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As missões de Joana D'Arc



Gênio militar de Joana d’Arc


XIX


O mérito da vitória coube principalmente à Pucela.


Coronel E. Collet


Os detratores de Joana d'Arc: Anatole France, Thalamas, H. Bérenger, Jules Soury, etc., concordes entre si, lhe negam talentos militares. A. France, com especialidade, não perde ocasião de lhe rebaixar o papel, de lhe restringir a parte que teve na obra de libertação. Faz pouco caso dos depoimentos dos companheiros de armas da heroína, prestados no Processo de reabilitação, sob o pretexto de estarem misturados com os de uma “honesta viúva”. Moteja dos historiadores que consideram Joana a “padroeira dos oficiais, o modelo inimitável dos alunos de Saint-Cyr, a guarda nacional inspirada, a artilharia patriota”. (250)Mais adiante diz:


“Uma única era a sua tática: impedir que os homens blasfemassem e tivessem ribaldas em sua companhia...


Toda a sua arte militar consiste no encaminhar os soldados para a confissão.” (251)


Por nosso lado, que caso devemos fazer de tais opiniões? Até que ponto professores, romancistas, jornalistas, que talvez nunca pegaram numa arma, são competentes para apreciar as operações militares da Pucela?


Na obra intitulada Jeanne d'Arc, 1'histoire et la légende, Thalamas nos aconselha, com razão, a só termos em conta os testemunhos diretos e a desprezarmos os outros. Este modo de ver se nos afigura especialmente aplicável à questão que agora nos preocupa. Ora, os testemunhos concernentes às aptidões militares de Joana são formais: emanam de pessoas que a viram de perto, que com ela partilharam dos perigos e combateram à sua ilharga. O duque d'Alençon se expressa deste modo:(252)


“Nas coisas da guerra, era muito experiente, tanto para empunhar a lança, como para reunir um exército, ou ordenar um combate e dispor a artilharia. Todos se maravilhavam de ver que, relativamente às coisas militares, ela procedia com tanto acerto e previdência, como se fora um capitão que houvesse guerreado durante vinte ou trinta anos. Sobretudo, no manejo da artilharia, é que era muito entendida.”


Outro comandante, Thibauld d'Armagnac, senhor de Termes, diz, a seu turno:


“Em todos estes assaltos (no cerco de Orleães), foi tão valorosa e se conduziu de tal maneira, que a homem algum seria possível portar-se melhor na guerra. Todos os capitães pasmavam de sua valentia e de sua atividade, das canseiras e trabalhos que suportava... Para dirigir e dispor as tropas, para preparar a batalha e animar os soldados, comportava-se como se fora o mais hábil capitão do mundo, desde longo tempo adestrado na guerra”.(253)


Entre os escritores contemporâneos, que se ocuparam com Joana d'Arc, os mais aptos a lhe apreciarem o papel militar são evidentemente os que têm exercido a profissão das armas, comandado tropas, dirigido operações de guerra. Ora, esses unanimemente reconhecem os talentos de Joana na arte de combater, sua queda para a tática, sua habilidade em utilizar a artilharia.


Consideram a campanha do Líger um modelo no gênero. O general russo Dragomirow assim a resume:


“Só a 10 de junho lhe permitiram marchar com o exército do duque d'Alençon, para desalojar os ingleses dos pontos em que ainda se mantinham no Líger. A 14 de junho, tomou de assalto Jargeau; a 15, a ponte de Meung; a 17 ocupou Beaugency; a 18 derrotou Talbot e Falstolf num reencontro em campo raso. Resultado dos cinco dias de ação: dois assaltos e uma batalha, feito que não teria mareado a glória de Napoleão e que Joana sabia realizar quando a embaraçavam”.(254)


O que releva notar nesta ação fulminante é o ardor que a inspira e dirige, temperado pela prudência. Esses movimentos rápidos têm por fim alcançar e ferir o inimigo no ponto principal de seu poder, sem lhe deixar tempo de se recobrar, de acordo com o método dos grandes capitães modernos.


