Joana d’Arc e o Espiritualismo moderno; as missões de Joana


XVII


Retornar  


   


Se fé, costume, leis em trevas divisamos.

A Joana, claro sol que fulge no horizonte,

As vozes e o olhar erguer todos saibamos.


Paul Allard


A Gália não foi o único teatro das manifestações do Além. Toda a antiguidade conheceu os fenômenos ocultos. Eles constituíam um dos principais elementos dos mistérios gregos. As primeiras décadas do Cristianismo se nos mostram férteis de visões, de aparições, de vozes, de sonhos premonitórios, * onde os iniciados e os crentes hauriam a força moral que lhes comunicava à vida incomparável impulso e lhes permitia afrontar sem desfalecimentos as provações e os suplícios. Desde os mais remotos tempos, a humanidade invisível entreteve sempre relações com a nossa. De contínuo, uma corrente de vida espiritual se difundia sobre a humanidade terrestre, por meio dos profetas e dos médiuns. Essa corrente, esse influxo vital, manando das fontes eternas, foi que deu nascimento às grandes religiões. Todas, em sua origem, imergem as raízes nessas águas lustrais e, enquanto nelas se banham, conservam o viço, o prestígio, a vitalidade. Enfraquecem e morrem, quando se afastam daqueles reservatórios e lhes menosprezam as forças encobertas.


* Ver: Depois da Morte e Cristianismo e Espiritismo, passim.


É o que sucede ao Catolicismo, por haver desapreciado, esquecido a caudal abundante de força espiritual que fecundava a ideia cristã em seu nascedouro. Queimou aos milhares os agentes do mundo invisível, rejeitou-lhes as lições, abafou-lhes as vozes. Os processos por feitiçaria e as fogueiras da Inquisição levantaram uma barreira entre os dois mundos e interromperam por séculos a comunhão dos Espíritos, que longe de ser um acidente, é, ao contrário, lei fundamental da Natureza.


Em derredor de nós se patenteiam os desastrosos efeitos de semelhante proceder. As religiões não são mais do que ramos secos de um tronco baldo de seiva, porque suas raízes não mais mergulham nos mananciais vivos. Elas ainda nos falam da sobrevivência do ser e da vida futura, mas se denunciam impotentes para dar dessas verdades a menor prova sensível. O mesmo se verifica com os sistemas filosóficos. Se a fé está cambaleante, se o materialismo e o ateísmo têm avançado a passos de gigante, se a dúvida, as ardentes paixões e o suicídio causam tantas devastações, é que as ondas da vida superior já não refrigeram o pensamento humano, é que a ideia da imortalidade carece de demonstração experimental. O desenvolvimento dos estudos científicos e do espírito crítico tornou o homem cada vez mais exigente. Hoje, as afirmações já lhe não bastam. Ele reclama provas e fatos.


Considerai qual seria a importância, agora, de uma ciência, de uma revelação baseada num conjunto de fenômenos e de experiências, que nos demonstrassem positivamente a sobrevivência e, ao mesmo tempo, nos dessem a prova de que a lei de justiça não é uma vã palavra, de que a cada um de nós se depara no Além uma situação correspondente a nossos méritos.


Ora, é precisamente o que o moderno espiritualismo nos vem facultar. Ele contém os germens de uma verdadeira revolução: revolução nas ideias, nas crenças, nas opiniões e nos costumes. Daí a necessidade do estudo, da classificação e da análise metódica dos fenômenos e dos ensinamentos que deles resultam.


A situação moral das sociedades fez-se grave e inquietadora. Sem embargo da instrução disseminada, a criminalidade avulta: multiplicam-se os roubos, os assassínios, os suicídios; os hábitos se corrompem. O ódio e as desilusões vão sempre se aprofundando no coração do homem. O horizonte escurece e ouvem-se ao longe surdos rumores que parecem pressagiar a tempestade social. Em quase todas as almas, o sensualismo assenhoreou-se dos caracteres e das consciências. Da alma do povo varreram o ideal. Disseram-lhe: come, bebe, enriquece, pois que tudo mais é quimera. O dinheiro é o único Deus, o gozo o único objetivo da vida! Em consequência, desencadearam-se os apetites e cobiças.


A massa popular se levanta como imensa vaga e ameaça tudo tragar.


