, unidos em um só pensamento de amor e de fé, pode ainda realizar-se, a bem da regeneração da vida moral que expira, da renovação do pensamento e da consciência da Humanidade!


    

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