Joana d’Arc e o ideal céltico


XVI


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Ó terra de granito esmaltada de robles!


Brizeux


Uma noite, o Espírito de J. Michelet, precedendo e anunciando o de Joana d'Arc, dirigiu-nos estas palavras, no correr de uma das nossas reuniões de estudos:


“Joana adquiriu em suas existências anteriores o sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontramo-nos muitas vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a mim. Meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”


Joana, como todas as almas que conosco percorrem o ciclo imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas, porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para os seus semelhantes.


As primeiras transcorreram durante o período céltico, no país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a caracteriza no décimo quinto século.


Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho, testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de internar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando, sacudindo-a, o vento fá-la vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre seus guias invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protetores das Gálias, os mesmos que em todas as eras prestam assistência aos filhos de Artur e de Merlin e dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à vitória.


Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama sagrada; mas, no coração de Joana, vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o caráter, reconheceram nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja origem ela própria nos indicará em breve. Henri Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas pelos Celtas, ainda vivas no tempo da heroína:


“Próximo da casa de Joana d'Arc passava uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia encosta, de sob grande faia isolada, borbotava uma fonte, objeto de culto tradicional. Em suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós ao cristianismo e que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da legenda cristã, os gênios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras fadas, frequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas dançar embaixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas, grinaldas que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. *


* Henri Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.


Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:


“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles, doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas, ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em torno do


Belo Maio. Sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Joana julga perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo: gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas não mais dançam – choram: é o lamento da velha Gália que expira!”. *


* Ibidem, pág. 140.


Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo autor: *


* Ibidem, t. VI, pág. 302.


“Joana soube opor o livre gênio gaulês ao clero romano, que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por seu intermédio, o gênio místico reivindica os direitos da personalidade humana, com a mesma força que o gênio filosófico; a mesma alma, a grande alma da Gália, desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre arbítrio de Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Joana d'Arc e no Eu de Descartes.”


A própria Joana, confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em Paris, no ano de 1898: *


* Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme, Janeiro de 1898.


“Remontemos, por instantes, ao curso das idades, a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a etapa dolorosa que conheceis.


“Múltiplas foram as existências que contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica, sob o zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das leis do Espírito e para o culto da pátria.


“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com seus cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço, representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece, dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço, constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina, donde manam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em relação com o Criador e com os seus missionários.”


“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh! impossível de serem evitados por efeito do livre arbítrio de cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza futura da França e seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei consagrar-me muito particularmente a essa obra.


“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre esse globo te escolheu para secundá-la em seus trabalhos e assim acelerar o teu progresso espiritual. Mortifica tua carne, a fim de que suas leis não possam ser obstáculo a teu Espírito. A provação será curta, porém rude. Ora e a força te será dada: colherás de tua obra todas as bênçãos nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a fim de que, chegada à ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os mensageiros do céu virão a ti, ouvirás suas vozes, eles te guiarão e aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”


“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim! Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Não tive mais outro objetivo que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão foi para minha alma um celestial viático.”


Lá nos confins do continente, como imensa cidadela contra a qual o mar e a tempestade se empenham num interminável assalto, estende-se uma terra singular, austera, recolhida, propícia ao estudo, às graves meditações.


Ao centro, em vasto planalto, se alongam, a perder de vista, charnecas tapizadas de róseos tojos, de douradas giestas, de juncos espinhosos. Além, os campos de trigo alternam com as macieiras acaçapadas; bordam o horizonte bosques de carvalho, tão espessos que nenhum raio de sol lhes atravessa as frondes.


É a Bretanha, o santuário da Gália, o lugar sagrado, onde a alma céltica dorme um pesado sono de vinte séculos.


Que de vezes lhe percorri, empunhando o cajado, trazendo a tiracolo o saco de viagem, os balseiros densos, as ásperas quebradas, as angras cavadas pela maré! Que de vezes interroguei o oceano de cima dos promontórios de granito! Conheço-lhe os vincos e as sinuosidades das encostas e dos vales. Conheço a solidão de suas florestas umbrosas e sussurrantes: Kénécan, Coatmeur e, sobretudo, Brocélyande, onde dorme Merlin, o bardo gaulês de harpa douro, o encantador encantado por Viviane, a bela fada que simboliza a natureza, a matéria, a carne. Mas, Merlin despertará, pois que Radiance, sua alma inspirada, seu gênio imortal, vela e, chegado o momento, saberá arrancá-lo, com os filhos, às teias da sensualidade, que lhe paralisam a ação e impedem os voos do pensamento.