Foi ainda o senso estratégico de Joana que impôs a marcha sobre Remos e em seguida impeliu o rei a avançar sobre Paris. A grande cidade teria sido tomada, se não fora o inqualificável abandono do cerco, ordenado por Carlos VII.


Considerai também a coragem heróica da virgem e o constante sacrifício de si mesma. Desconhecia o medo e a fadiga, dormia completamente armada e se satisfazia com uma alimentação frugal. Maravilhoso era sobretudo o dom que possuía de fascinar as tropas. Em Troyes, segundo o testemunho de Dunois, a energia e a destreza que demonstrou em organizar um assalto, contra os fortes da cidade, não poderiam ser igualadas pelas dos melhores comandantes de exército da Europa inteira. O marechal de Gaucourt, veterano da guerra de Cem Anos, concorda com Dunois, com respeito à admirável conduta de Joana nessa operação em que ele tomou parte.


A disciplina era-lhe uma preocupação de todos os instantes e a solicitude que consagrava aos soldados denota aprofundado conhecimento da vida militar. Nas Tourelles, mesmo ferida, manda que as tropas se restaurem, antes de renovarem o assalto. Sua antipatia aos ladrões e às meretrizes, o desejo que manifestava de que os soldados se abstivessem de deboches, de sacrilégios e de rapinagens, deram azo a que o Senhor Anatole France, qualificando aqueles sentimentos de hipocrisia de “beguina”, os metesse a ridículo. Confessemos, entretanto, que de outro meio ela não dispunha para restabelecer a ordem e a disciplina, condições essenciais do bom êxito.


“Preocupavam-na tanto, diz Andrew Lang, as almas como os corpos de seus soldados, o que hoje parece infantil e absurdo ao espírito científico da escola do Senhor Anatole France: mas, é preciso não esquecer que Joana era mulher do seu tempo e que seu método não diferia do de Cromwell, do dos mais célebres condutores de homens, que a História do passado aponta.”


Não menos notáveis se revelaram nela a compreensão, a previdência, o discernimento nas coisas da política. O Sr. A. France parece às vezes considerá-la uma espécie de idiota. Que se lembre, no entanto, do acolhimento que a heroína dispensou ao condestável de Richemont, inabilmente repelido pelo rei, e cujas oitocentas lanças contribuíram muito para a vitória de Patay; dos estratagemas que empregava para enganar o inimigo acerca do conteúdo de suas mensagens, dado o caso de lhes caírem estas nas mãos. Não esqueçamos, outrossim, a sutileza com que adivinhou, muito antes dos mais sagazes políticos, a falsidade das negociações entabuladas pelo duque de Borgonha, depois da sagração de Carlos VII. Dizia então:


“Não se conseguirá a paz com os borgonheses senão à ponta de lança”. (255)


Joseph Fabre realça em traços vigorosos esse dom de penetração peculiar à Pucela:


“Forçando o resultado, a poder de acreditar nele, com que notável instinto ela esfrangalha as teias de aranha da diplomacia, para se lançar na ação a todo transe! É um pássaro de alto vôo, que desconcerta vitoriosamente os políticos rastejantes, covardes promotores da paz a qualquer preço”. (256)


Consultemos agora os escritores militares, que julgamos haver estudado com mais sagacidade e consciência o papel da heroína. O general Canonge assim se manifesta: (257)


“Joana imprime às operações, em torno de Orleães, uma atividade até então desconhecida e, ao cabo de nove dias, o assédio, que durava havia seis meses, termina a nosso favor.


Conduzida ofensivamente, a campanha do Líger chega a termo feliz, com uma rapidez imprevista; a jornada de Patay, remata-a no dia 18. Inutilmente se há tentado negar, contra toda a verdade, a parte que coube a Joana nessa vitória decisiva: ela fizera o necessário para que o choque com os ingleses não resultasse inútil, anunciou a luta e predisse a vitória, prescrevendo a fórmula de obtê-la.


No fim de junho, deixa de “comandar” e, por conseguinte, deixa de ter a responsabilidade do êxito.


Durante a cavalgada para Remos, de 29 de junho a 16 de julho, diante de Troyes, a forças moral de Joana intervém eficazmente, no momento mesmo em que o séqüito real pretende nada menos do que fazer o exército retroceder para o Líger. É sabido que à permissão, miseravelmente concedida à Pucela, de operar livremente, se seguia, em curto prazo, a queda de Troyes.


