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As missões de Joana D'Arc



Joana d’Arc e a idéia de religião


XV


Amo a Deus de todo o meu coração.


Jehanne


As crenças de Joana são as do seu tempo: “Sou boa cristã e boa cristã morrerei”,(190) respondia aos juízes, sempre que a interrogavam sobre sua fé. Nem podia ser de outra maneira. Só nas convicções e esperanças dos homens da época podia ela haurir as energias, os impulsos necessários à salvação da França. Assistia-a o mundo invisível, que se lhe revelava sob as formas e aparências familiares à religião da Idade Média. Aliás, que importam as formas! Variam e mudam com os séculos. Quanto ao alicerce da idéia religiosa, esse, sim, é eterno, pois que toca as fontes divinas.


A idéia religiosa, em seus diversos aspectos, penetra profundamente toda a História, toda a vida intelectual e moral da Humanidade. Freqüentemente se extravia e engana, podendo seus ensinamentos e manifestações ser contestados. Sempre, porém, se apóia em realidades invisíveis, de ordem permanente, imutáveis, que o homem só entrevê gradualmente no curso de sua lenta e trabalhosa evolução.


As sociedades humanas não podem dispensar um ideal religioso. Desde que o tentam rechaçar ou destruir, logo a desordem moral aumenta e a anarquia alça ameaçadora a cabeça. Não o vemos na quadra atual? As leis terrenas são impotentes a refrear o mal. Para se comprimirem as paixões, indispensáveis são a força interior e o sentimento das responsabilidades que a noção do Além faculta.


A idéia religiosa não pode perecer. Se por instantes um véu a encobre, é unicamente para que ressurja debaixo de outras formas mais bem adequadas às necessidades dos tempos e dos meios.


Eram os mais elevados, dissemos, os sentimentos religiosos de Joana. Absoluta a fé em Deus, que a enviou; ilimitada a confiança que deposita em seus guias invisíveis. Observa fielmente os ritos e práticas do culto de então; mas, quando afirma sua fé, sobrepõe-se a todas as autoridades estabelecidas neste mundo.


As crenças ardentes da heroína se inspiram diretamente nas coisas do Alto e embebem as raízes na sua consciência. Efetivamente, a quem sobretudo ela obedece? Às vozes que escuta e não à Igreja. De nenhum intermediário se socorre para comunicar com o Céu. A poderosa inspiração traz-lhe um sopro que lhe bafeja a fronte e essa inspiração lhe domina a vida inteira e preside a todos os atos.


Relembremos a cena de Ruão, quando o bispo de Beauvais, acompanhado de sete padres, a interroga na prisão: “Joana – diz o bispo –, queres submeter-te à Igreja?”


Ela responde: “Reporto-me a Deus em todas as coisas, a Deus que sempre me inspirou!”


P. “Aí está uma palavra bastante grave. Entre ti e Deus, há a Igreja. Queres, sim ou não, submeter-te à Igreja?”


R. “Vim ao encontro do rei para salvar a França, guiada por Deus e por seus santos Espíritos. A essa Igreja, a de lá do Alto, me submeto com relação a tudo que tenho feito e dito!”


P. “Assim, recusas submeter-te à Igreja; recusas renegar tuas visões diabólicas?”


R. “Reporto-me a Deus somente. Pelo que respeita às minhas visões, não aceito o julgamento de homem algum!”


A razão íntegra lhe diz que aquela Igreja não é a de Deus. A potência eterna absolutamente não toma parte nas iniqüidades humanas. Não lhe sendo possível demonstrar esta verdade com o auxílio de argumentos sutis e eruditos, exprime-a em frases breves, claras, brilhantes, como os lampejos de uma lâmina de polido aço. Ela obedecerá à Igreja, mas com a condição de serem suas exigências conformes às vontades do Alto: “Servir a Deus em primeiro lugar.”


Nas concepções religiosas de Joana d'Arc prima a comunhão pelo pensamento e pelos atos com o mundo invisível, com o mundo divino. Por meio dessa comunhão é que se operam os grandes feitos, dela se originam as profundas intuições. Para que estas, porém, se possam verificar, são precisas certas condições de elevação moral, que Joana preenchia no mais alto grau. Por consegui-la naqueles em cujo meio vivia, despertava-lhes os sentimentos religiosos, obrigando-os a se confessarem e a comungarem. Expulsava do acampamento as mulheres de vida desregrada. Não marchava contra o inimigo, senão ao som das preces e dos cânticos. Tudo isto é de molde a causar surpresa ao cepticismo de nossa época; mas, na realidade, por outros quaisquer meios ela não lograria, num século de fé cega, obter daqueles homens grosseiros a necessária exaltação. Apenas cessa esse adestramento moral, assim que se completa a obra de intriga dos cortesãos e dos despeitados, logo que os hábitos viciosos e os maus instintos de novo preponderam, recomeçam os desastres e os reveses.


Às potências superiores nada importam a forma do culto e o aparato religioso. Exigem tão somente dos homens elevação da alma e pureza de sentimentos, o que se pode conseguir em todas as religiões e mesmo fora e acima das religiões. É o que muito claramente sentimos, nós espíritas, que, por entre zombarias e dificuldades sem conta, vamos pelo mundo a proclamar a verdade, tendo como único apoio a ajuda, que nunca nos faltou, das Entidades do Além.