A Bretanha não se assemelha a nenhum outro país. Debaixo das sombrias ramagens de seus carvalhos, por sobre seus matagais pardacentos e mornos, onde zune a triste melopéia do vento, por sobre as suas costas recortadas, onde as vagas espumosas travam incessante combate com os rochedos, por toda parte se sente pairar misteriosa influência; por toda parte se sente perpassar o sopro do invisível. O solo, o espaço, as águas, tudo ali é repleto de vozes que murmuram à alma do místico mil segredos esquecidos. Na poesia da terra bretã, há qualquer coisa de austero que empolga e comove. É viril e penetrante. Suas lições, quando compreendidas e aplicadas, produzem as grandes almas, os caracteres heroicos, os profundos e notáveis pensadores.


Lá subsistem os últimos renovos da raça; lá também se perpetuam os acentos de uma língua sonora, cujas frases soam como o retintim de espadas e o entrechocar de escudos.


É a terra do Armor! Ar-mor-ic, país do mar, onde se escondeu por detrás da tríplice muralha das florestas, das montanhas e dos arrecifes, a alma insondável, a índole melancólica e sonhadora da Gália. Somente lá encontrarei, em toda a sua pureza, a raça valorosa, tenaz e forte, cujos feitos estrondearam pelo mundo inteiro. Encontrá-la-eis sob seu duplo aspecto: o que César descreveu nos Comentários, o aspecto gaélico, caracterizado pelo espírito vivaz, lesto e versátil, e o aspecto kímrico, o mais moderno ramo da gente céltica, grave, por vezes triste, fiel a suas afeições, apaixonado pelo que é grande, guardando ciosamente, nos recônditos escaninhos da alma, a arca santa das lembranças.


Essa raça, nada pôde fatigá-la; resistiu duzentos anos pelas armas, como disse Michelet, e mil anos pela esperança. Vencida, ainda assombra os vencedores. Entretanto, soube dar-se. Mediante um casamento, a França assimilou-a.


A alma céltica tem por santuário a Bretanha; porém, as vibrações de seu pensamento e de sua vida se propagam até muito longe, por sobre toda a região que foi a Gália, do Escalda aos Pirineus, do oceano ao país dos Helvécios. Criou para si, em todos os pontos do território nacional, retiros ocultos, onde, latente, vive o pensar das idades: o planalto central, a Ar-vernie, a “alta morada”; o Morvan, as escabrosas Cevenas, as florestas da Lorena, onde Joana ouvia “suas vozes”.


Que é então a alma céltica? É a consciência profunda da Gália. Recalcada pelo gênio latino, oprimida pela brutalidade dos francos, desconhecida, olvidada por seus próprios filhos, a alma céltica sobrevive através dos séculos.


É quem reaparece nas horas solenes da História, nas épocas de desastres e de ruínas, para salvar a pátria em perigo. É a velha mãe que se sobressalta, sempre que as plantas do inimigo lhe maculam o tálamo, e desperta do sono, para concitar os filhos a expelir o estrangeiro.


Dela ainda é que vêm as poderosas influências, as irresistíveis impulsões, as sugestões grandiosas que hão feito da França a campeã da ideia e a inspiradora da Humanidade.


A França por isso não pode perecer, mau grado às suas faltas, suas fraquezas, seus abatimentos e suas quedas. De cada vez que o abismo se lhe abre aos pés, do seio dos espaços, invisível mão se estende para guiá-la. Durante a guerra de Cem Anos, como ao tempo da Revolução, a alma céltica ressurge para entusiasmar, para inflamar os heróis. Orienta os enviados providenciais e muda a face às coisas.


Por vezes se recolhe, adormece, dorme e, então, não lhe escutando a voz, seu povo se abate, perde a virilidade, a grandeza, escorrega pouco a pouco pelo declive da dúvida, do sensualismo, da indiferença, não mais se lembra das virtudes, das forças que tem dentro de si mesmo. Os acordamentos, porém, são ruidosos e, cedo ou tarde, ela de novo aparece, jovem, ardente, impetuosa, para indicar aos filhos o caminho dos altos cimos e o manancial das maravilhosas intuições.


