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As missões de Joana D'Arc



Retrato e caráter de Joana d’Arc


XVIII


Viva o trabalho!.


Jehanne


Assunto algum ainda excitou tanto a emulação entre os nossos poetas, artistas e oradores como a personalidade de Joana. A poesia, a música e a eloqüência rivalizam em primores, celebrando-a. A pintura e a estatuária recorrem à inspiração e se empenham, sem o conseguirem, em lhe recompor a imagem. Por toda parte, o mármore e o bronze são torturados, no afã de lhe reproduzirem os traços e um dia sua estátua se ostentará em todas as cidades da França. Mas, ali! quantas obras medíocres e positivamente más no acervo dessas reproduções fantasiosas!


Realmente, de Joana nenhum retrato autêntico possuímos. Dentre as obras modernas, a fisionomia que parece apresentar maior semelhança com a da virgem é a que lhe emprestou o escultor Barrias no monumento de Bon-Secours, em Ruão. Pelo menos, é o que afirmam os videntes a quem ela apareceu. Os grandes artistas, por vezes, têm intuições seguras, vislumbram a verdade e, sob esse aspecto, também são médiuns.


Em muitas ocasiões, Joana se tem feito visível e em circunstâncias que não admitem dúvidas sobre a realidade do fenômeno. E é certo que os erros e os embustes abundam nessa ordem de manifestações. Numerosos casos imaginários e fraudulentos se poderiam citar, nos quais a intrometeram inadmissivelmente. De nenhuma individualidade psíquica ainda se abusou tanto. Nas exibições de um mistificador célebre, havia sempre uma Joana d'Arc com o sotaque inglês do operador e que se prestava a demonstrações excêntricas. De fato, são raras as suas manifestações. Conhecemos, entretanto, algumas absolutamente autênticas, que deixamos assinaladas. Acrescentemos que, em certos fenômenos de incorporação, ela se mostra com tal majestade, tal grandeza, que impressionam. Parece-me ainda a estar vendo apoderar-se bruscamente de seu médium favorito, no auge de uma discussão política, e erguer-se com um movimento cheio de dignidade, com um gesto de autoridade e um relâmpago no olhar, para protestar contra as teorias dos sem-Pátria e dos sem-Deus. Não menos veemente se revela nas discussões religiosas. A um eclesiástico, que excepcionalmente presenciava uma de nossas reuniões, disse: “Não faleis jamais de penas eternas! Fazei de Deus um carrasco. Deus é amor; não pode infligir sofrimentos sem utilidade, sem proveito. Falando desse modo, afasta de Deus o homem.”


Quando se manifesta, a voz do médium adquire geralmente extrema doçura; tem inflexões melodiosas, que abalam e subjugam os insensíveis. Comove tanto a manifestação, que todos experimentam um como desejo de ajoelhar-se. Seu aparecimento nas sessões é anunciado por uma harmonia que nada tem de terrestre e que só os médiuns percebem. Faz-se uma grande luz e ela se lhes torna visível. Brilha-lhe na fronte e nas palavras uma auréola divina e um bater de asas agita o ar que a cerca. Ninguém lhe resiste à influência. É, com efeito, a “filha de Deus”. Não é, porém, a única. Muito acima de nós, uma região existe, superior e pura, onde viceja uma criação angélica, que os homens ignoram. De lá vêm os messias, os agentes da divindade, incumbidos das missões dolorosas. Eles encarnam nos mundos da matéria e muitas vezes se misturam conosco, para dar aos filhos da Terra o exemplo do amor e do sacrifício. Surdem nas camadas dos humildes e dos obscuros e são sempre reconhecíveis por seus sentimentos nobres e por suas altas virtudes.