Entretanto, muitos espíritos bons refletem e se entristecem, percebendo claramente que não há só matéria. Em certos momentos, a Humanidade chora o ideal perdido e experimenta o vazio, a instabilidade das coisas terrenas. Pressente que é falha a lição recebida, que a vida é mais ampla, o mundo mais vasto, o universo mais maravilhoso do que o supuseram. O homem procura, tateia, interroga. Busca não só um ideal, mas, de preferência, uma certeza, que o sustenha, que o console nas provações, nas lutas, nos sofrimentos. Inquire do que vai suceder nesta época de transição, que assiste à morte de uma aluvião de crenças, de sistemas, de tradições, cuja poeira se espalha em torno de nós.


Pela obstinação em fechar-se no círculo apertado de seus dogmas, pela persistência em não alargar a concepção do destino humano e do universo, a religião afastou de si a nata dos pensadores e dos sábios, quase todos aqueles cujas opiniões gozam de autoridade no orbe. E a multidão os acompanhou. A Humanidade volveu o olhar para a Ciência, a quem desde longo tempo pede a solução do problema da vida. Mas, a Ciência, a de ontem, não obstante suas conquistas magníficas, ainda estava muito imbuída das teorias positivistas, para poder dar ao homem uma noção do ser e de seus destinos, capaz de lhe revigorar as energias, reanimar o coração, inspirar cânticos de fé e de amor com que acalente os filhinhos.


Ora, eis que o mundo invisível, um de cujos intérpretes foi Joana, esse mundo que a Igreja combateu, que rechaçou para a sombra durante centenas de anos, entra novamente em ação, se manifesta em todos os pontos do globo ao mesmo tempo, debaixo de aspectos inúmeros e pelas mais variadas maneiras. * Vem apontar aos homens o caminho seguro, o caminho reto que os conduzirá às alturas deslumbrantes.


* Ver; No Invisível; Espiritismo e Mediunidade.


Em todos os centros surgem médiuns, perturbadores fenômenos se produzem, fundam-se sociedades de estudos e revistas, constituindo outros tantos focos de onde gradualmente se propaga a ideia nova. Essas sociedades são já em número bastante para formarem uma rede que circunda todo o planeta. Graças a elas, temos podido ver, nos cinco últimos decênios, delinear-se, primeiramente, e logo se organizar, acentuar e crescer o trabalho surdo, obscuro, da florescência do século prestes a despontar. Aí está o que denominamos novo espiritualismo, ou espiritualismo moderno, que não é uma religião no sentido acanhado da palavra, que é antes uma ciência, uma síntese, um coroamento de todas as labutas e conquistas do pensamento, uma revelação que arrebata a Humanidade para fora das trilhas e das vias que até aqui percorrera e a torna partícipe da vida dos largos espaços, da vida universal, infinita.


O moderno Espiritualismo é o estudo do homem, não em sua forma corpórea e fugidia, mas em seu espírito, em sua realidade imperecível, é o de sua evolução através das ideias e dos mundos. É o estudo dos fenômenos do pensamento transcendental e da consciência profunda, a solução das questões de responsabilidade, de liberdade, de justiça, do dever, dos problemas da vida e da morte, do Aquém e do Além. É a aplicação desses problemas ao progresso moral, ao bem de todos, à harmonia social.


A vida material nada mais é do que uma passagem; a existência presente é um instante da eternidade, nossa morada um ponto da imensidade. O homem é um átomo pensante e consciente sobre o globo que o transporta e mesmo esse globo não passa de um átomo que rola no Universo sem limites. Nosso futuro, porém, é infinito, como o Universo, e os astros que brilham sobre as nossas cabeças compõem a nossa herança.


O moderno Espiritualismo nos ensina a sair do âmbito estreito das ocupações cotidianas e a rotear o vasto campo de trabalho, de atividade, de elevação, que nos está aberto. O grande enigma se desfaz, o plano divino se desvenda. A natureza adquire uma significação, torna-se aos nossos olhos a escala grandiosa da evolução, o cenário dos esforços da alma, para se desenredar da matéria, da vida inferior, e subir para a luz.


Harmoniosa comunhão liga os seres em todos os degraus da imensa escala de ascensão e em todos os planos da vida. O homem nunca está só, quando luta e sofre pelo bem e pela verdade. Uma invisível multidão o assiste e inspira, como assistia a Joana e aos que combatiam sob suas ordens.