Estamos presentemente numa dessas horas. Há um século, atravessamos um período de silêncio. A alma céltica se conserva muda; o brilho do gênio nacional empalidece. A França se materializa e degenera, esquece seu objetivo sublime, sua sagrada tarefa. Todavia, já no alvorecer dos dias que despontam, o pensador vê a alma da Gália levantar-se envolta em longos véus. Rebrilha numa eterna juventude, coroada de verbena, deslembra os prolongados lutos, a morte aparente, as dolorosas provações. Apontando com o dedo para o céu, mostra-nos a aurora, a primavera da ideia, a vitória definitiva e próxima do pensamento céltico, desembaraçado das sombras de que o colmaram vinte séculos de opressões e de erros.


Multiplicadas manifestações do sentimento céltico se observam a trinta anos.


Por ocasião da Exposição de 1900, o contra-almirante Reveillère escrevia ao Conselho Municipal de Paris, propondolhe fizesse figurar no Campo de Marte, o “menhir” quebrado de Locmariaker, uma pedra de vinte cinco metros, colossal monumento levantado pela mão dos Celtas à borda do pequeno mar, Armor bihan (Morbihan), cujas margens e ilhas são ricas de imponentes relíquias: dolmens gigantescos, cromlechs, túmulus, “pedras aprumadas”, a cuja sombra cantavam os bardos.


É preciso, acrescentava o contra-almirante Reveillère, fundamentando sua proposta, que o “pan-celtismo se torne uma fé, uma religião”.


Precisando esse conceito, dizia mais adiante: “Dupla é a obra de nossa época. Em primeiro lugar, a de renovação da fé cristã, assentando-a na doutrina céltica da transmigração das almas, como a cruz assentou no menhir, única doutrina capaz de satisfazer à inteligência pela crença na perfectibilidade indefinida da alma humana, numa série de existências sucessivas. Em segundo lugar, a da restauração da pátria céltica e da reunião, num só corpo, de seus membros, hoje separados. Não somos Latinos, somos Celtas!”


Aplaudimos estas palavras, que protestam contra um erro histórico, prenhe de consequências funestas à França.


Desde então, tomou incremento esse movimento de ideais. Todos os anos, os representantes mais ilustres da raça se reúnem em assembléia ou eisteddfod, nalgum ponto da terra céltica. As diversas regiões enviam delegados: Escoceses, Irlandeses, Gauleses, Bretões da França, Cornualheses, insulanos de Man, celtaisantes vindos da América e mesmo da Austrália, pois “em qualquer parte do globo os Celtas são irmãos”. Todos se congregam unidos por um mesmo símbolo, para celebrarem a memória dos venerandos antepassados e se entregarem às justas do pensamento.


Ainda mais numerosos são os que, na atualidade, lutam em favor do celtismo renascente sob a forma do moderno espiritualismo.


Julgamos útil, portanto, repetir aqui, sucintamente, o que eram as crenças de nossos pais.


Dissipando os prejuízos semeados em nossos espíritos pelos autores latinos e escritores católicos, luz viva projetaram sobre as instituições e as crenças dos Gauleses os trabalhos de historiadores eminentes, de pensadores eruditos. *


* Ver: Gatien Arnoult, Philosophie gauloise, t. I; Henri Martin, Histoire de France, t. I; Adalphe Pictet, Bibliothèque de Genève; Alfred Dumesnil, Immortalité; Jean Reynaud, L'Esprit de la Gaule


A filosofia dos druidas, reconstituída em sua imponente grandeza, patenteou-se conforme as aspirações das novas escolas espiritualistas.


Como nós, os druidas sustentavam a infinidade da vida, as existências progressivas da alma, a pluralidade dos mundos habitados.


Dessas doutrinas viris, do sentimento da imortalidade que delas dimana, é que nossos pais tiravam o espírito de liberdade, de igualdade social e heroísmo em presença da morte.


Uma espécie de vertigem nos assalta quando, reportando-nos há vinte séculos, consideramos que os princípios da nova filosofia se achavam espalhados por toda a sociedade gaulesa, argamassando-lhe as instituições e fecundando-lhe o gênio.