A partir da sagração, Joana é desprezada. Está provado, entretanto, que ela se opôs à marcha ondulante sobre Paris e, bem inspirada a todos os respeitos, preconizou a marcha direta.


Quanto ao revés sob os muros da grande cidade, não lhe poderia ser imputado. Se o fraco Carlos VII lhe houvesse prestado ouvidos, em lugar de reduzi-la à impotência, o insucesso de 8 de setembro teria sido prontamente reparado.


No alto Líger, durante os assédios de Saint-Pierre-le-Moutier e de Charité, Joana, colocada em segundo plano, só influiu pelo maravilhoso exemplo, que deu, como um capitão.


Enfim, na sua última campanha, tão brutalmente interrompida, desempenhou o papel de chefe de partido.


Na ocasião em que caiu prisioneira, contava apenas dezoito anos e cinco meses; sua ação militar não durara mais do que treze meses.


Fora inútil querer demonstrar que a liberdade completa da França não coincidiu com o desaparecimento da Pucela. Contudo, é inegável que, graças a Joana, o indolente monarca reconquistara a maior parte da região compreendida entre Orleães e o Mosa, que a confiança voltara, enfim que a libertação definitiva foi conseqüência do prodigioso ardor patriótico que ela incendera.


O papel militar de Joana d'Arc pode ser encarado de duas maneiras:


Como soldado, distinguiu-se por qualidades cuja reunião é rara.


Aos olhos de qualquer observador leal, não disposto a negar até a evidência, o “comandante” provoca verdadeira admiração.


Segue-se um conjunto de predicados que se nos deparam em alguns vencedores, cujos nomes a História registrou. Em Joana, com efeito, a concepção e a execução correm parelha. Daquela deflui uma ofensiva audaciosa, obstinada, da natureza da que, admitida mais tarde por Napoleão, imobiliza o inimigo, não lhe dá tempo de se refazer e vai a ponto de destroçá-lo material e moralmente.


A execução é impetuosa; mas, tanto quanto preciso, moderada pela prudência.


Bastará enumerar as outras qualidades que lhe permitiram violentar a vitória: ciência do tempo, previdência, bom senso pouco comum, fé imperturbável no êxito, exemplo fascinado, reconfortante, grande poder de trabalho, espírito de perseverança, secundado por uma vontade inabalável, conhecimento do coração humano, donde uma influência moral que só alguns insignes capitães chegaram, com o tempo, a possuir no mesmo grau.


O caráter da guerra do século XV não dá ocasião a Joana de fazer obra de estratégia. Assim é que todos os seus contemporâneos reconheceram nela uma tática notável e temida.


A origem, a ignorância e a inexperiência das coisas da guerra, o sexo e a mocidade da virgem desnortearam muitos espíritos.


Embora sem cogitar de comparar a nossa heroína a tal ou qual extraordinário capitão, ou de lhe assinalar um posto na gloriosa falange dos guerreiros, justo é que a coloquemos entre estes por uma excelente razão: a de que os talentos de que ela deu prova são os que, desde todas as épocas, conduziram ao triunfo.


Entremos agora na indagação do porquê da iniciação súbita de Joana nos mais delicados segredos da arte da guerra.


A bem dizer, essa indagação seria ociosa, se fosse verdade, como se avançou muito levianamente, que a arte militar não existia no décimo quinto século, que então bastava saber montar a cavalo, que, finalmente, no que respeita a Joana, sua arte militar se reduzia a levar os soldados à confissão. Falemos claro.


A primeira negação provém, não há que duvidar, de uma ignorância completa da questão. A segunda é estupefaciente. Dunois e alguns outros capitães, com efeito, juntavam à experiência e ao saber um traquejo na equitação mais do que suficiente, em tal caso, para vencer e, no entanto, o bom êxito sempre lhes falhou, até ao aparecimento de Joana. Quanto à última alegação – aliás em absoluto desacordo com os fatos – é, pelo menos, singular.