Essa solidariedade se faz sentir fortemente na fase que atravessamos. Nas horas de crise, quando as almas se abandonam, quando a Humanidade hesita na escabrosa estrada, o mundo oculto intervém. Os Espíritos celestes, mensageiros do Alto, põem mãos à obra, estimulando a marcha dos acontecimentos e das ideias. Presentemente, trabalham para restabelecer o laço que unia as duas humanidades e que se quebrou. Eles mesmos no-lo dizem nestes termos: *


* Comunicação obtida em Mans, no mês de junho de 1909. Médium: Mlle. L.


“Escutai-nos, ó vós que procurais e chorais! Não estais abandonados! Temos sofrido para estabelecer uma comunicação entre o vosso mundo de esquecimento e o nosso mundo de lembrança. Estabelecemos, primeiramente, um laço frágil, mas que se tornará forte: a mediunidade. Doravante, ela não mais se verá desprezada, infamada, perseguida, e os homens não mais poderão desconhecê-la. É o único intermediário possível entre os vivos e os mortos e estes não consentirão se feche a porta que abriram, a fim de que o homem inquieto possa aprender a lutar ao clarão das luzes celestes.”


João, discípulo de Paulo


Chega no momento azado a nova revelação e reveste o caráter que o espírito do tempo exige: o caráter científico e filosófico. Não vem destruir e sim edificar. Os ensinamentos do Além iluminarão simultaneamente o passado e o futuro, retirarão do pó dos séculos as crenças soterradas, fá-las-ão reviver, completamente, fertilizando-as. Às tenebrosas palavras da Igreja romana, palavras de horror e de condenação, que dizem: “É preciso morrer!” anteporão estas palavras de vida: “É preciso renascer!” Em lugar dos terrores que a ideia do nada ou o espantalho do inferno infundem, eles nos dão a alegria da alma desabrochada na vida imensa, radiosa, solidária, sem fim. A todos os desesperados da Terra, aos fracos, aos desiludidos vêm apresentar a taça dos fortes, oferecer o vinho generoso da esperança e da imortalidade.


Voltemos a Joana d'Arc. Parecerá, talvez, à primeira vista, que a digressão que acabamos de fazer nos afastou do assunto. Absolutamente não. As considerações a que nos entregamos tornarão melhor compreensíveis o papel e as missões de Joana. Dizemos – missões – porque sua obra atual, ainda que menos aparente, tem tanta importância quanto a do século XV. Falemos primordialmente desta.


Que era Joana, em realidade, ao aparecer na cena da História? Um mensageiro celeste e, segundo Henri Martin, um “messias”. Como definiremos esses termos? Deixemos o encargo aos próprios Espíritos. Eis o que, pela incorporação, nos diz um dos nossos guias:


“Quando os homens se esquecem do dever, Deus lhes manda um mensageiro, um auxiliar para que possam cumprir com mais facilidade e também mais ativamente a tarefa que lhes incumbe. A esses auxiliares é que podeis dar o nome de messias. Nos momentos em que as almas se acobardam, eles fazem ouvir suas vozes inspiradas, mostrando a verdade a chamar os homens. Notai, com efeito, que sempre surgem nas horas de crise, quando tudo parece que desmorona, ao embate da ardorosa luta dos interesses e das paixões. Assemelham-se ao vento da tarde, que pacifica as vagas ululantes e revoltas durante a tormenta do dia.


“Paz a vós que procurais o caminho, a vós que já não tendes forças bastantes para vos dirigirdes ao vosso Senhor. Pedi e o auxílio divino vos será concedido, conforme vo-lo prometeu o nosso Mestre. Mas, não repilais o mensageiro; sabei compreendê-lo; respeitai-lhe o pensamento e a alma: ele é o enviado de Deus, reveste-lhe o ser a luz da verdade divina. Deveis-lhe, portanto, gratidão.


“Os povos nem sempre sabem descobrir na fronte desses entes superiores o brilho sobre-humano e caritativo que lhes irradia das almas. Têm a intuição de que os messias diferem dos homens carnais, mas não o compreendem e é por isso que vereis sempre o enviado do Senhor rematar a lição suprema, dando à sua obra, por selo, a suprema dor. Pesquisai e verificareis que todos aqueles a quem a Humanidade acabou deferindo honras morreram esquecidos, ou antes, traídos e sacrificados. É que o ensino por eles dado devia também mostrar a grandeza da dor e as últimas palavras que proferem são as mesmas que encontrareis nos lábios do Mestre e nos de todos os grandes supliciados: “Perdoai aos que ignoram!” O sofrer ainda é um ato de amor.”