O que, sobretudo, caracteriza Joana é a confiança, confiança no êxito, confiança em suas vozes, confiança em Deus. No momento da luta, nas horas indecisas da batalha, incute-a em todos os que a seu lado combatem. A fé que tem na vitória é tão grande, que constitui um dos elementos essenciais do definitivo triunfo.


Sua vida inteira se nos apresenta impregnada dessa confiança. Seja na prisão, seja na presença dos juízes, ela acredita sempre na libertação final; afirma-o continuadamente com segurança. As vozes lhe disseram que seria libertada “por uma grande vitória”. Nestas palavras, havia apenas uma figura de linguagem; tratava-se, realmente, do martírio. Joana, a princípio, não o entendendo assim, contou por muito tempo com o socorro dos homens. Notemos a necessidade de tal erro. A promessa das vozes lhe serviu de supremo alento nos dias dolorosos do processo. Era donde lhe vinha o desassombro que manteve diante do tribunal. Fez mesmo com que, chegado o momento do sacrifício, ela caminhasse confiante para a morte. O derradeiro grito que solta dentre as chamas vorazes ainda é uma afirmação da sua crença: “Não, minhas vozes não me enganaram!”


Apenas ligeiras dúvidas lhe roçaram de leve o pensamento em Melun, em Beaurevoir, em Saint-Ouen de Ruão. Pobre menina! Quem ousará tirar daí motivo para recriminá-la, se lhe atentar na idade e na situação difícil em que se encontrava? O desenlace conservou-se-lhe oculto até ao fim. Como teria podido avançar pelo árduo caminho que lhe fora traçado, se soubera de antemão tudo o que a esperava? Imenso benefício nos fazem os Céus, permitindo nos seja velada a hora da agonia, a dolorosa provação que porá fim à vida. Não é, com efeito, preferível que nossas ilusões se desfolhem lentamente e que a esperança persista no fundo de nossos corações? Menor será o dilaceramento.


À medida, porém, que se lhe aproxima o termo da carreira, a verdade terrível se desenha mais nitidamente: “Perguntei às minhas vozes se seria queimada. Responderam-me: Confia em Nosso Senhor e ele te ajudará. Recebe tudo com resignação; não te aflijas por causa do teu martírio. Virás enfim para o Paraíso”. (191)


Nas horas sinistras, quando todas as esperanças jazem por terra, a idéia de Deus constitui o supremo refúgio. É fora de dúvida que esta idéia nunca esteve separada do pensamento de Joana. Ao contrário, dominou-lhe a existência inteira. Mas, nos momentos angustiosos, penetra-a com mais viva intensidade e a preserva das fraquezas do desespero. Das profundezas infinitas descerá o consolador raio de luz, que iluminará a sombria masmorra, onde, há seis meses, ela suporta mil males, mil injúrias, e um recanto do céu se lhe abrirá no límpido olhar de vidente. Um véu de tristeza cobre as coisas terrenas. Deserta-lhe o coração a esperança de ser libertada. A ingratidão, a negra perfídia dos homens, a maldade feroz dos juízes se lhe desvendam na mais completa e hedionda nudez, do mesmo passo que a pungente realidade se apresenta. Contudo, através das grades de seu cárcere, coam-se os esplendores de um mundo mais belo. Para lá do horrendo báratro que lhe cumpre transpor, para lá do suplício, para lá da morte, ela descortina a alvorada das coisas eternas.


Sabemos que o sofrimento é o remate de uma existência bem preenchida. Sem o sofrimento, nada há de completo, nem de grande. É a afinação das almas, auréola que nimba a fronte dos santos e dos puros. É a única porta de entrada para os mundos superiores e é também a significação do termo “paraíso”, único capaz de exprimir aos homens do século que corre a idéia da vida espiritual, banhada de claridades e harmonias que jamais se extinguem.


Joana não tem perto de si uma só pessoa a quem confie as mágoas e dores que a oprimem. Deus, porém, não abandona seus missionários. Invisível, mas presente, é o amigo sempre fiel, o esteio forte, o Pai terno, que vela pelos filhos desgraçados. Por tê-lo desconhecido, por haver desdenhado das forças, dos socorros do Alto, o homem atual não encontra amparo nas provações, nem consolação na dor. A sociedade contemporânea se agita febricitante e rola na incoerência das idéias e dos sistemas; o mal lhe cresce no seio sem que se lhe depare em parte alguma a estabilidade e o contentamento íntimo, exclusivamente porque se dedicou às aparências e às superficialidades, timbrando em desconhecer as verdadeiras alegrias, os incomensuráveis recursos do mundo oculto. Julgou alcançar a felicidade no desenvolvimento das riquezas materiais e não fez mais do que aumentar o vazio e o amargor nas almas. De todos os lados se ouvem gritos de furor, observam-se reivindicações violentas. A noção do dever quase se apagou e as bases da ordem se mostram fendidas. O homem não mais sabe amar, porque não mais sabe crer. Volve-se para a Ciência, mas a Ciência, como que esmagada ao peso das descobertas, se mantém impotente para lhe ministrar a confiança no futuro e a paz interior.