Passemos, pois, às objeções formuladas por historiadores sérios e dignos de todas as atenções, por isso que buscaram a solução do problema com incontestável lealdade. Todavia, este exame será rápido.


Negar o incompreensível no papel militar da Pucela é dar de barato as dificuldades da questão.


O bom senso, que, como qualidade dominante, invocaram, era incapaz de lhe fornecer, de um dia para o outro, os conhecimentos técnicos necessários à boa direção das operações.


A fé ardente que reinava no século XV poderia por si só armar Joana de uma alavanca que bastasse? É lícito duvidar.


Invocaram também a obediência. Ora, a obediência só se tornou realidade depois da libertação de Orleães.


Dizer que Joana realizou a unidade de ação, que até então faltava, é reconhecer um fato, não é explicá-lo.


Dunois é uma testemunha que cumpria fosse tida em conta. Entretanto, ele se mostrou uma criança em confronto com a Pucela, a 7 de maio de 1429, por ocasião do ataque ao forte das Tourelles. Sabe-se com que ímpeto ela atacou. Processo idêntico seguiu em Jargeau, em Patay, diante de Troyes e de Saint-Pierre-le-Moutier.


Enfim, julgaram-se no direito de atribuir unicamente ao sentimento de revolta patriótica” os êxitos da heroína. Certo, o patriotismo pode, quer individualmente, quer coletivamente, fazer milagres; mas, é impotente para transformar em comandante de exército, do dia para a noite, uma mocinha ignorante e com menos de dezoito anos. Joana constitui um verdadeiro fenômeno, único no gênero; e, sob esse aspecto, ocupa lugar excepcional na França e na História de todos os povos. O seguinte paralelo se impõe à reflexão. Em 1429, o patriotismo, cujo desenvolvimento Joana apressou, mal começava a despontar. Por que, em 1870-71, quando já estava mais esclarecido, mais ardente e mais disseminado, não pôde, manifestamente, salvar a França que se achava na última extremidade?


Em suma, parece que nenhuma das razões humanas apresentadas explica as vitórias que Joana obteve, empregando, conscientemente ou não, os princípios aplicados, em campos de operações mais ou menos vastos, por grandes capitães.


“Soldado, eu me declaro incapaz de resolver, humanamente falando, o problema militar de Joana d'Arc.”


E o general Canonge, terminando, adota a solução que a própria Joana forneceu, assinalando como origem de seus atos principais “o socorro de Deus”.


A estas considerações de um escritor cuja autoridade em tais matérias se não poderá contestar, aditaremos as seguintes citações de tópicos de um trabalho inédito, mas que será em breve publicado.(258) Devemo-lo à pena do Coronel E. Collet, vice-presidente da Sociedade de Estudos Psíquicos de Nancy. Respondem ponto por ponto às críticas dos Srs. Anatole France e Thalamas sobre o levantamento do cerco de Orleães, cujo mérito, segundo esses autores, pertence muito mais aos sitiados do que a Joana.


Depois de enumerar os episódios do assédio, diz aquele coronel:


“Está, portanto, bem firmado que a Pucela, desde o primeiro dia, mostrara um senso militar infinitamente superior ao dos melhores capitães do exército, disciplinando as tropas e querendo marchar imediatamente sobre o ponto em que os ingleses concentravam suas forças principais. Os capitães de espírito elevado e reto, como Le Bâtard d'Orléans, Florent d'Illiers, La Hire, etc., e os homens d'armas não orgulhosos, nem ciosos, logo o verificaram.


A milícia comunal a reconheceu de pronto como seu verdadeiro chefe e se persuadiu de que seria invencível, obedecendo-lhe às ordens. – É um fato de psicologia militar, que se explica facilmente neste caso, mas cuja causa se conserva misteriosa em muitos outros que a História menciona. Por que instinto de justo discernimento a turba ignorante dos soldados percebe muitas vezes, sem nenhum sinal aparente, dentre seus chefes, qual o que realmente terá capacidade para guiá-la e lhe proporcionar vitórias? – Com efeito, aquela notícia contribuiu mais do que as tropas assalariadas para a tomada das Tourelles e mostrou todo o valor e energia de que são capazes os que se batem pela defesa de seus lares e de sua liberdade. Daí veio à Pucela a primeira idéia de um exército nacional permanente, instituído mais tarde pelo rei Carlos VII, depois que se tornara mais criterioso e mais patriota.