João, discípulo de Paulo


Joana é um desses messias. Deus a envia para salvar um povo que agoniza e ao qual, entretanto, grandes destinos estão reservados. A França fora escolhida para desempenhar importante papel no Planeta. Sua história o provou. Dispunha para tal fim das qualidades necessárias. Certamente se poderá dizer que há outras nações mais sérias, mais refletidas, mais práticas. Nenhuma, porém, possui os impulsos do coração, a generosidade um pouco aventurosa, que têm feito da França o apóstolo, o soldado da justiça e da liberdade do mundo. Todavia, ela não poderia desempenhar o papel que lhe estava predestinado senão sob a condição de manter-se livre e eis que suas faltas a arrastaram a dois passos de uma perda completa. Por ocasião do aparecimento de Joana, acreditava-se, dizia-se mesmo em toda a Europa, que findara a missão da França, daquele povo varonil que se ilustrara por tantos feitos gloriosos. Fora ela especialmente quem criara a cavalaria, quem suscitara as cruzadas e fundara as artes da Idade Média. Pertencia-lhe a iniciativa do progresso no Ocidente. E, no entanto, os recursos humanos se mostravam todos insuficientes para salvá-la. O que, porém, os homens já não podem fazer, um Espírito superior vai realizar com o socorro do mundo invisível.


Uma questão aqui se impõe. Por que escolheu Deus a mão de uma mulher para tirar a França do túmulo? Terá sido, como pensava Michelet, porque a França é mulher, mulher pelo coração? Seria, como outros escritores o disseram, porque a mulher é superior ao homem pelos sentimentos, pela piedade, pela ternura, pelo entusiasmo? Sim, sem dúvida, e aí está o segredo da abnegação da mulher, de seu espírito de sacrifício.


No décimo quinto século, diz Henri Martin, esgotadas se acham todas as energias do sexo forte, do sexo aparelhado para a vida exterior, para a ação. As últimas reservas de que a França dispõe se encontram na mulher, sustentada pelo poder divino.


Esse o motivo pelo qual o céu nos delega a que suas vozes apelidam de “filha de Deus”.


Porém, a tal escolha presidiu razão de ordem mais elevada. Se Deus, aquilatando da fraqueza dos fortes e da prudência dos avisados, preferiu salvar a França por intermédio de uma mulher, de uma menina, quase uma criança, foi, sobretudo, para que, comparando a fragilidade do instrumento com a grandeza do resultado, o homem não mais duvidasse; foi para que visse claramente, nessa obra de salvação, o efeito de uma vontade superior, a intervenção da potência eterna.


Perguntar-nos-ão com certeza: Se Joana era uma enviada do Céu, se sua missão era providencial, por que tantas vicissitudes e dificuldades na obra de libertação? Por que as hesitações, as surdas intrigas, os desfalecimentos, as traições em torno dela? Quando o Céu intervém, quando Deus manda seus mensageiros à Terra, podem opor-se lhe à ação resistência e obstáculos?


Tocamos neste ponto o magno problema. Antes de tudo, precisamos compenetrar-nos de uma coisa: de que o homem é livre, de que a Humanidade é livre e responsável. Não existe responsabilidade sem liberdade. A Humanidade, sendo livre, arca com as consequências de seus atos no curso dos tempos. Temos visto que são os mesmos os seres que de século em século reaparecem na História, para recolher numa nova vida os frutos, doces ou amargos, de alegrias ou de dores, que plantaram em vidas precedentes. O esquecimento do passado, por meramente temporário, nada prova contra a lei. A Humanidade é livre, mas a liberdade, sem a sabedoria, sem a razão, sem a luz, pode conduzi-la aos abismos. Também o cego é livre e, contudo, sem guia, de que lhe serve a liberdade? Assim, pois, a Humanidade precisa de ser amparada, guiada, protegida, inspirada, dentro de certos limites, pela Providência. Mas, convém que esse apoio não seja muito ostensivo, porquanto, se a potestade superior se impõe abertamente, sua ação se torna constrangedora; diminui, aniquila a liberdade humana; o homem perde o mérito da iniciativa, deixa de elevar-se por seus próprios esforços; o objetivo falha, a obra de progresso fica comprometida. Daí as dificuldades da intervenção nas horas de agitações. Que faz então o enviado do Alto, o ministro das vontades eternas? Não se impõe, oferece-se; não ordena, inspira; e o indivíduo, a coletividade, a Humanidade inteira conservarão a liberdade de suas resoluções.