De repente, apagou-se essa luz intensa que inundou a terra das Gálias.


A mão brutal de Roma, expulsando os druidas, abriu praça aos padres cristãos. Depois, vieram os Bárbaros e fez-se a noite sobre o pensamento, a noite da Idade Média, longa de dez séculos, tão carregada que parecia impossível conseguissem vará-la os raios da verdade.


Enfim, após lenta e dolorosa gestação, a fé dos nossos maiores, rejuvenescida, completada pelos trabalhos científicos, pelas conquistas intelectuais das últimas centúrias, suavizada pela influência do Cristianismo, renasce em novos moldes. Filhos dos Gauleses, retomamos a obra de nossos pais. Armados da tradição filosófica que lhes alicerçou a grandeza, esclarecidos, como eles, a respeito dos mistérios da vida e da morte, oferecemos à sociedade atual, invadida pelos instintos materiais, um ensino que lhe proporciona, de par com o levantamento moral, os meios de implantar neste planeta o reino da justiça, da verdadeira fraternidade. Importa, pois, recordar o que foi, do ponto de vista das convicções e das aspirações, o passado de nossa raça. Importa ligar o movimento filosófico moderno às concepções de nossos avós, às doutrinas dos druidas, tão racionais, baseadas no estudo da Natureza e na observação das forças físicas, e mostrar que a renovação espiritualista é realmente uma ressurreição do gênio da Gália, uma recomposição das tradições nacionais, que tantos séculos de compressão e de erro puderam anuviar, mas não destruir.


A base essencial do druidismo era a crença nas vidas progressivas da alma, na sua ascensão pela escala dos mundos. É sobre esta noção fundamental do destino que julgo dever insistir.


Quisera dispor dos recursos da eloquência e dos elementos de persuasão do talento, para expor a grande lei das Tríades * e dizer como, das profundezas do passado, dos abismos da vida, surdem sem cessar, se distendem e sobem as extensas teorias de almas. O princípio espiritual que nos anima precisa descer à matéria para se individualizar, para constituir e depois desenvolver, por um moroso trabalho secular, suas faculdades latentes e o eu consciente. De degrau em degrau, esse princípio engendra para si organismos apropriados às necessidades de sua evolução, formas perecíveis que abandona ao cabo de cada existência, como traje usado, para buscar outras mais belas, mais bem adaptadas às exigências de suas tarefas, cuja importância cresce de uma para outra.


* Cyfrinach Beirdd Inys Prydain: Mistérios dos bardos da Ilha da Bretanha, tradução Edward Williams, 1794.


Enquanto lhe dura a ascensão, ele se mantém solidário com o meio que ocupa, preso aos seus semelhantes por secretas afinidades, concorrendo para o progresso de todos, ao mesmo tempo em que para o seu próprio progresso todos trabalham.


Passa de vida em vida, pelo crisol da humanidade, sempre mais amplo, sempre diverso, a fim de adquirir virtudes, conhecimentos, novas qualidades. Quando auferiu de um mundo tudo o que lhe ele podia dar em ciência e em sabedoria, eleva-se ao convívio de melhores sociedades, a esferas mais bem aquinhoadas, arrastando consigo todos aqueles a quem ama.


Qual o fim para que se encaminha nessa marcha ascensional?


Qual o termo final de seus esforços? O fim parece tão distante! Não será loucura pretender atingi-lo? O navegante que singra as vastas solidões do oceano escolhe para objetivo de sua rota a estrela que vê tremeluzindo na orla do horizonte. Como alcançá-la? Intransponíveis distâncias os separam! Ele, entretanto, poderá conhecer um dia, noutros tempos e sob forma diferente, essa estrelazinha perdida no fundo dos céus. Do mesmo modo, o homem terrestre que somos conhecerá um dia os mundos da vida feliz e perfeita. A perfeição na plenitude do ser, eis o fim. Aprender sempre, aprofundar os mistérios divinos. O infinito nos atrai, passamos a eternidade a percorrer a imensidade, a gozar-lhe dos esplendores, das belezas embriagadoras. Tornar-se cada vez melhor, cada vez maior, pela inteligência e pelo coração, elevar-se a uma harmonia cada vez mais penetrante; a uma luz cada vez mais clara, arrebatando consigo tudo o que sofre, tudo o que ignora; tal o objetivo assinado pela lei divina a todas as almas.