*


De Joana não há, dissemos, nenhuma imagem coetânea. Todavia, nas escavações praticadas em Orleães, para a abertura da rua Joana d'Arc, achou-se uma estatueta antiga, representando uma mulher armada de capacete e cujo fino perfil se aproxima, sensivelmente, das linhas fisionômicas da estátua de Barrias. (220)


Por outro lado, são pouco numerosos e precisos os documentos históricos que descrevem o físico da Pucela. Merece citada, em primeiro lugar, uma carta escrita pelos condes Guy e André de Laval à sua mãe, em 8 de junho de 1429: “Eles a encontraram em Selles, em Berry, armada toda de branco, exceto a cabeça, com uma pequena acha na mão, montando negro corcel”. E acrescentam com entusiasmo: “parece coisa divina, realmente, vê-la e ouvi-la”. (221)


Um cronista picardo fala de Joana, segundo os testemunhos de muitas pessoas que a viram em viagem, entre Remos e Soissons, nestes termos: (222)


“E cavalgava à frente do rei, armada de um arnês completo, com o estandarte desfraldado. Quando desarmada, trazia vestuário de cavaleiro, sapatos atados acima dos pés, gibão e calções justos, um capuz na cabeça; usava trajes muito nobres, de brocado de ouro e de seda, bastante grossos.”


Segundo o depoimento do cavaleiro João d'Aulon, “ela era bela e bem feita”,(223) “robusta e infatigável”, no dizer do presidente Simon Charles, (224) “tendo ao mesmo tempo um ar risonho e as lágrimas fáceis”, conforme ao relatório do conselheiro-camarista Perceval de Boulainvilliers. (225) “Tem bom porte quando em armas e o busto belo”, diz o duque d'Alençon. (226) “Suas sobrancelhas finamente desenhadas, sombreando belos olhos pardos, davam-lhe uma expressão de doçura infinita ao olhar inspirado”, acrescenta um escritor nosso contemporâneo. (227)


Os debates havidos no curso do processo nos cientificam de que seus cabelos, a que tantos pintores imprimiram um tom louro e figuraram caindo-lhe esparsos sobre os ombros, “eram pretos e cortados curtos em escudela, de maneira a formarem na cabeça uma espécie de calota, semelhante a um tecido de seda escura”.


O coronel Biottot, resumindo os informes de diversos cronistas, assim se exprime, a respeito das vestes e do porte da Pucela: (228)


“O semblante da heroína, de traços regulares, tinha o cunho da doçura e da modéstia. Modelavam-lhe o corpo linhas cheias e harmoniosas. Desde os primeiros dias, surpreendem e encantam seus gestos desembaraçados de menina, sua graciosa flexibilidade em todas as circunstâncias e particularmente em trajos guerreiros a cavalo, empunhando a lança ou a bandeira. Enfim, o cândido fulgor de sua virgindade e a chama da inspiração lhe espargiam por sobre o conjunto uma virtude secreta, que afastava os desejos carnais, impondo respeito e atenção aos mais sensuais.


Cobrem-na brilhantes atavios de guerra. As vestes e a bandeira são de alvos e preciosos tecidos, como convinha, para lembrarem sua castidade e a missão angélica a que esta se achava ligada.”


Todas as descrições concordam em acentuar o suave reflexo que lhe irradiava do semblante iluminado por um pensamento íntimo. A alma, até certo ponto, esculpe os traços de seu invólucro. Por aí podemos fazer idéia da beleza daquele ser excepcional, do luzeiro nele oculto e que, fulgurando-lhe na fisionomia, em todos os seus atos rebrilha.


Dela emanava uma serenidade, um eflúvio que envolviam todos os que se lhe aproximavam, acalmando os mais insubmissos. No torvelinho das batalhas e dos acampamentos, conserva sempre a calma, que é o apanágio das almas superiores. Em Compienha, no mais aceso da luta, quando os borgonheses lhe cortam a retirada, quase a ser capturada, diz, como que absorta em pleno sonho, aos franceses que a rodeiam e se mostram desesperados “Não penseis senão em ferir!”


À luz dos mais variados documentos, Joana nos aparece como uma flor das campinas da França, esbelta e robusta, fresca e perfumada. Por isso mesmo, é de todo lamentável o modo pelo qual a maioria dos pintores e estatuários a desfiguraram, desrespeitando a verdade e a História. Certo crítico, não sem fundamento, fala assim da estátua talhada por Frémiet e colocada na praça das Pirâmides, no coração de Paris:


“Ele fez um rapazola aborrecido, desgostoso, de cabelos compridos como uma crina, com um braço de pau sustentando uma longa bandeira e uma coroa no ar!”