Assim se explicam a missão, os triunfos e os reveses, a glória e o martírio de Joana. Do mesmo modo se explica a lei das influências espirituais na Humanidade. A potência que Deus envia não atua no mundo senão na medida em que o mundo a aceita. Se é bem acolhida, obedecida, coadjuvada, mostra-se ativa, fecundante, reformadora. Se é repelida, nada pode fazer. O enviado, o messias, se afasta, então, da Terra.


A Humanidade marcha pelos séculos à conquista dos supremos bens: a verdade, a justiça, o amor, cabendo-lhe alcançá-los por seus livres esforços. Tal a lei de seu destino, a razão mesma de sua existência. Entretanto, nos momentos de confusão, de perigo, de recuo, o céu expede seus missionários à Humanidade que se desorienta, que se oblitera e se transvia.


Joana pertence ao número destes. Como quase todos os emissários divinos, ela, baixando a Terra, fez sua aparição entre os mais pobres, os mais obscuros. Sua infância tem esse traço em comum com a do Cristo. É uma lei da História e uma lição de Deus: o que há de mais elevado provém do que há de mais rasteiro. O Cristo foi o filho de um carpinteiro humilde; Joana d'Arc uma camponesa nascida no seio do pobre povo da França. Nenhum dos dois messias, vindo ao mundo, escolheu para lhe embalar o berço, a ciência ou a riqueza. Que préstimos lhes reservavam uma ou outra? Os filhos da Terra precisam do poder material ou científico para praticar grandes façanhas. Inúteis eram esses poderes àqueles messias, que dispunham da força por excelência. Nascendo e conservando-se humildes, não eram por isso superiores aos mais nobres e aos mais sábios.


A Joana cumpria executar uma dupla missão, à qual ainda hoje ela se consagra nos páramos espirituais. Trouxe a salvação à França e à Terra inteira traz a revelação do mundo invisível e das forças que ele encerra; traz o ensinamento e as palavras de vida que devem repercutir na sucessão das eras.


Na Idade Média, a Humanidade não estava apta nem a compreender tal ensinamento, nem a aplicá-lo. Necessários foram, para que houvesse possibilidade e proveito daquela revelação, mais de quatro séculos de trabalho e progresso. Eis porque a Vontade suprema permitiu que durante quatrocentos anos a memória de Joana permanecesse envolta em sombras e que deslumbrante fosse a sua revivescência. Hoje, a grandiosa figura da heroína se destaca resplendente, da escuridão dos tempos. O pensamento humano se apresta para dar solução ao problema e penetrar no mundo dos Espíritos, que tem, na vida e na missão de Joana, em sua comunhão com a Além, uma das afirmações, um dos mais eloquentes testemunhos da História.


Joana tinha seus protetores, seus guias invisíveis. Devemos fazer notar que, numa ordem menos elevada, o mesmo se verifica com cada um de nós. Todo ser humano tem perto de si um amigo invisível, que o ampara, aconselha e dirige pelo bom caminho, se ele consente em seguir a inspiração que recebe. As mais das vezes, são os entes que amamos na Terra: um pai, uma mãe que se foram, uma esposa prematuramente morta. Muitos seres velam por nós e se esforçam por dominar os instintos, as influências, as paixões que nos impelem para o mal. Sejam os gênios familiares, como os gregos os designavam, sejam os anjos de guarda do Catolicismo, pouco importam os nomes que lhes emprestem. O que é certo é que todos temos nossos guias, nossos inspiradores ocultos, que todos temos nossas vozes.


Mas, enquanto as de Joana eram exteriores, objetivas, percebidas pelos sentidos, as da maior parte de nós outros são interiores, intuitivas e só repercutem no domínio da consciência.


Nenhum há dentre vós, leitores, que tenha escutado essas vozes? Elas se fazem ouvir no silêncio e no recolhimento; falam das lutas que havemos de sustentar, dos esforços que precisamos empregar para nos elevarmos, elevando os outros. Certamente, vós todos já tendes ouvido a voz que no santuário da alma nos exorta ao dever e ao sacrifício. E quando quiserdes percebê-la de novo, concentrai-vos e erguei o pensamento. Pedi e recebereis.