A concepção das Tríades encerra uma alta ideia da vida! O homem, obreiro de seus destinos, prepara e constrói, pelos atos, o seu futuro. O fim real da existência é a elevação pelo esforço, pelo cumprimento do dever, pelo sofrimento mesmo. A vida, quanto mais acogulada de amarguras, tanto mais produtiva para o que com bravura a suporta. É uma arena fechada em que o bravo mostra a coragem e conquista um grau mais elevado; é uma frágoa em que a desgraça e as provações fazem com a virtude o que com os metais opera o fogo, que os acrisola. Através das vidas múltiplas e das várias condições, o homem precipita sua carreira terrena, indo de uma à outra com intervalos de repouso e recolhimento no espaço; avança continuamente nessa via ascendente que não tem término. Cheias de dores e afanosas são quase todas, no orbe terráqueo; mas, também são férteis, pois que por elas é que nossas almas se engrandecem, que entesouram força e saber.


Semelhante doutrina pode fornecer às sociedades humanas incomparável estímulo para o bem. Enobrece os sentimentos, depura os costumes, afasta as puerilidades de um misticismo falso e as sequidões do positivismo.


Essa doutrina é a nossa. As crenças de nossos pais reaparecem ampliadas, apoiando-se num conjunto de fatos, de revelações, de fenômenos comprovados pela ciência contemporânea.


Elas se impõem à atenção de todos os pensadores.


As existências anteriores de Joana riscaram-se lhe da memória a cada renascimento. É a lei comum. A carne desempenha o papel de um apagador de lembranças; o cérebro humano, salvo casos excepcionais, * só reproduz as sensações que ele mesmo registra. Mas, toda a história de cada homem se conserva gravada na sua consciência profunda. Logo que o Espírito se liberta dos despojos mortais, restabelece-se o encadeamento da recordação, com intensidade tanto maior, quanto mais adiantada na evolução, mais instruída, mais perfeita estiver a alma. Não obstante o esquecimento temporário, o passado se mantém sempre vivo em nós. Revelasse-nos, nas vidas terrestres, pelas aptidões, capacidades, gostos adquiridos, pelos traços do caráter e da mentalidade. Bastaria que nos estudássemos com atenção, para reconstruirmos o nosso passado em suas linhas principais. O mesmo ocorria com Joana d'Arc, em quem se podiam descobrir os característicos de suas vidas célticas e os menos remotos de suas existências de patrícia, de grande dama amante das vestes suntuosas e das belas armaduras. O que nela, das primeiras, sobretudo, persiste é a forma particular e bem acentuada do misticismo dos druidas e dos bardos, isto é, a intuição direta das coisas da alma, intuição que reclama uma revelação pessoal e não aceita a fé imposta; são as faculdades de vidente, peculiares à raça céltica, tão disseminadas nas origens de nossa história e ainda hoje observadas em certos meios étnicos, especialmente na Escócia, na Irlanda e na Bretanha armoricana. Só pelo uso metódico dessas faculdades se pode explicar o conhecimento aprofundado que os druidas tinham do mundo invisível e de suas leis. A festa de 2 de novembro, a comemoração dos mortos, é de origem gálica. Os gauleses praticavam a evocação dos defuntos nos recintos de pedra. As druidisas e os bardos obtinham os oráculos.


* Ver: O Problema do Ser e do Destino, cap. XIV. Renovação da memória.


A História nos ministra exemplos desses fatos. * Refere que Vercingétorix se entretinha, à sombra da ramada dos bosques, com as almas dos heróis, mortos pela pátria. Como Joana, outra personificação da Gália, o jovem chefe ouvia vozes misteriosas.


*Ver Bosc et Bonnemère, Histoire nationale des Gaulois.


Um episódio de sua vida prova que os gauleses evocavam os Espíritos nas circunstâncias graves.