Que há nisso de surpreendente? observa o crítico: Frémiet é um animalista, razão pela qual sua Joana resultou “um ser híbrido, de pequena estatura, sobre um cavalo enorme”.(229) Essa estátua é uma paródia, uma vergonha para os franceses, sobretudo no lugar em que a erigiram, exposta aos olhos dos estrangeiros.


A de Roulleau, em Chinon, ainda é pior, pesada, maciça, tão material quanto possível.


Outros artistas se saíram melhor, sem todavia se mostrarem mais escrupulosos em respeitar a História. Charpentier no-la representa em oração. A fisionomia é graciosa e tocante. Mas, para que aquele livro caído a seus pés, quando ela não sabia ler e viveu numa época em que a imprensa ainda não fora inventada?


Os pintores não são mais atentos à verdade histórica. Jean-Paul Laurens assinou o tríptico que orna uma das salas do novo palácio da Municipalidade em Túrones (Tours) e reproduz três cenas da vida da heroína. No terceiro painel, vê-se a praça em que se consumou o suplício. Está vazia e por cima da fogueira, que acaba de apagar-se, um pouco de fumaça volteia nos ares. É noite e o último juiz se retira. J. P. Laurens não leu. Ignora que os ingleses, logo que Joana expirou, mandaram apagar o fogo, para que seu corpo carbonizado ficasse exposto como ficou, durante oito dias, à vista do povo, de modo a todos poderem certificar-se de que a virgem não pertencia mais a este mundo. Ao cabo de uma semana, reacenderam a fogueira para destruir completamente os despojos da vítima, cujas cinzas foram depois lançadas no Sena.(230)


*


O estudo das almas é dos mais belos que se oferecem às lucubrações do pensador e nenhuma cativa tanto como a de Joana d'Arc. O que de mais surpreendente há nela não é a sua obra de heroísmo, ainda que única na História, é o caráter em que se casam e fundem as qualidades aparentemente mais contraditórias: a força e a brandura, a energia e a meiguice, a providência e a sagacidade, o espírito arguto, engenhoso, penetrante, que em poucas palavras, nítidas e precisas, deslinda as mais difíceis questões, aclara as situações mais ambíguas.


Por efeito dessas qualidades, sua vida nos ministra toda a sorte de nobres exemplos. Patriota e francesa, quaisquer que sejam as circunstâncias, ela nos dá lições de devotamento levado até ao sacrifício. Profundamente religiosa, idealista e cristã, numa época em que o Cristianismo constitui a única força moral de uma sociedade ainda bárbara, exortam-na os subidos dotes, as eminentes virtudes do crente isento de fanatismo e de beatice. Na vida íntima, familiar, pratica as virtudes modestas que são a riqueza dos humildes: a obediência, a simplicidade, o amor ao trabalho. Em resumo, toda a sua existência é uma lição para aquele que sabe ver e compreender. Porém, o que acima de tudo a caracteriza é a bondade, sem a qual não há verdadeira beleza d’alma.


Essa harmoniosa aliança, esse equilíbrio perfeito de predicados, que, à primeira vista, parecem de molde a se repelirem, fazem de Joana d'Arc um enigma, que, entretanto, alimentamos a pretensão de resolver.


Todos os coevos que lhe cultivaram as relações dão testemunho de que, quer em meio da ação guerreira, quer durante as provações, ela consorciava grande doçura a uma vontade cuja firmeza coisa alguma poderia abalar. Os burgueses de Orleães foram acordes em dizer nos seus depoimentos: “Era um grande consolo tratar com ela”. (231) Os mesmos traços de caráter se nos antolharam novamente no Espírito que, com o seu nome, se manifestou diversas vezes em nosso grupo de estudos. Também nele, as virtudes, os mais variados dons morais se combinam, em perfeita harmonia.