Apelai para a ajuda divina. Indagai, estudai, meditai, a fim de vos iniciardes nos grandes mistérios e, pouco a pouco, verificareis o acordar de novas faculdades; percebereis que as ondas de uma luz desconhecida vos banham; vereis que no vosso ser desabrocha a flor delicada da esperança e vos sentireis penetrados da energia que a certeza do Além e a confiança na justiça eterna prodigalizam. Tudo então se vos tornará fácil. Vosso entendimento, em vez de rastejar penosamente no dédalo escuro das dúvidas e das contradições terrestres, desferirá o voo, vivificado, iluminado pelas inspirações do Alto.


Devemos lembrar-nos de que, em cada um de nós, infinitas riquezas jazem inúteis, improdutivas, donde a nossa aparente indigência, a nossa tristeza e mesmo, por vezes, o tédio da vida. Mas, abri o coração, deixai que nele penetre a centelha, o bafo regenerador, e então uma vida mais intensa e mais bela reflorirá em vós. Tomareis gosto por mil coisas que vos eram indiferentes e que passarão a constituir o encanto de vossos dias; observareis que vos estais engrandecendo; caminhareis pela existência com passo mais firme, mais seguro, e vossa alma se transformará num templo transbordante de esplendor e de harmonia.


Joana, dissemos, era a mensageira do mundo dos Espíritos, um dos médiuns de Deus. As faculdades que possuía não se encontram senão de longe em longe num grau tão eminente, e é lícito afirmar-se, como já o fizemos, que ela realizou, em nossa história, o ideal de mediunidade. Entretanto, os predicados, de que desfrutava a título excepcional, podem constituir partilha de grande número de entes humanos.


Já tivemos ocasião de citar algures estas proféticas palavras: “Quando os tempos forem vindos, espalharei meu espírito por sobre toda a carne: os jovens terão visões e os velhos terão sonhos”. *


* Atos, 2:17.


Tudo parece indicar que esses tempos vêm próximos. Aquela predição se verifica pouco a pouco em volta de nós. O que no passado foi privilégio de alguns tende a tornar-se patrimônio de todos. Já por toda parte há, no seio do povo, missionários ignorados; por toda parte há sinais, indicações anunciadoras dos novos tempos. Dentro em breve, o que constitui a grandiosidade e a beleza do humano gênio, todas as glórias da civilização, tudo será renovado, fecundado pela prodigiosa torrente de inspirações, que virá descerrar ao espírito do homem um domínio, um campo não lindado, onde se hão de erigir obras que eclipsarão as maravilhas das eras transatas. Todas as artes, filosofias, letras e ciências, a música e a poesia se abeberarão nas fontes inesgotáveis, tudo se transmudará sob o influxo poderoso do infinito.


A missão do novo espiritualismo, como a de Joana, é uma missão de luta, entrecortada de duras provações. Indícios e presságios a assinalam. Marca-a o selo divino. Sua tarefa consiste em combater, em expulsar o inimigo, e o inimigo, hoje, é o negativismo, o pessimismo, é essa filosofia gélida e nebulosa, que só produz gozadores e desesperados.


Primeiramente, ele terá que percorrer a via dolorosa. Tal a sorte de qualquer ideia nova. Neste instante, soou-lhe a hora do processo. Como Joana em presença dos examinadores de Poitiers, a nova revelação enfrenta as crenças e os sistemas do passado, os teólogos, os representantes da ciência tacanha e da letra. Defrontam-na todas as autoridades, os mandatários da ideia envelhecida ou incompleta, da ideia que se tornou insuficiente e que deve ceder o passo ao novo verbo, que reclama lugar no mundo, sob o glorioso sol da vida.


Agora, esse processo se desenrola à face da Humanidade, expectadora interessada e cujo próprio futuro está em causa. Qual será o resultado, o julgamento? Nenhuma dúvida pode haver. Entre a ideia jovem e fecunda, cheia de vida, que sobe e avança, e a outra, decrépita, valetudinária, que desce e se abisma, como hesitar? A Humanidade necessita de viver, de prosperar, de engrandecer-se, e não será no meio de ruínas que se lhe há de deparar asilo para a razão e para o coração.