Na extremidade do velho continente, no ponto em que acaba o fragoso planalto da Cornualha bretã, altas penedias escalam um céu carregado de nuvens. Os vagalhões enfurecidos porfiam numa eterna batalha contra as gigantescas rochas. Velozes, espumantes, quais muralhas líquidas, acorrem do mar largo e ruem sobre os baluartes de granito. Os rochedos, carcomidos pela ação das águas, juncam de pedregulhos a praia. Durante as noites invernosas, o fragor dos blocos que se entrechocam e o clamor imenso do oceano se fazem ouvir a muitas léguas no interior, infundindo nos corações supersticioso terror. A pequena distância da costa sinistra, em meio de parcéis que a espuma dos escarcéus assinala, emerge uma ilha, outrora recamada de bosquetes de carvalho, sob cujas frondes se erguiam altares de pedra bruta. É Sein, antiga morada das druidisas; Sein, santuário do mistério, que os pés do homem jamais conspurcavam. Todavia, antes de levantar a Gália contra César e de, num supremo esforço, tentar libertar a pátria do jugo estrangeiro, Vercingétorix foi ter à ilha, munido de um salvo conduto do chefe dos druidas. Lá, por entre o fuzilar dos relâmpagos, diz a legenda, apareceu-lhe o gênio da Gália e lhe predisse a derrota e o martírio.


Certos fatos da vida do grande chefe gaulês não se explicam senão mediante inspirações ocultas. Por exemplo, sua rendição a César, próximo de Alésia. Qualquer outro Celta teria preferido matar-se, a se submeter ao vencedor e a servir-lhe de troféu no triunfo. Vercingétorix aceita a humilhação, a fim de reparar pesadas faltas, que cometera em vidas antecedentes e que lhe foram reveladas.


Tais são os princípios básicos da filosofia druidesa; em primeira linha, a unidade de Deus. O Deus dos Celtas tinha por templo o infinito dos espaços, ou as guaridas misteriosas dos grandes bosques e era, acima de tudo, força, vida, amor. Os mundos que marchetam as regiões etéreas são as estações das almas, na ascensão para o bem, através de vidas sempre renascentes, vidas cada vez mais belas e felizes, segundo os méritos adquiridos. Íntima comunhão une os vivos da Terra aos defuntos, invisíveis, mas presentes. Esse preceito enriquece o espírito de superiores noções sobre o progresso e a liberdade. Graças a ele, o Celta introduziu no mundo o gosto pelo ideal, coisa que jamais conheceu o Romano, amante das realidades positivas. O Celta é inclinado às ações nobres e generosas. Da guerra, aprecia a glória, não o proveito. Pratica a abnegação, despreza o medo, desafia a morte. Daí, a atitude que guarda nos combates. “Os chefes guerreiros só entram na peleja vestindo flamantes uniformes e cavalgando corcéis dignos dos deuses”, diz o coronel Biottot. *


* Coronel Biottot – Les Grands Inspirés devam la Science: Jeanne d'Arc, pág. 224.


Estudai bem Joana d'Arc e descobrireis nela todos esses sentimentos e gostos. Joana é como que uma síntese do que de mais puro e de mais eminente encerram a alma céltica e a alma francesa, razão pela qual sua memória fulgirá sempre, qual estrela, no firmamento nuvioso da pátria. Em todas as ocasiões de infortúnio, a França se voltará instintivamente para ela, como para um paládio vivo.


Nova Veleda, última flor desabrochada entre as vergônteas do visco sagrado, Joana personifica o gênio da Gália e a alma da França.


Nela se manifestam todas as modalidades, todos os sinais indicativos das faculdades que constituem o dom dos videntes e das druidisas. Médium por excelência, foi o instrumento de que os Espíritos protetores da Gália, que se tornara a França, lançaram mão para salvar este país. Ora, ao êxito de uma obra de salvação, é mister que o salvador de um povo seja produto dos mais puros elementos de sua substância, rebento das raízes vigorosas de suas origens e de toda a sua História. Joana o foi no mais elevado grau. Eis porque encarna o duplo gênio da Gália e da França cristã.


Embora uma parte de nossa raça tenha perdido os caracteres que lhe distinguiam a nacionalidade, a alma céltica sobrevive na nação francesa. É, conforme dizíamos há pouco, a sua consciência profunda e, assim como as forças acumuladas em nós, no correr das idades, e entorpecidas pela carne, têm despertares ruidosos, também a alma céltica rebrilhará numa ressurreição esplendente, para salvar, não mais, como outrora, a vida material de seu povo, mas para lhe salvar a vida moral comprometida. Virá reacender nas almas cansadas o amor ao saber e a disposição ao sacrifício. Repetir-nos-á as palavras consagradas e as comoventes invocações, que faziam retumbar as praias sonoras e os ecos das florestas. Proporcionará aos Espíritos hesitantes, que vogam ao léu no mar da incerteza, a visão de horizontes, onde tudo é calma e maravilha.