Para bem se julgar de uma entidade tão superior, importa insulá-la das disputas partidárias e contemplá-la à luz pura de sua vida e de seus pensamentos. Uma influência do Além lhe aureola a fronte bela e grave e à emoção que incute se agrega um sentimento de respeito. Não obstante o cepticismo dos tempos presentes, ninguém se pode furtar à sensação de que, acima das eventualidades habituais da vida humana, há seres de escol, que são a honra de nossa raça e o eterno esplendor da História.


A existência da virgem Lorena é comparável a uma sinfonia, em que as vozes comovedoras e trágicas da Terra se entrelaçam com as exortações misteriosas do mundo invisível.


Como todas as grandes almas, ela acreditava em si mesma, na sua alta missão, e sabia transfundir a fé nos outros, fazendo-a emanar de seu ser.


Sempre ponderada e circunspeta, alia a humildade da camponesa à nobreza da rainha, uma pureza absoluta a uma extrema audácia. Vestida de homem, vive nos acampamentos qual anjo sobre quem Deus pousa o olhar e ninguém se escandaliza. A glória que a cinge parece-lhe tão natural que nunca lhe ocorre envaidecer-se dela. Não fora para praticar grandes obras que viera ao mundo e não era natural que de seus feitos lhe decorressem honras? Daí o desembaraço com que se porta em presença dos nobres e das fidalgas. Somente a Deus se curva; mas apraz-lhe fazer-se humilde para com os pequeninos que lhe prestam homenagens. Na igreja, é dentre as crianças que prefere elevar a alma ao céu.


Seus conceitos não são menos admiráveis do que os atos. Nas mais confusas discussões sempre lhe acodem o termo apropriado, o argumento preciso. Sob uma certa ingenuidade gaulesa que a enfaixa, nela se expande um senso profundo dos seres e das coisas, o qual, nos momentos decisivos, lhe sugere as inflexões capazes de atear o ardor nas almas e de, nos corações, reavivar os sentimentos fortes e generosos.


Como se admitir que uma menina de dezoito anos haja podido por si só encontrar expressões, quais as que temos consignado? Como se duvidar-se da que fosse inspirada por gênios invisíveis, conforme o foram, antes e depois, tantos outros agentes do Além?


As palavras profundas, como já vimos, pululam na curta existência da heroína e não fugiremos à oportunidade de ainda reproduzir algumas. Aqueles lábios juvenis proferiram sentenças que merecem figurar ao lado dos mais belos preceitos da antiguidade.


“Era muito circunspeta e pouco loquaz”,(232) dizia a Crônica, mas, quando falava, sua voz tinha vibrações que penetravam no íntimo dos ouvintes, nos quais sensibilizava fibras que lhes eram desconhecidas e que nenhum poder lograra ainda despertar a tal ponto. Esse o segredo do ascendente que exercia sobre tantas criaturas rudes, porém fundamentalmente boas.


E tais palavras não aproveitaram somente aos que as ouviram. Recolhidas pela História, irão, séculos em fora, consolar as almas e estimular os corações.


Joana acha sempre os dizeres que convêm e às imagens de que se serve sobram relevo e colorido. O mesmo sucede hoje nas mensagens que dita a alguns raros médiuns e que, em parte, temos inserido aqui. Para nós, são outras tantas provas, outras tantas demonstrações de identidade.


Relembremos algumas de suas palavras, há um tempo ingênuas e ponderadas. Nunca, seria demasiado repeti-las, nem propô-las como normas e lições a tanta gente que, honorificando-a, pouco diligencia por se lhe assemelhar, no que concerne ao caráter e às virtudes. Todos temos interesse pessoal em lhe estudarmos a existência, em nos alçarmos à altura dos ensinamentos que ela contém, pelos exemplos que oferece do viver íntimo e do viver social, de beleza moral e de grandeza na simplicidade.