O novo Espiritualismo está à barra do tribunal da opinião. Dirigindo-se às Igrejas e às potestades terrenas, diz-lhes:


“Dispondes de todos os meios de ação que uma autoridade muitas vezes secular vos criou e nada podeis contra o materialismo e o pessimismo, contra o crime e a imoralidade, que se alastram, como corrosiva chaga. Sois fracas para salvar a Humanidade em perigo. Não vos conserveis, pois, insensíveis aos reclamos do espírito novo, que vos traz, com a verdade e a vida, os recursos precisos para erguer e regenerar a sociedade. Apelai para o que de grande e de belo encerra a alma do homem e, comigo, dizei-lhe:


“Solta o voo, eleva-te, alma humana! Penetra-te do sentimento da força que te sustém; avança confiante para o teu magnífico porvir. As potências infinitas te assistem; a Natureza se associa à tua obra; os astros em seus cursos te aclaram a estrada.


“Vai, alma humana, fortalecida pelo socorro que te ampara! Vai, como a Joana d'Arc das batalhas, através do mundo da matéria, através dos embates das paixões. À tua voz, as sociedades se transfigurarão, desaparecerão as formas envelhecidas, para dar campo a formas novas, a organizações juvenis, mais ricas de luz e de vida.”


Quanto a Joana, vimo-la, sua influência, sua ação persistira no mundo, depois que ela do mundo partiu. Graças a ela é que, em primeiro lugar, a França se libertou dos ingleses, não numa só campanha, não por efeito de uma única arremetida semelhante à das vagas do oceano varrendo as areias das praias, como houvera sucedido se os homens tivessem a fé e a fortaleza de ânimo que a escudavam; mas, permeando repetidas vicissitudes, alternativas de êxito e de malogro. A alma de Joana, maciça de amor e de vontade do bem, de dedicação a seu país, não podia imobilizar-se na beatitude celeste. Volta-nos atualmente com uma outra missão: a de executar em esfera mais vasta, no plano espiritual e moral, o que fez pela França, do ponto de vista material. Auxilia, incita os servidores, os porta-vozes da nova fé, todos aqueles que no coração aninham inabalável confiança no futuro.


Sabei-o: começou uma revolução maior do que quantas já se operaram no mundo, revolução pacífica e regeneradora, que arrancará as sociedades humanas da rotina e dos carreiros e dirigirá o olhar do homem para os destinos esplêndidos que o esperam.


Reaparecem as grandes almas que viveram neste planeta; suas vozes ressoam, concitando a Humanidade a acelerar a marcha. E a alma de Joana é uma das mais poderosas que atuam no globo, que trabalham por preparar para o gênero humano uma nova era. É por isso que, no momento preciso, luziu a verdade sobre o caráter e a missão da virgem Lorena. Por seu intermédio, com seu apoio, com o auxílio dos grandes Seres que amaram e serviram à França e à Humanidade, confirmar-se-ão as esperanças dos que desejam o bem e buscam a justiça.


A radiante legião dos Espíritos cujos nomes, como faróis, balizam as fases da História, os iniciados de antanho, os profetas de todos os povos, os mensageiros da verdade, todos os que compuseram a Humanidade em séculos e séculos de trabalho, de meditação, de sacrifício, se acham empenhados na obra, e, acima deles, está a própria Joana convidando-nos ao labor, ao esforço. Todos nos clamam:


“A postos! não mais para o cruzar das espadas, mas para as lutas fecundas do pensamento. A postos! para a luta contra uma invasão mais temível do que a do estrangeiro, contra o materialismo, o sensualismo e todas as suas consequências: o abuso dos prazeres, a ruína dos ideais; contra tudo o que pouco a pouco vos deprime, vos enerva, enfraquece e conduz à humilhação e à queda. A postos! trabalhai e lutai pela salvação intelectual e pelo levantamento de nossa raça e da humana gente!”


Por sobre nós adeja a alma sublime, cuja lembrança pungente e gloriosa este livro evoca. Em várias ocasiões, pôde dizer-nos o que pensava do movimento de ideias que a objetivam, de tantas apreciações diversas e contraditórias sobre o seu papel e sobre a natureza das forças que a sustentavam. Cedendo aos nossos rogos, consentiu em resumir todo o seu pensamento numa mensagem, que nos consideramos no dever de reproduzir com escrupulosa fidelidade, como o mais belo fecho que pudéramos dar a este capítulo.


Esta mensagem traz em si mesma todas as garantias desejáveis de autenticidade. O Espírito que a ditou escolheu para intérprete um médium que vivera no décimo quinto século e conservava, no seu eu profundo, lembranças, reminiscências daquela época. Por esta circunstância, possível lhe foi imprimir à linguagem, dentro de certos limites, o cunho do tempo. *


* Objetar-me-ão, talvez, que Joana não sabia ler, nem escrever. Responderei que depois de sua morte trágica, ao regressar para o espaço, ela recobrou todos os seus conhecimentos anteriores.