Na manhã mesma do suplício, disse Joana a Pierre Morice: “Pela graça de Deus, ainda hoje estarei no paraíso”.(192)


Resignada ao martírio, afrontá-lo-á valorosamente, com a alma plena de dignidade. A morte, ainda a mais cruel, não é preferível ao que ela sofre há seis longos meses? O pensar na morte desperta nos jovens uma terrível angústia. Joana a experimentou, desde o dia em que a meteram numa gaiola de ferro, em Ruão. O que aí padeceu não é pior do que morrer? As esperanças, os sonhos de glória, os grandes desígnios, tudo se desvaneceu como fumaça. Quem poderá dizer o que se passou naquela alma angélica, durante as prolongadas vigílias no cárcere, à proporção que a hora fatal se avizinhava?


“Estarei no paraíso!” dizia. Da mesma maneira se devem compreender estas outras palavras, que refletem as crenças da época: “Não pedi às minhas vozes, como recompensa final, senão a salvação de minha alma”. (193) Salvar a alma, eis o axioma das convicções católicas, o objetivo último prescrito pelas idéias religiosas da Idade Média. É uma concepção muito acanhada, mas que, entretanto, abriga um fundo de verdade. Realmente, nada se salva, nada se perde. A justiça divina reserva modos de reparação a todas as faltas e nos oferece meios de nos levantarmos de todas as quedas. O preceito deverá ser modificado neste sentido: A alma tem que sair, da vida, melhor e maior do que entrou. Por diversas maneiras se pode atingir essa meta; pelo trabalho, pelo estudo, pela provação, pelo sofrimento. Esse o alvo que sem cessar devemos ter diante dos olhos. Para Joana, tais palavras encerram um sentido mais particular. Sua preocupação de todos os instantes está em desempenhar dignamente a missão que lhe foi confiada, em alcançar para todos os seus atos e dizeres a sanção daquele que nunca se engana.


*


O sentimento religioso de Joana não degenera em beatice, ou em preconceitos pueris. Ela não importuna a Deus com intermináveis e vãos pedidos. É o que ressalta de suas palavras: “Não recorro a Nosso Senhor sem necessidade”. (194)Não hesita em combater debaixo dos muros de Paris, no dia da Natividade, mau grado às censuras que lhe fizeram por esse motivo.


Agrada-lhe orar na igreja, especialmente nas ocasiões em que ali reinam o silêncio e a solidão, que é quando, concentrado e calmo o pensamento, a alma voa com mais firmeza para Deus. Mas, o que é certo, não obstante dizer Anatole France o contrário, é que os padres pouco lhe influenciaram a juventude. Conforme ao que ela afirma no curso dos interrogatórios de Ruão, foi sua mãe quem a instruiu em matéria de religião: “Não recebi as crenças que tenho de outra pessoa que não minha mãe”. (195)


Nada diz a respeito das vozes e das visões ao cura de sua aldeia e só consigo mesma se aconselha acerca do que tem relação com os Espíritos seus protetores: “Sobre se devo crer nas minhas revelações – dizia em Ruão –, não peço conselho a bispo, cura, ou a quem quer que seja”. (196)


Deposita em Deus ilimitada fé, que lhe serve de móvel a todos os atos e lhe permite arrostar as mais duras provações: “Tenho bom mestre – diz –, Nosso Senhor, de quem tudo espero e não de outro”. (197)


"Que valem as vicissitudes deste mundo, se o nosso pensamento se faz uno com Deus, isto é, com a lei eterna e divina? Todavia, Deus não é somente mestre. É Pai a quem devemos amar, como os filhos amam aquele que lhes deu a vida. Poucos homens o sentem ou compreendem, eis porque renegam de Deus na adversidade. Joana, porém, o afirma em termos tocantes: “Tudo confio de Deus, meu criador. Amo-o de todo meu coração”. (198)


Inutilmente, os inquisidores, que não desprezam meio algum de atormentá-la, procuram feri-la nas crenças e levá-la ao desespero. Apontam-lhe com pérfida insistência a situação de aparente abandono em que se vê, a ilusão de suas esperanças, a irrealidade das promessas do céu. Ela responde invariavelmente: “Que Deus me tenha abandonado, nego-o!” Que exemplo para aqueles que as provações acabrunham, que acusam a Deus dos males que os afligem e que muitas vezes blasfemam!


A seu ver, Deus também é juiz: “Confio em meu juiz, que é o Rei do Céu e da Terra”.(199) Ingênua expressão de que se serve para designar a potestade que paira acima de todas as deste mundo.


Durante a vida, Joana foi sempre vítima da injustiça dos homens. Sofreu por motivo do zelo dos cortesãos e dos chefes militares, do ódio dos fidalgos e dos padres. Os juizes de Ruão, longe de se inspirarem no sentimento da equidade, buscaram inspiração em seus preconceitos e paixões, para condená-la. Desse julgamento iníquo, ela, dirigindo o olhar ao céu, apela para o soberano juiz, que pesa em sua balança eterna as ações humanas. “Confio em meu juiz!” É o refúgio dos espoliados, dos deserdados, de todos quantos a parcialidade feriu no coração. E nenhum o invoca em vão!