Já falamos das razões intuitivas que a induziram a continuar o ataque às fortificações da margem esquerda, sem embargo da decisão em contrário dos capitães, decisão que parecia ter por base a prudência. O êxito provou que as razões de ordem psicológica eram boas. Quando, ferida no decurso da ação, dominando os sofrimentos, animada por suas vozes, correu ao lugar em que se achava Le Bâtard d'Orléans, para impedir que ele ordenasse a retirada e para dirigir em pessoa o assalto decisivo, ainda obedeceu à mesma intuição de psicologia militar e ao mais racional princípio de uma boa ofensiva de tática – o da perseverança. Acode, a este propósito, uma observação interessante. Dizendo a Le Bâtard d'Orléans: “Fazei com que a nossa gente repouse; dai-lhe de beber e de comer”, não revelava ela o senso prático de um veterano capitão, ocupando-se com as necessidades materiais de seus soldados, antes de os obrigar a novo esforço? Isto nos leva a pensar em Bugeaud e nos práticos que se instruíram na velha escola da guerra e que serão sempre nossos mestres, na difícil arte de conduzir exércitos.


Pode-se, pois, afirmar com absoluta certeza que o mérito da vitória coube principalmente à Pucela, bem secundada pelos valentes capitães e homens d'armas que a acompanharam à margem esquerda e poderosamente ajudada pelos orleaneses, operando com tanta habilidade, quanto vigor, no ataque às Tourelles, pela ponte do Líger: sem ela o ataque não se praticaria, ou se teria malogrado.


Cumpre lembrar que desde 3 de maio Joana anunciara que o cerco seria levantado em cinco dias. (Depoimento de frei João Pasquerel e confissão de João Wavrin du Forestel, cronista do partido inglês.)


O Senhor Anatole France desconfiou do testemunho de Pasquerel, se bem que um outro o corrobore. Parecem-lhe suspeitas as predições da Pucela e, para justificar o seu cepticismo, cita o seguinte:


Antes que chegue o dia de São João Batista (ano de 29), nem mais um só inglês, por valente e forte que seja, a França verá, quer em campanha, quer em batalha.” Fonte indicada: Notariado da Câmara das Contas de Brabante, no Processo, t. IV, pág. 426. (Vie de Jeanne d'Arc, tomo I, pág. 402.)


Ora, procuramos essa pretendida profecia no documento apontado (Processo, t. IV, pág. 426), e não a encontramos. Nele, ao contrário, se lê que as predições de Joana relativamente à libertação de Orleães, a seu ferimento e à sagração em Remos se realizaram perfeitamente. E as fraudes desse gênero abundam no livro do Senhor France; não se pode atamancar mais indignamente a História.”


Em seguida, o Coronel Collet cita este documento, que demonstra, mais uma vez, quanto são injustificadas as críticas dos Srs. France e Thalamas:


“E, conquanto os capitães e outros homens de guerra executassem o que ela dizia, a dita Joana ia sempre às escaramuças com seu arnês, ainda que contra a vontade e a opinião da maior parte daqueles capitães e homens de guerra; e montava seu corcel, armada como um cavaleiro do exército nascido na corte do rei, o que aborrecia e espantava os homens de guerra.” – João Chartier."


E o Coronel Collet conclui nestes termos:


“Em resumo, o cerco de Orleães, mantido sem habilidade e sem vigor pelos ingleses, houvera contudo terminado, em prazo mais ou menos longo, pela capitulação da cidade, cujos recursos acabariam por esgotar-se, não obstante o corajoso devotamento e a constância de seus habitantes, pois que a praça já só recebia socorros muito insuficientes e perdia pouco a pouco as forças, em ações parciais, empenhadas sem método e sem espírito de continuidade, por capitães que abusavam demasiado da iniciativa. Porém, com a chegada da Pucela, as coisas mudaram de feição, pelo efeito moral que ela produziu sobre os dois exércitos, inversamente, e pela força irresistível que trouxe à defesa, força que a jovem guerreira soube utilizar admiravelmente. Disciplinando as tropas por um meio poderoso, o da fé religiosa que dominava tudo naquela época, constituiu-se-lhes o verdadeiro chefe e as tornou capazes do esforço prodigioso que a vitória exigia. Impôs-lhes a sua vontade pela palavra e pelo exemplo, deu-lhes a unidade de ação e a direção de que careciam, ensinou-lhes a ofensiva ousada, calculada e perseverante, que força o triunfo. Finalmente, nas circunstâncias todas em que vimos de apreciá-la, procedeu como um chefe que tem o conhecimento perfeito dos homens, a intuição dos princípios reguladores essenciais, a experiência das coisas da guerra e uma bravura excepcional.”


Acrescentemos ainda o quadro seguinte, cheio de animação e de colorido, em que o Coronel Collet desenha o papel da Pucela no cerco de Troyes: (259)


“A cavalo, empunhando um bastão, a Pucela correu aos acampamentos, a fim de fazer preparassem, a toda pressa, os engenhos e os materiais necessários para atacar à viva força a praça. Comunicou prontamente seu ardor às tropas e cada um tratou de desempenhar com entusiasmo a tarefa que lhe incumbia: cavaleiros, escudeiros, arqueiros, gente de todas as condições entraram, com assombrosa atividade, a dispor, nos pontos bem escolhidos, os poucos canhões e bombardas que o exército possuía, a transportar faxina, madeiros, pranchas, folhas de portas, janelas, etc., e a construir tapagens e aproches, visando a um assalto eminente e terrível.(260)


Joana encorajava os trabalhadores, estimulava-lhes o zelo, fiscalizava tudo e mostrava – diz Dunois em seu depoimento – diligência tão maravilhosa, que dois ou três consumados capitães não teriam podido fazer mais.


E isto se passava durante a noite, cujas trevas davam aspecto fantástico àqueles preparativos extraordinários: movimentos de homens, de cavalos e de carretas, à luz baça de archotes, em meio de uma zoada ensurdecedora de gritos, chamadas, relinchos, golpes de machado e de martelo, estalos e desabamentos, ranger de eixos, solavancos, etc.


Sem dúvida que não era banal o espetáculo, para os homens da guarnição, que se mantinha vigilante por detrás das ameias, bem como para a população da cidade, que tudo observava trepada nas coberturas das casas e nos monumentos públicos, e facilmente podemos imaginar qual o espanto e o pavor de uns e outros. Que mudança se operara no campo francês, onde pouco antes tudo indicava desânimo? Que significavam aquela estranha agitação, aquele tumulto assustador? Mistério diabólico, que nada de bom pressagiava: formidável catástrofe ameaçava a cidade, era certo!


Entre a população aterrorizada circulavam os mais sinistros boatos; a multidão se comprimia nas igrejas; toda a gente se lamentava e clamava que a cidade devia fazer ato de submissão ao rei e à Pucela, conforme o aconselhava frei Richard em suas prédicas. (261) O bispo e os burgueses notáveis se encontravam numa perplexidade cruel: tinham-se comprometido a resistir até à morte, mas começavam a entrever as vantagens de se submeterem. Quanto aos nobres e aos homens da guarnição, pouco tranqüilos se mostravam no tocante ao resultado da luta, se a terrível Pucela os atacasse.


Afinal, o espantoso tumulto cessou gradualmente no acampamento francês; os archotes se apagaram uns após outros e a noite se afigurou mais escura. Os sitiados, presas de angústia, não divisavam mais do que sombrias e confusas massas, que pareciam engrossar de instante a instante e mover-se nas proximidades dos fossos; apenas ouviam um indistinto rumor de vozes abafadas, de armas que se entrechocavam, de passos inseguros, de folhagens pisadas, etc., ruído sinistro, precursor da tempestade.


Ao raiar a alvorada, o quadro se patenteou nitidamente aos olhos dos desorientados habitantes de Troyes. Desaparecera gradativamente o fantástico, dando lugar à realidade não menos ameaçadora, a saber: tudo completamente organizado para uma arremetida, que não podia deixar de ser furiosa, obstinada, implacável!