Mensagem de Joana, 15 de julho de 1909


“Doce me é a comunhão com os que, como eu, amam a Nosso Senhor e Pai – e não me dói a visão do passado, por isso que ela me aproxima de vós e a lembrança de minhas comunicações com os mortos e os santos me faz irmã e amiga de todos aqueles a quem Deus concedeu o favor de conhecer o segredo da vida e da morte.


“Rendo graças a Deus por me permitir transmitir-vos minha crença e minha fé e por poder ainda dizer, aos que sabem um pouco, que as vidas que o Senhor nos dá devem ser utilizadas santamente, a fim de estarmos em sua graça. Devem ser-nos gratas as vidas em que possamos desempenhar a tarefa que o todo poderoso Juiz e Pai nos assinou e devemos bendizer o que de suas mãos recebemos.


“Ele sempre escolheu os fracos para realizar seus desígnios, porquanto sabe dar força ao cordeiro, conforme o prometeu; mas, este não deve misturar-se com os lobos e a alma inflamada pela fé deve guardar-se das ciladas e sofrer com paciência todas as provações e castigos que ao Senhor apraza dar-lhe.


“Ele nos ministra a sua verdade sob as mais variadas formas, porém nem todos penetram a sua vontade. Submissa às suas leis e procurando respeitá-las, mais acreditei do que compreendi. Eu sabia que conselhos tão salutares não podiam ser obra de inimigo e o reconforto que me deram foi para mim um arrimo e a mais doce das satisfações. Jamais soube qual era a vontade remota do Senhor. Ele me ocultou, por seus enviados, o fim doloroso que tive compadecido da minha fraqueza e do medo que o sofrimento me causava; porém, chegada a hora, recebi, por intermédio daqueles enviados, toda a força e toda a coragem.


“É-me doce e delicioso volver aos momentos em que primeiramente ouvi minhas vozes. Não posso dizer que me amedrontei.


Fiquei grandemente admirada e mesmo um pouco surpreendida de me ver objeto da misericórdia divina. Senti subitamente, antes que as palavras me houvessem chegado, que elas vinham de servos de Deus e grande doçura experimentei em meu coração, que afinal se aquietou quando a voz do santo ressoou aos meus ouvidos. Dizer-vos o que se passava então em mim não é possível, porque eu não vos poderia descrever a minha alegria calma e intensa; mas, senti tão grande paz que, ao partirem os mensageiros, me julguei órfã de Deus e do Céu. Compreendi um pouco que a vontade deles devia ser a minha; porém, desejando imensamente que me visitassem, admirei-me das ordens que me davam e receei um pouco ver realizados os desejos que exprimiam. Parecia-me, certamente, uma bela obra me tornar-me a salvaguarda da França; mas, uma donzela não vai para o meio de homens d'armas. Finalmente, na doce e habitual companhia dos seres que me falavam, cheguei a ter mais confiança em mim própria e o amor que sempre consagrei a Deus me indicou a conduta a seguir, pois que não é decorosa a rebelião contra a vontade de um pai.


“Foi-me penoso, embora também motivo de alegria, o obedecer e, enfim, fiz primeiramente à vontade de Deus. Por essa obediência sou feliz e nisto também acho uma razão para fazer o que Deus quer, para perdoar aos que foram o instrumento de minha morte, crente de que não tinham ódio à minha alma, tanto que lhe deram a liberdade, mas sim à obra que era por mim executada.


“Tendo sido essa obra abençoada por Deus, eles eram grandemente culpados; também nenhum ódio lhes tenho às almas. Sou inimiga de tudo o que Deus reprova, da falta e da maldade. A obra que fizeram é que está fora da graça. Todos reentrarão na graça de Deus, mas a lembrança do passado não se lhes apagará. Choro o ódio que plantaram entre seus irmãos, o mau grão que semearam no campo da Igreja e que levou esta mãe que tanto amei a procurar mais a fé do que o amor do perdão. É-me grato, entretanto, vê-los emendar-se a confessar um pouco o erro que cometeram; porém, não o fizeram como eu desejara e a minha afeição à Igreja se desligará cada vez mais desta antiga reitora das almas, para se dar tão somente ao nosso doce e gracioso Senhor.”


Joana 


Retornar