Nada mais comovente do que a resposta que dá à seguinte pergunta: “Sabes se estás na graça de Deus?” “Se não estou, que Deus me faça estar; se estou, que me conserve nela. Seria a mais aflita criatura do mundo, se soubesse não estar na graça de Deus!”. (200)


A candura daquela alma puríssima encontra modo de burlar a treta dos algozes. A insidiosa questão podia esfi-la. Respondendo afirmativamente, daria prova de presunção; negativamente, confessar-se-ia culpada e justificaria as suspeitas. Porém, sua inocência frustra os astuciosos ardis. Reporta-se ao Juiz supremo que, só Ele, sonda os corações e as consciências. Que se deve ver em tais palavras? A manifestação de um sentimento de delicada fé, ou uma das súbitas inspirações que lhe eram prodigalizadas? Seja como for, exprimem um dos mais admiráveis conceitos, que nos legou aquela criança de dezenove anos.


*


Em todas as circunstâncias, Joana se considera um instrumento da vontade divina e nada faz sem consultar as potências invisíveis. Só se move sob as ordens do Alto: “A hora é quando Deus quer. É preciso trabalhar quando Deus manda. Trabalhai e Deus trabalhará”. (201)


Vê-se, pois, que, no seu entender, não é só na sua vida que a intervenção da divindade se manifesta, mas em todas as vidas. Nossos atos precisam ser acordes com o plano divino. Antes de se pôr em ação, cada um deve interrogar sua consciência profunda, que é a voz de Deus em nós e que nos dirá qual o sentido em que melhormente dirigiremos nossos esforços. Deus não atua em nós e conosco, senão mediante o nosso livre concurso. Quando com sua lei coincidem nossos atos e vontades, a obra que executarmos se tornará fecunda e seus efeitos repercutirão em todo o nosso destino.


Todavia, poucos homens escutam a voz que dentro de todos fala nas horas solenes. Na maioria, arrebatados pelas paixões, pelos desejos, esperanças e temores, lançam-se no turbilhão da vida, para conquistar o que lhes é mais prejudicial; atordoam-se, embriagam-se com a posse das coisas contrárias a seus verdadeiros interesses e só no ocaso da existência se lhes mirram as ilusões e dissipam os erros, ao mesmo tempo em que vêem apagar-se a miragem dos bens materiais. Aparece então o cortejo das tristes decepções e verificam ter sido vã a agitação em que viveram, por não terem sabido estudar e apreender os desígnios de Deus, relativamente a cada um e ao mundo. Felizes daqueles a quem a perspectiva das existências futuras oferece a possibilidade de retomarem a tarefa desprezada e de melhor empregarem as horas!


O que não soube ver a grande harmonia que reina em todas as coisas e a irradiação do pensamento divino por sobre a Natureza e as consciências, esse é inábil para estabelecer a concordância entre seus atos e as leis superiores. Ao voltar para o Espaço, caído o véu, sentirá a amargura de reconhecer que terá de recomeçar toda a obra, animado de outros propósitos e de uma concepção mais justa, mais elevada do dever e do destino.


Objetar-nos-ão que, entretanto, nem sempre é fácil de reconhecer-se a hora de Deus, que suas vontades são obscuras e às vezes impenetráveis. Sim, não há dúvida de que Deus se oculta aos nossos olhares e que seus desígnios nos são freqüentemente incertos. Mas, só por necessário, por nos deixar completa liberdade, é que Deus se esconde. Se fora visível a todos os olhos, se suas vontades se afirmassem com prepotência, nenhuma hesitação seria possível e, portanto, nenhum mérito. A Inteligência que dirige o universo físico e moral se furta às nossas vistas, porque dispôs as coisas de tal maneira, que ninguém é obrigado a acreditar nela. Se a ordem e a harmonia do Cosmos não bastam para convencer o homem, ele é livre. Nada constrange o céptico a caminhar para Deus. Deus se oculta, para nos obrigar a esfigu-lo e porque esta procura constitui o mais nobre exercício para as nossas faculdades, o princípio do mais alto desenvolvimento que estas podem atingir. Soe, porém, uma hora grave e decisiva e, se quisermos pôr-nos em guarda, haverá sempre em torno de nós e em nós mesmos um aviso, um sinal, que nos aponta o dever.


A desatenção, a indiferença com que encaramos as coisas do Alto e suas manifestações na existência terrena, eis a origem de nossas irresoluções e incertezas. Para aquele que as invoca, que as solicita, que as espera, elas nunca se conservam mudas: por mil vozes lhe falam claramente ao ouvido, ao coração. Ocorrerão fatos, surgirão incidentes, que por si sós lhe indicarão as resoluções a tomar. É na própria trama dos acontecimentos que Deus se revela e nos instrui. Compete-nos a nós apanhar e compreender, no momento oportuno, o misterioso aviso que, meio velado, ele nos dá, sem no-lo impor.