O exército francês, munido de todo o seu material de aproximação e de ataque, estava disposto em perfeita ordem nos pontos mais favoráveis, pois que a Pucela, como de costume, aproveitara o tempo para reconhecer o terreno; as três ou quatro peças de artilharia, bem situadas e abrigadas, se preparavam para romper o fogo e para suprir a deficiência do número com a rapidez e justeza do tiro; os grupos de faxineiros e de porta-escada, os arqueiros e besteiros – emboscados nos refúgios; as colunas de assalto e as reservas, silenciosas e concentradas, aguardando o sinal. E a Pucela, à borda do fosso, com o estandarte em punho, relanceava imponente, antes de ordenar que as trombetas avançassem para o toque de assaltar; era de um efeito empolgante.”


Por último, o Coronel Biottot, em sua obra Les Grands Inspirés devant la Science; Jeanne d'Arc, eleva-se a uma apreciação de conjunto, que julgamos dever reproduzir, terminando este capitulo: (262)


“As inspirações militares de Joana d'Arc – diz-nos um crítico eminente – lhe foram gentilmente emprestadas pelos da profissão, seus companheiros d'armas.


Os fatos darão testemunho contrário à tese; mas, desde logo podemos apontar a razão que a faz insustentável. A guerra é um ato que, como todos os atos, obedece, em suas formas, ao comando de seu objeto. Hereditariamente, os senhores, os chefes de bandos, que serão os colaboradores de Joana, têm, do objeto da guerra, uma concepção diametralmente oposta à que a heroína enuncia e demonstra.


Joana considera nacional esse objeto e se esforça por lhe criar instrumentos e processos adequados. Dirige-se, de preferência, para constituir seus exércitos, ao elemento nacional, aos bons franceses, os quais, abrangendo já a causa, abrangerão os processos convenientes. Esses processos serão de invenção simples e de fácil compreensão. Trata-se de operar célere e decisivamente; de vibrar os golpes com energia, tenacidade, rapidez, continuidade e visando o ponto em que “reside a maior força do inimigo”. É toda a estratégia e toda a tática das guerras de Nação, é a estratégia e a tática de Napoleão, a quem foram inspiradas pela nacionalização das causas e dos instrumentos da guerra de seu tempo.


Tais, porém, não podem ser a estratégia e a tática dos profissionais do século XV. Eles se deixarão levar à aplicação dessa estratégia e dessa tática, mas não são capazes de as imaginar e insuflar. Uma e outra rompem com as tradições e a rotina que seguem e lhes arruinarão o ofício.


Se Napoleão contasse Frederico entre os seus generais, pudera alguém suspeitar que as inspirações lhe vinham desse gênio da guerra geométrica, com atores mercenários? Menos possível é ainda que Joana tenha sido inspirada por um Dunois, um La Hire, mestres talvez na pequena esgrima de seu século, porém incapazes de uma ampliação, de uma invenção, de uma inovação de idéias, que só podiam decorrer da extensão, da diversidade, da novidade da cena em que, destacando-se, o nacionalismo enfim trazia a guerra...


Joana tem que inventar o instrumento para a guerra nacional. Uma obra nacional demanda artistas nacionais. Assim é que formou o exército de Gien, o qual, pela fé patriótica, pelo ardor cívico, é o protótipo dos exércitos de cidadãos. Não há nisso pequeno mérito, conquanto à primeira vista o não pareça.


Quão mais expedito, mais seguro e mais simples não se afiguraria apelar para os bandos profissionais, militarizados, ou, pelo menos, dar-lhes, na composição do exército, os lugares que o número e as finanças de cada um lhes assinavam! Joana fez o contrário. Preferiu excluir os bandos.


Ela, portanto, imaginou, ou criou o instrumento conveniente à guerra que lhe cumpria fazer e, já nisto, seu gênio resolveu vitoriosamente uma dificuldade com que o gênio de Napoleão não teve que defrontar. Efetivamente, Napoleão recebeu, como entrada para o jogo, a nacionalidade, a que a França chegara, da guerra e dos exércitos. Não lhe foi necessário mostrar que era do interesse nacional o objetivo que propunha aos esforços: o aniquilamento da vontade inimiga, que pretendia atentar contra a liberdade e a vida da Nação.