“A partir do momento em que soube que devia vir à França, pouco me entreguei aos brincos e aos passeios”.(233)


O descuido e a leviandade são habituais na infância e em muitos persistem até avançada idade. Joana, ao contrário, tem a preocupação constante do futuro, da relevante missão que lhe tocara, dos encargos que lhe vão pesar sobre os ombros. Roçaram-na as asas das criaturas angélicas e a sua vida recebeu assim uma impulsão que só a morte paralisará. Percebeu os chamados mistérios do Alto e suas práticas com o invisível lhe imprimiram à atitude e ao pensamento a gravidade que ostentará sempre unida à graça e à doçura.


No interrogatório de Poitiers, Guilherme Aimery lhe observa: “Pedes soldados e dizes ser do agrado de Deus que os ingleses se vão. Ora, se é assim, não há necessidade de soldados, pois que Deus só basta.” – “Em nome de Deus! retrucou ela, os soldados batalharão e Deus lhes dará vitória”.(234)


Essa resposta resume uma grande lição. O homem é livre. A lei suprema exige que ele próprio edifique seu destino no volver dos tempos, mediante inúmeras existências. Sem isso, quais seriam seus méritos, seus títulos à ventura, ao poder, à felicidade? Se lhe fora possível alcançá-los sem trabalho, esses bens nenhum preço teriam a seus olhos. Nem mesmo lhes compreenderia o valor, visto que o homem só aprecia as coisas na razão dos esforços que elas lhe custam. Quando, porém, os obstáculos são insuperáveis e ele pelo pensamento se associa à vontade divina, as forças e os socorros lhe descem do infinito e o fazem triunfar das maiores dificuldades. Naquelas poucas frases, Joana afirma o princípio da intervenção da Providência na História, a comunhão fecunda do Céu e da Terra, que nos aplaina as estradas e faculta às nossas almas, nas horas de desespero, a possibilidade da salvação.


Estranho fato! o homem desconhece e muitas vezes despreza o que lhe é mais necessário. Sem os auxílios do Alto e alheios à íntima solidariedade que conjuga a fraqueza humana às forças do Céu, como poderíamos prosseguir, armados unicamente dos recursos que nos são peculiares, a imensa ascensão que nos leva do fundo dos abismos da vida até Deus? A só perspectiva da senda interminável a percorrer bastaria para nos abater e desalentar. O extremo afastamento da meta e a necessidade do esforço persistente nos imobilizariam. É a razão pela qual, nos primeiros degraus da prodigiosa escada, nas primeiras estações do percurso, o objetivo distante se nos conserva velado e restritos nos parecem os horizontes da existência. Quando, porém, nos aventurarmos às passagens perigosas que inçam o acidentado caminho, ocultas mãos se estendem para nos suster. Temos a liberdade de repeli-las. Mas, se condescendemos em aceitar o amparo que se nos traz, chegaremos a realizar as mais árduas empresas. A obra de beleza e de grandeza que nossas vidas executam não se ultimaria sem a ação combinada do homem e de seus invisíveis irmãos. É o que Joana atesta ainda por outras palavras: “Sem a graça de Deus, eu nada poderia fazer.”


Com muita bondade acolhia sempre os curiosos que iam vê-la, especialmente as mulheres. Falava-lhes tão meiga e cariciosamente, diz a Crônica, que as fazia chorar.


Contudo, simples e despretensiosa, preferira esquivar-se às “adorações” da multidão. Sentindo-lhes o perigo, dizia: “Na verdade, eu não conseguiria preservar-me de tais coisas, se Deus não me preservasse”. (235) “Evitava, quanto podia, que me beijassem as mãos”, declara no curso do processo. (236) E quando, em Burges, as mulheres do povo lhe apresentavam pequenos objetos para que os tocasse, dizia, rindo: “Tocai-os vós mesmas. Tão cheios de virtudes ficarão por efeito do vosso contacto, quanto do meu”. (237)


De par com as qualidades que vimos de apreciar, Joana era dotada de um senso estético notável:


“Tinha paixão pelas armaduras – referem seus historiadores – e revelava um esmero muito puro e distinto nas mais insignificantes minudências do trato de sua pessoa e de seu vestuário. Os cortesãos lhe admiravam esses cuidados e as próprias damas muito naturalmente a houveram tomado por uma de sua hierarquia, tais a graça e a distinção que se lhe notavam.