Joana, com um bom senso simultaneamente cândido e profundo, sabe definir bem a ação providencial na vida humana. Perguntam-lhe os juízes de Ruão: “Se neste instante visses uma saída, partirias?” – “Se eu visse a porta aberta, ir-me-ia – diz ela –, pois que isso seria a licença dada por meu Senhor”. (202)


Em todas as ocasiões, a vontade do Alto foi a sua. “É preciso que eu vá – diz, respondendo a João de Metz, em Vaucouleurs –. É preciso que eu vá e o faça, porque assim o quer meu Senhor.” – “E quem é teu Senhor?” – “É Deus!” respondeu simplesmente.(203) Nem riscos nem perigos a reterão. Comentai também estas outras palavras, que no-la mostram colocada muito acima da influência das glórias, ou das tristezas humanas, nas regiões da calma, da serenidade pura! “Que importa, uma vez que satisfaça a Deus!”


E ainda estas, que tocam ao sublime. Presa em Compienha e arrastada de prisão em prisão até ao cárcere, à fogueira de Ruão, bendiz a mão que a fere. Aos juízes, que tentam explorar-lhe a dor e abalar-lhe a fé na missão recebida do Céu, responde: “Do momento em que aprouve a Deus, é bem que eu tenha sido presa”. (204)


Esta resposta é mais grandiosa e mais bela do que todas as suas vitórias, todos os seus triunfos.


*


Em resumo: inutilmente torturariam os textos e os fatos, para demonstrarem que Joana foi, em todos os pontos, de uma ortodoxia perfeita. Sua independência, em matéria de religião, irrompe a cada minuto das palavras que profere: “Reporto-me a Deus somente.”


Sua linguagem, sua intrepidez nos sofrimentos e em presença da morte não lembram nossos antepassados gauleses? À barra do tribunal de Ruão, a virgem Lorena se nos afigura o gênio da Gália soberbamente ereto diante do gênio de Roma, a reivindicar os direitos sagrados da consciência. Joana não admite árbitro entre si e o Céu. A dialética que lhe opõem, as sutilezas da argumentação, todas as forças da eloqüência vêm quebrar-se de encontro à vontade firme que a impulsiona, à segurança calma que a escuda, à confiança inabalável que lhe inspiram Deus e seus mensageiros. Sua palavra vence todos os sofismas, que se pulverizam ao choque das inflexões de suas respostas. É uma aurora que luz nas trevas da Idade Média, iluminando-as com uma branda claridade.


Notai que estamos no momento em que acaba de aparecer a Imitação de Jesus-Cristo (1424), obra atribuída a Gerson, mas cujo verdadeiro autor nunca foi conhecido. É um dos primeiros gritos de libertação da alma cristã, que se emancipa do dogma e comunica diretamente com o seu Deus, sem intermediário algum.


Todavia, Joana ignora o que pertence ao domínio das letras. Para ela, que tem a intuição da verdade, não existe a necessidade de estudos prévios. Sua força promana da fé, da piedade profunda, independente, dissemos, que se alça acima das concepções estreitas e mesquinhas da época e sobe diretamente ao céu. Tal o seu crime e a razão do seu martírio.


Por isso mesmo, não é dos menos estranhos, em nossos tempos agitados, o espetáculo que nos proporciona a Igreja Romana, santificando a virgem que outrora considerava herética. A memória de Joana foi sempre funesta à Igreja. Já no século XV, o Processo de reabilitação representa um violento golpe nela vibrado, pois que acarretou a queda da Inquisição em França, no que há de, forçosamente, reconhecer um dos benefícios que devemos à heroína. A última obra do sinistro tribunal foi um processo contra os Vaudeses, em 1461.


Não é por efeito de simples acaso que neste momento todos os olhares se voltam novamente para aquela figura ideal. Há nesse fato um pressentimento quase unânime, uma aspiração inconsciente da Humanidade civilizada, um como sinal do futuro. A Igreja Romana, colocando Joana d’Arc nos altares, faz um gesto prenhe de conseqüências: assina espontaneamente a sua própria condenação.


Essa donzela do décimo quinto século, que conversou pessoalmente com suas vozes e leu tão claramente no mundo invisível, é a imagem da Humanidade próxima, que, também, conversará com o mundo dos Espíritos, sem a intercessão dos sacerdócios oficiais, sem o auxílio de ritos, cujo sentido a Igreja perdeu e cujas virtudes deixou se obliterassem. Soou a hora em que, novamente, a grande alma de Joana paira sobre o mundo, em comunhão com o invisível, e funda o reinado das adorações em espírito e em verdade.


E como, segundo a lei, tudo o que é santo e grande deve germinar no sofrimento e ter por sagração a dor, manda a justiça que os novos tempos e a era do Espírito puro se inaugurem sob o patrocínio daquela que foi a vítima da Teologia e a mártir da mediunidade.