Isso a todos ocorria naturalmente e com mais clareza do que no tempo de Joana. Entretanto, Napoleão não deixou de o lembrar e repetir como a heroína. Ele compreendera, pudera observar que aí residia toda a força moral, superior à força numérica e mecânica do adversário. Reconhecera a necessidade que tinha o comandante em chefe de tornar comum, em sua generalidade, vital em seu interesse, a causa que se debatia.


O gênio de Joana tivera espontaneamente essa concepção, porque direta e verdadeiramente uma causa de ordem geral o inspirava...


Se a importância dos meios postos em ação não constitui a medida pela qual se pode aferir o gênio, se pela novidade e originalidade desses meios é que se deve reconhecê-lo, tão inegável quanto o de Napoleão se patenteia o de Joana.


Pode-se por acaso dizer que o gênio da Pucela, no curso destes últimos acontecimentos,(263) tenha sofrido um eclipse e que, em conseqüência, se haja submetido às inspirações dos que a cercavam? Ao contrário, esse gênio nos aparece mais do que nunca transbordante de energia, de tenacidade e de vontade; mais do que nunca, destro, engenhoso, fecundo na adaptação dos meios às circunstâncias; mais do que nunca, pessoal e independente.


Em Saint-Pierre-le-Moutier, em Charité, como diante da bastilha de Saint-Loup, só há necessidade de audácia, de dominação da vontade adversa pela manifestação de uma vontade de poder e essência superiores. Mais do que na bastilha de Saint-Loup, sob os muros de Paris, Joana se mostrou audaciosa e impelida por uma vontade dominadora.


Defronte de Franquet d'Arras, inaugura uma tática, que mais tarde será freqüentemente a de Napoleão e que lhe valerá as maiores vitórias. Imobiliza um inimigo superior em número, até que o possa esmagar, dizimar, com o concurso de reforços recebidos.


Para libertar Choisy, imagina, vendo-se impossibilitada de atacar diretamente, golpes e manobras indiretas, que constituirão, passados dois séculos, a guerra de evolução, a guerra dos Turenne, dos Montécuculli, de Frederico o Grande...


No decorrer dos últimos feitos d'armas da heroína e até em Compienha, seu gênio permaneceu sempre o mesmo. E, como não ser assim, se provinha de uma só inspiração, de uma só paixão, antes exacerbada do que enfraquecida?”


Nossa História é rica de grandes capitães: gentis-homens, ou filhos do povo, todos bravos de gloriosa espada. Joana d'Arc, vê-se, os iguala e, em certos pontos, sobrepuja. Além de todas as qualidades militares, ela ainda tem mais: a habilidade na preparação e a audácia, o ímpeto irresistível na execução. Sabe, instintivamente, que o soldado francês excede na ofensiva, que a fúria é um dos privilégios de nossa raça. Por isso, cinco dias lhe bastam para desassediar Orleães, oito para livrar do inimigo todo o vale do Líger, quinze para conquistar a Champanha: ao todo, dois meses apenas para erguer a França do seu abatimento. Em vão se procuraria na História um feito semelhante. Os mais ilustres guerreiros podem inclinar-se diante da Pucela de dezoito anos, cuja fronte o prestígio de tais vitórias aureola.


Nem um só momento de fraqueza física ou moral se descobre nesta carreira surpreendente. Em toda ela e sempre, o que se observa é a paciência, a intrepidez no combate, o descaso do perigo e da morte, a grandeza d’alma no sofrimento. No coração de Joana, o amor ao país vibra e palpita constantemente e, nas horas de desespero, dardeja de seus lábios em palavras breves, inflamadas, que a todos arrebatam.


Em resumo, sem a intervenção de causas ocultas não se poderia explicar que ela reunisse tantas aptidões guerreiras e conhecimentos técnicos, que só a experiência e um longo tirocínio na profissão das armas facultam.


A França conta milhares de soldados valorosos, de hábeis generais; porém, até hoje, só teve uma Joana d'Arc!”


    

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