À França atual faltava a ciência superior dos destinos, a divina esperança, a confiança serena no futuro infinito. Seus educadores não lhe têm sabido dar esses elementos essenciais da verdadeira grandeza, indispensáveis aos nobres arroubos da alma. Daí decorre a esterilidade relativa de nossa época, a ausência de ideal e de gênio. Eis aqui, porém, o remédio.


Ao mesmo tempo em que as correntes da democracia nos reconduzem às tradições políticas da Gália, o Espiritismo experimental nos reconduz às suas tradições filosóficas. Allan Kardec, inspirado pelos Espíritos superiores, restaurou, dilatando-lhes o plano, as crenças de nossos antepassados. É verdadeiramente o espírito religioso da Gália que revive nesse chefe de escola. Nele, tudo lembra o druida: o nome que adotou, absolutamente céltico, o monumento que, por sua vontade, lhe cobre os despojos materiais, sua vida austera, seu caráter grave, meditativo, sua obra inteira. Allan Kardec, preparado em existências precedentes para a grande missão que acaba de desempenhar, não é senão a reencarnação de um Celta eminente. Ele próprio o afirma na seguinte mensagem obtida em 1909:


“Fui sacerdote, diretor das sacerdotisas da ilha de Sein e vivi nas costas do mar furioso, na ponta extrema do que chamais a Bretanha.


“Não esqueçais o grande Espírito de vida, aquele que faz crescer o visco nos ramos do carvalho e que as pedras antigas de vossos avós consagram. Sinto-me feliz por vos assegurar que vossos pais tiveram a fé. Guardai-a como eles, pois que o espírito céltico não está extinto na França; tem sobrevivido e restituirá aos filhos à vontade de crer e de se aproximar de Deus.


“Não esqueçais aqueles a quem amastes, os quais todos vos cercam, como as estrelas do céu que não vedes em pleno dia, ainda que brilhem constantemente.


“O poder divino é infinito; irradiado por sobre vós, através das brumas da Terra, seus raios vos chegam disseminados e enfraquecidos.


“Escutai a voz do coração quando, enfrentando o oceano cujas encapeladas vagas se perseguem, vos sentis tomados de medo e de esperanças. Ela fala alto aos que o querem ouvir. Deveis compreendê-la, porquanto para isso tendes tido, reunidos, todos os ensinamentos da Terra.


“Amai-nos, a nós os homens antigos desse mundo. Temos precisão de que vos lembreis de nós, meus bem-amados! Que vossas almas venham visitar-nos durante o sono que Deus vos concede!


“Quereis saber quem sou: dir-vos-ei meu nome; porém, que importam nomes! Deixamos na Terra, com o nosso corpo, a recordação dos nomes e das coisas, para não mais nos lembrarmos senão das vontades de Deus e dos sentimentos que a Ele nos levam, para não mais conhecermos senão seu amor e sua glória, pois que, na luminosidade infinita, todas as chamas como que se apagam: o sol de Deus as torna menos visíveis e as funde numa eterna irradiação.


“A Terra não é mais do que um lugar de passagem, uma floresta profunda e escura, onde só muito surdamente ressoam os ecos da vida nos mundos.


“Aí estaremos sempre, os grandes guias que encaminham a Humanidade sofredora para o fim desconhecido dos homens, mas que Deus fixou e que brilha para nós na noite dos tempos como um facho luminoso.


“Esperemos o momento em que, finalmente libertos, possais voltar para junto de nós, a cantar eternamente o hino que glorifica a Deus.


“Almas da França, sois filhas da Gália. Lembrai-vos das crenças de vossos antepassados, que também foram as vossas. Remontai algumas vezes, pelo pensamento, às fontes saudáveis de nossas origens, às tradições fortes e às alturas de nossa história, para recobrardes a energia e a fé, para reavivardes o espírito e reconfortardes o coração, na pureza do ar, na beleza dos cumes, na luz divina.”


Allan Kardec


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