*


Cada religião é um reflexo do pensamento eterno, envolto nas sombras e nas imperfeições do pensamento humano. Às vezes, dificilmente se podem separar as verdades que nele se contêm, dos erros acumulados pela obra dos séculos. Entretanto, o que há de divino naquele pensamento projeta uma luz que aclara as almas sinceras. As religiões são mais ou menos verdadeiras; são, sobretudo, as estações que o espírito humano percorre, para elevar-se às concepções sempre mais largas do futuro do ser e da natureza de Deus. As formas, as manifestações religiosas são discutíveis, porque passageiras e mutáveis. O mesmo, porém, não se dá com o sentimento profundo que as inspira, com a razão de ser de cada uma delas.


A Humanidade, em sua marcha para os destinos que a aguardam, vê-se compelida a purificar mais e mais a religião, desembaraçando-a das fórmulas materiais e dos dogmas, sob os quais o pensamento se encontra quase sempre sepultado. Nasce de uma idéia falsa e perigosa o desejo, que muitos alimentam, de destruir as concepções religiosas do passado. A sabedoria consiste em aproveitar os elementos de vida que elas encerram, para com eles construir o edifício do pensamento futuro, que indefinidamente se alteará para o céu.


Cada religião contribuirá com uma centelha da verdade para a constituição da fé vindoura. O druidismo e o budismo lhe fornecerão a noção das vidas sucessivas; a religião grega, o pensamento divino enfeixado na Natureza; o Cristianismo, a revelação mais alta do amor, o exemplo de Jesus, esvaziando o cálice das dores e sacrificando-se pelo bem dos homens. Se as fórmulas do Catolicismo estão gastas, o pensamento do Cristo se conserva vivaz. Seus ensinamentos, sua moral e seu amor são ainda o consolo dos corações mortificados pelas lutas acerbas deste mundo. Sua palavra pode ser renovada; as partes veladas de sua doutrina, expostas à luz, reservam tesouros de beleza para as almas ávidas de vida espiritual.


A época presente assinalará uma etapa decisiva da idéia religiosa. As religiões, envelhecidas, acurvadas sob o peso dos séculos, sentem a necessidade da inoculação, em seus organismos, de outros princípios regeneradores, da expansão de suas concepções referentes à finalidade da existência e das leis do destino.


A Humanidade procura o caminho para novos luminares. De quando em quando. Um grito de angústia, um lamento doloroso sobe das profundezas da alma ao céu. É um anseio por mais luz. No pélago das incertezas, das contradições e das ameaças do período que atravessamos, o pensamento se agita febril e busca um ponto de apoio, donde possa desferir o vôo para regiões mais belas e mais ricas do que todas as que percorreu até aqui. Uma espécie de surda intuição o impele para frente. Há, no fundo do ser, uma necessidade imperiosa de saber, de conhecer, de desvendar o mistério augusto do Universo e o segredo de seu próprio porvir.


E eis que pouco a pouco a estrada se clareia. A grande lei se revela, graças às lições do Além. Por processos variados: tiptologia, mensagens escritas, discursos pronunciados em estado de transe, os Espíritos-guia e inspiradores nos fornecem, vai para meio século, os elementos de uma nova síntese religiosa. Do seio dos espaços, jorra sobre a Terra poderosa corrente de força moral e de inspiração.


Expusemos algures os princípios essenciais deste ensinamento.(205) Em nosso livro Cristianismo e Espiritismo, tratamos mais particularmente da questão religiosa. Sobre este problema vital, que provoca tantas contradições apaixonadas, o que sobretudo importa façamos conhecer ao leitor é o pensamento direto de nossos guias invisíveis, as vistas dos grandes Espíritos, das Entidades tutelares, que pairam acima de nós, longe das competições humanas, e que, julgando de mais alto, julgam melhor.


Essa a razão por que reproduzimos aqui algumas das recentes mensagens obtidas por via mediúnica, escolhidas entre as que se preocupam ao mesmo tempo com o problema religioso, tomado em seu conjunto, e com a canonização de Joana d’Arc.


Mensagens


Junho de 1909. Improviso no estado de transe:


“A Igreja vai-se. São fictícias sua energia, sua orientação. A energia lhe vem da desorganização dos partidos que se lhe opõem. Só ela permanece de pé em face das escolas materialistas. Só ela representa a alma em face do materialismo e da Ciência. No momento em que a Ciência consagrar a alma, a Igreja desmoronará. A Igreja é um melhor relativo. Todos os que sentem o enlevo da vida da alma se refugiam nela, porque não têm outra coisa. Muitas almas não podem formar para si uma fé pessoal, pedem a outros a crença e acham mais cômodo dirigir-se à Igreja. Mais vale crer no Catolicismo, do que não crer em coisa alguma. Mas, no dia em que se constituir a filosofia científica, artística e literária, que há de sintetizar o ideal, a Igreja atual desaparecerá. A Igreja recebeu em seu seio as artes e as letras, não a Ciência. Ela rejeita uma parte do saber; por isso mesmo, terá que ceder o passo a uma filosofia que abrangerá todo o saber humano. Dizemos filosofia – e não religião – porque esta última palavra tem hoje o sentido de seita.