Valente a ponto de, nos combates, desafiar alegremente a morte, sem jamais dá-la a quem quer que fosse, adoravelmente mulher, não dissimulava o contentamento por possuir brilhantes armas e belos cavalos negros, sobretudo por serem estes “tais e tão maliciosos que ninguém se atreveria a montá-los”. (238)


Seus juizes a criminaram por gostar dos trajes elegantes e dos cavalos de raça. Mas, como bem o diz Henri Martin: (239) “Seu misticismo, de ordem elevada, associando o sentimento do belo ao do bem, nada tinha de comum com essa espécie de ascetismo que faz da negligência com o corpo e do exterior sórdido uma virtude e que parece ter por ideal o feio.”


Particularidade dolorosa: em sua rápida carreira política, os que mais a fizeram sofrer foram exatamente aqueles que lhe deviam amparo, gratidão e amor.


Isso, porém, não lhe agastou o caráter, nem jamais a tornou mal humorada. Quando passava por alguma decepção amarga, mostrava inabalável firmeza de ânimo e recorria à prece: “Quando sou contrariada de qualquer maneira – dizia –, retiro-me para um canto e oro a Deus, queixando-me de que aqueles a quem falo não me acreditam facilmente. Acabada a minha oração a Deus, ouço uma voz que me diz: “Filha de Deus, vai, vai, serei teu amparo, vai!”. (240)


Acusaram-na de haver querido suicidar-se no castelo de Beaurevoir. Mentira! É exato que, prisioneira de João de Luxemburgo, Joana tentou evadir-se, crente de que a evasão é um direito de todo preso. Bem longe de pretender matar-se, como procuraram insinuar durante o processo, ela nutria “a esperança de salvar o corpo e de ir a socorro da boa gente que estava em perigo”.(241) Tratava-se dos sitiados de Compienha, cuja sorte tanto lhe amargurava o coração. Refletiu, estudou maduramente seu projeto e não se precipitou loucamente no vácuo, como em geral se supõe. Por uma corda que amarrou à janela da prisão, conseguiu descer do alto da torre; mas, ou por ser a corda muito curta, ou porque se partisse, não resistindo à tensão, ela caiu pesadamente sobre as pedras. Levaram-na dali semimorta e a encarceraram de novo. (242)


Em Ruão, sobretudo, diante dos juízes velhacos e astuciosos, é que lampejam suas réplicas finas e inopinadas, suas respostas breves, incisivas, inflamadas. Guido Gœrres o comprova nestes termos a que convém sejam transcritos:


“A cada interrogação, Joana se via na contingência de sustentar rijo combate. Todavia, a ingênua donzela, que não aprendera com seus pais senão o Padre-nosso, a Ave-Maria e o Credo, fixava sobre os seus inimigos um olhar firme e tranqüilo e mais de uma vez os obrigou a baixar os olhos e os confundiu, desenleando subitamente a trama de suas perfídias e mostrando-se-lhes em todo o fulgor da inocência. Se, pouco antes, os mais bravos cavaleiros lhe admiravam a coragem heróica no ardor das batalhas, muito maior era a que alardeava quando, carregada de ferros, aguardando uma horrorosa morte, testificava a verdade de sua missão divina a seus algozes e profetizava àquele tribunal, prestes a condená-la em nome do rei da Inglaterra, a queda completa da dominação inglesa na França e o triunfo da causa nacional.”