A Reforma seduziu algumas almas, porque permitia unir a moral à religião. Tudo era então consentido pela Igreja, contanto que cada um soubesse obter o perdão pelo dinheiro. A venda das indulgências era pública. Todo o mundo via, de um lado, a moral; de outro, a religião. A questão moral abalou a Igreja; hoje, será a Ciência quem acabará com ela. No momento em que os homens “souberem”, a Igreja virá abaixo.


Não choramos o seu desaparecimento. Ela não representa, na História, mais do que uma das formas da idéia religiosa em marcha. Fez o bem e preferimos ver esse bem a notar o mal que causou; acima de tudo, apraz-nos ver nela a grande figura do Cristo, seu fundador. Veremos sempre, na missa, o Evangelho, que lhe é o ponto central e não a elevação da hóstia, como muitos acreditam. Amamos esse Evangelho; é ele que ainda hoje nos atrai a algumas catedrais. Amamos a Igreja, veneramo-la, como veneramos tudo o que haja proporcionado à Humanidade alguma coisa de grande.


Mais tarde, maior veneração consagraremos àquele que há de trazer uma nova palavra de vida, ao Espírito de Verdade, anunciado desde longo tempo. Será um homem de ciência, um sábio, um filósofo e, sobretudo, um homem de delicada sensibilidade. Os maometanos o esperam também. Todas as religiões o prometeram. É mister que todas as almas se sintam desorientadas, que todas experimentem a necessidade de sua vinda. A dissolução é mais profunda do que na época em que o Cristo apareceu e também o desejo de saber. Todos os povos se acham oprimidos pelos governos. A hora se aproxima.


Ninguém deve levantar-se contra os que se vão, contra a Igreja. O Cristo não clamou contra a religião. Lembrai-vos de que ele pronunciou estas palavras por demais esquecidas: “Aos Judeus, primeiramente!” Nós, também, por nossa vez, dizemos: “À Igreja, primeiramente!”, pois é ela que encerra maior número de espiritualistas; é ela quem deles maior necessidade tem. A nova religião se elevará sobre as bases do Cristianismo, como o Cristianismo se elevou sobre o Judaísmo. A antiga Igreja, como a lei de Moisés, será renovada, melhorada.”


Jerônimo de Praga


Julho de 1909, pela incorporação:


“Que são os dogmas e os mistérios? Busquemos o sentido das religiões!


A religião se cerca de um aparato sombrio e temível. Tudo, acredita-o ela, está sabido, conhecido, descoberto. Profundo erro!


A verdade não pode separar-se de Deus, não pode ser um símbolo. É um raio luminoso, escapado da fronte divina. Temos Deus em nós, mas não pelo seu corpo de carne (a hóstia).


Por intermédio de seus mensageiros é que se cumpre o sacrifício divino. Deus está em nós pelas irradiações de sua verdade. Esta, porém, não é conhecida: é esperada. Precisamos saber amá-la, para que ela desça até nós.


O homem é perfectível ao infinito. Comete grave falta quem lhe quebra as perspectivas do futuro. A misericórdia divina lhe dá, com a esperança, a reparação sempre possível de suas faltas.


A Igreja diz ao homem: Deixa que te guiemos. Esquece-se de que assim se torna responsável para com Deus pela conduta das almas. E se a Igreja fosse Deus, Deus seria responsável pela conduta das almas. É falso! O homem poderia em tal caso adormecer na confiança de estar sendo suficientemente dirigido.


A Igreja foi muitas vezes madrasta para os que lhe viviam no seio. Mutilou todas as inteligências que passavam de um certo nível. Perderam-na o amor à matéria, o poder temporal, o desejo da dominação. Invadiu-a a embriaguez do poder. Bebeu pela taça do orgulho. Será essa a causa de sua decadência, pois que a matéria não pode dar vida.


O poder temporal esboroou-se; com os outros o mesmo sucederá. Respeitemos a Igreja, como se respeitam pessoas idosas, que fizeram grandes coisas na mocidade. Hoje, as multidões se afastam dela. As naves, a não ser por ocasião das pomposas cerimônias, se conservam solitárias.


A Igreja não mais ama bastante, por isso é que morre. Amar cada vez mais – eis todo o pensamento do Cristo, que amou os homens mais do que a si mesmo, como Joana amou a França. É o que a Igreja não mais sabe fazer. Cumpria-lhe governar as almas pelo amor e não pelo medo. João disse: “Amai-vos, eis toda a religião!”


O Cristo amou a Tomé, que duvidava, até a ponto de se materializar e apresentar-lhe as chagas, para que fossem por ele tocadas. A Igreja, porém, não ama os que duvidam; repele-os. Para que uma fé seja real, é preciso que o amor a torne fecunda. O amor é a alavanca da Humanidade. A Igreja o esqueceu e por isso está destinada a enfraquecer-se de mais em mais.


Devemos saudá-la por haver recebido outrora o pensamento do Cristo. Presentemente, já deu tudo que podia dar; fez o seu tempo. Não compreendeu o século atual. Julga que tudo dorme no passado. Mas, em lugar de remexer a cinza das velhas recordações, é necessário pensar nos deveres para com os homens do presente e preparar os tempos futuros.