“Sabes – perguntam-lhe – se santa Catarina e santa Margarida odeiam os ingleses?” – “Elas amam o que Deus ama e abominam o que Deus aborrece”. (243)E o juiz fica desnorteado. Um outro interroga: “Santa Margarida fala o inglês?” – “Como poderia ela falar o inglês, se não é do partido dos ingleses?” – “São Miguel estava nu?” – “Pensais que Deus não tem com que o vestir?” – “Tinha cabelos?” – “Porque lhe haviam de ser cortados os cabelos?!”. (244)


Balda com uma palavra as armadilhas que lhe preparam. Perguntam-lhe se está em graça: “Se não estou, que Deus me faça estar; se estou, que Deus me conserve nela”. (245)


Citemos ainda a digna e altiva resposta que deu, quando lhe censuraram o haver desfraldado o estandarte durante a cerimônia da sagração em Remos: “Ele fora atribulado; justo era que fosse preiteado”. (246)


Um dos inquisidores escarnece de seu cativeiro e do suplício que a espera. Responde ela sem hesitar: “Bem pode ser que os que me querem tirar deste mundo vão antes de mim”. (247)


O bispo de Beauvais, desassossegado, atormentado pela consciência, pergunta-lhe: “As vozes já te têm falado de teus juizes?” – “Freqüentemente tenho, por minhas vozes, notícias de monsenhor de Beauvais.” – “Que te dizem elas de mim?” – “Eu vo-lo direi em particular”. (248)


E eis que com estas simples palavras um prelado é chamado ao sentimento de sua dignidade, por aquela cuja perda ele resolvera.


*


Como explicaremos os contrastes que dão à pulcra figura de Joana d'Arc tão forte brilho: a pureza de uma virgem e a intrepidez de um capitão; o recolhimento com que ora no templo e a viveza jovial nos acampamentos; a simplicidade de uma camponesa e os gostos delicados de uma dama de alta estirpe; a graça, a bondade, de par com a audácia, a força, o gênio? Que pensar da complexidade de traços que lhe compõem uma fisionomia sem precedente na História?


Explica-lo-emos de três maneiras: primeiro, pela sua natureza e sua origem. Sua alma, temo-lo dito, vinha de muito alto. Demonstra-o a circunstância de que, desprovida de toda e qualquer cultura terrestre, sua inteligência se elevava às mais sublimes concepções; em seguida, pelas inspirações de seus guias; em terceiro lugar, pelas riquezas que acumulara no decurso de suas vidas anteriores, vidas que ela própria nos fez conhecer.


Joana era uma missionária, uma enviada, um médium de Deus e, como em todos os missionários do Céu, para salvação dos povos, três grandes coisas nela preponderam: a inspiração, a ação e, por fim, a paixão, o sofrimento, que é o fecho, a apoteose de toda existência digna.


Domremy, Orleães e Ruão foram os campos escolhidos para desabrolhar, expandir-se e consumar-se tão maravilhoso destino.


A vida de Joana d'Arc tem flagrantes analogias com a do Cristo. Como este, ela nasceu entre os pequeninos da Terra. O adolescente de Nazaré discutia com os doutores da lei no sinédrio; do mesmo modo, a virgem da Lorena confunde os de Poitiers, respondendo-lhes às insidiosas perguntas. Ao vê-la expulsar do acampamento as ribaldas, reconhecemos o gesto de Jesus expulsando do templo os mercadores. A paixão de Ruão não emparelha com a do Gólgota e a morte da Pucela não pode ser comparada ao fim trágico do filho de Maria? Como Jesus, Joana foi renegada e vendida. O preço da vítima retinirá nas mãos de João de Luxemburgo, como na de Judas. A exemplo de Pedro no pretório, o rei Carlos e seus conselheiros voltarão costas e fingirão não mais a conhecer, quando lhes noticiam que Joana se acha em poder dos ingleses, ameaçada de cruel morte. Até a cena de Saint-Ouen muitas semelhanças apresenta com a do Jardim das Oliveiras.


Temos tratado longamente das missões de Joana d'Arc. Não haja equívoco sobre o sentido deste termo. Julgamos oportuno dizer aqui que, na realidade, cada alma tem a sua neste mundo. À maioria tocam em partilha as missões humildes, obscuras, apagadas; outras recebem encargos mais importantes, de acordo com as suas aptidões, com as qualidades que apuraram, evolvendo no perpassar das idades. Só às almas ilustres estão reservadas as grandiosas missões, que o martírio remata.


Cada vida terrena, sabemo-lo, é a resultante de um imenso passado de trabalho e de provações. Do conhecimento da lei de ascensão no tempo e no espaço, que já expusemos, (249) não havia mister Joana, no décimo quinto século, por isso que as condições intelectuais de sua época não o comportavam. A concepção do destino era muito limitada: as vastas perspectivas da evolução teriam perturbado, sem proveito, o pensamento dos homens, ainda muito atrasados para apreciarem e entenderem os magníficos desígnios de Deus a respeito das criaturas humanas. Entretanto, no espírito superior de Joana, sujeito, como todos, à lei do esquecimento durante a encarnação na Terra, um passado maravilhoso esplende; virtudes, faculdades, intuições, tudo demonstra que aquela alma percorrera dilatado ciclo e amadurecera para as missões providenciais. Pode-se mesmo, já o vimos, reconhecer nela, mais particularmente, um espírito céltico impregnado das qualidades daquela raça entusiástica e generosa, apaixonada pela justiça, sempre pronta a se consagrar às causas nobres. Familiarizada, desde os primeiros albores da História, com os mais transcendentes problemas, essa raça possuiu constantemente numerosos médiuns. Joana aparece-nos, por entre a caligem da Idade Média, como a reencarnação de alguma antiga vidente, ao mesmo tempo guerreira e profetisa.


O que na sua personalidade, porém, predomina, em todas as épocas e meios em que viveu, é o espírito de sacrifício, a bondade, o perdão, a caridade. No desempenho das tarefas que lhe foram confiadas, mostrou-se invariavelmente o que Henri Martin soube definir numa palavra: “a mulher de grande coração”. Essas tarefas, Joana não as tem por findas. Continua a considerar-se em obrigação para com aqueles que Deus colocou sob seu patrocínio. Conserva ardente, como no século XV, o amor que vota à França, e os que então lhe foram objeto de solicitude ainda são presentemente seus protegidos. Entre os que tiveram parte em sua vida heróica, quer benéfica, quer maleficamente, muitos revivem hoje na Terra em condições bem diversas.


Carlos VII, reencarnado num desconhecido burguês, acabrunhado de enfermidades, foi muitas vezes distinguido com a visita da “filha de Deus”. Iniciado nas doutrinas espiritualistas, pôde comunicar-se com ela, receber seus conselhos, seus incitamentos. Uma única palavra de censura lhe ouviu: “A nenhum – disse-lhe um dia Joana – me custou tanto perdoar como a ti.” Por meios e com o auxílio de influências que seria supérfluo indicar aqui, a virgem conseguira reunir em um só ponto do globo, há alguns anos, seus inimigos de outrora, até mesmo seus algozes, e, usando do ascendente que sobre eles exercia, procurava levá-los à luz, fazê-los defensores e propagandistas da nova fé. Era um espetáculo comovente para quem, conhecedor daquelas personagens de uma outra época, podia perceber a maneira sublime pela qual ela se vingava, esforçando-se por transformá-los em agentes de renovação.


Por que a verdade me obrigará a dizer que os resultados foram medíocres? Todos, sem dúvida, a ouviam com uma deferência cheia de admiração, sentindo bem ser um Espírito de alto valor, quem os aconselhava. Mas logo o peso dos cuidados mundanos, dos interesses egoístas e das preocupações de amor-próprio oprimiam aquelas almas. O sopro do Além que, por instantes, as sacudira, cessou. Joana jamais se revelou senão a poucos. Os outros não souberam adivinhá-la. Raros puderam compreendê-la. Sua linguagem era muito perfeita; vertiginosas as alturas a que tentava atraí-los. Esses estigmatizados da História, que se ignoram a si mesmos, ainda não estavam amadurecidos para semelhante papel. Todavia, o que não foi possível obter no correr de uma existência, ela o alcançará nas que se hão de suceder, porquanto nada conseguirá esgotar lhe a paciência e a bondade. E as almas sempre se encontram, ao longo do caminho do destino.


    

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