Nada de ódio! Devemos lamentá-la e deixar que se extinga suavemente. Não se clama contra os que vão morrer. Que a paz seja com ela! Que todos orem por ela!


Quanto à sua atitude no que concerne a Joana, assim se explica: A Igreja quis fazer uma santa popular e, por esse modo, readquirir um pouco da perdida influência. Como o patriotismo se vai enfraquecendo, ela tenta apoderar-se dessa idéia, em proveito próprio. Apanha a espada de Joana e faz dessa espada uma arma para combater os que ela, a Igreja, considera seus inimigos. Mas, não são suas antigas vítimas que poderão esfigu-la neste momento.


Manifestação mais material do que espiritual! Deverá proceder de outra maneira: instaurar um novo processo, para definir as responsabilidades, condenar Cauchon e livrar Roma. O Processo de reabilitação assentou sobre os textos. Não incriminaram os juízes; reconheceram, mantiveram-lhes a validade. Não basta trovejar contra eles do alto do púlpito; fora necessário um ato mais solene. A Igreja não teve a coragem de suas ações e de sua política.”


Jerônimo de Praga


Julho de 1909, pela escrita mediúnica:


“A Igreja está muitas vezes em contradição com seus ensinamentos. Exige das almas que se purifiquem e melhorem, que abandonem seus erros e ao mesmo tempo declara ter o privilégio da onisciência e da onipotência. Não admite que seus conhecimentos de outrora já não possam bastar hoje; acredita que o mundo parou debaixo das naves das catedrais góticas. Em realidade, não há como pedir ao homem instruído e céptico de vosso século o que se podia exigir daqueles que se aterrorizavam com os castigos eternos. Os tempos fizeram sua obra: amontoaram as ruínas. As almas se renovaram; só a Igreja se obstinou em escorar o seu velho edifício, em reconstruir continuamente a temível fortaleza. Foi assim pouco a pouco se separando do mundo. Comprazendo-se na satisfação do poder e do orgulho, esqueceu a história das civilizações.


As exigências da evolução que as almas experimentam são tão fortes, que renovam a fé e a ciência. As antigas crenças são esquecidas por outras e a Igreja, por sua vez, deveria subir para a luz. Deveria ser o caminho natural das almas que se dirigem para Deus e oferecer-lhes todos os recursos reclamados por inteligências enamoradas de beleza, de grandeza, de verdade mais perfeita.


Ela impõe ao homem adulto os mesmos preceitos que à criança. Suas explicações, seus mandamentos são os mesmos para todos. Leva por toda parte o desejo de unidade e a vontade de fixar as almas na contemplação de seus dogmas.


A preocupação constante de sua vida e de sua existência deveria fazer-lhe compreender que fora hábil e forte abandonar, no momento preciso, os processos que haviam bastado para governar o mundo antigamente. Não se atrai o homem usando das mesmas palavras com que se seduz a criança, e o que dava bom resultado, em relação aos povos dos séculos idos, é hoje insuficiente. Hábeis espíritos o perceberam e tentaram emprestar um sentido místico e espiritual aos dogmas, esfigura-los como símbolos de algum grande pensamento. Mas, a Igreja, como instituição, não é acessível à reflexão sublime. As mediocridades se apossaram do poder e o que se viu foi a dura repressão daqueles ensaios inúteis, porquanto, se tal reforma se realizasse no tocante à fé, teria que se operar também com relação à conduta a seguir. Era preciso ter a coragem de simbolizar tudo, de mostrar que a Igreja conduzira os povos e os reis, porque uns e outros estavam ainda na infância; era preciso reprovar os erros, castigar o passado e renegar altamente tudo o que não estivesse de acordo com as novas vistas. Teria sido político. A Igreja, efetivamente, não mais representa hoje uma religião, no sentido próprio do termo: não procura unir as almas e sim governar os corpos, por todos os meios. Porém, para governar os corpos, precisava tornar-se senhora das almas e fora acertado atraí-las pelo emprego de alguns gestos hábeis, pela glorificação de algumas almas veneradas por todos.


Nestes tempos perturbados, em que ela parece sustentar o supremo combate, quer ter um poderoso auxiliar na pessoa de Joana. Seria necessário acusar explicitamente de impostura os juízes e esfig-los como agentes de uma autoridade não reconhecida. A Igreja com tanto desmazelo repeliu de seu seio tantos grandes homens, que facilmente pudera ter feito algumas vítimas a mais e assim encontraria a ocasião melhor indicada de colocar entre seus santos algumas de suas outras vítimas, sobre as quais se estende a piedade das próprias almas crentes. Como instituição, podia fazê-lo. Durante longo tempo, defendeu os juízes de Joana e agora procura justificar a antiga herética, mas muitos crentes inquirem onde está então o culpado da triste tragédia de Ruão.


Hoje, sabendo perfeitamente que Joana é uma santa, o povo a colocou entre as protetoras da pátria, mas a Igreja pretendeu, esgueirando-se por trás do seu pedestal, substituir-se à virgem, dando-lhe um lugar entre suas eleitas. Ninguém pode negá-lo: Joana é mais amada do que a Igreja e esta, que a condenou, não logrará esfigura-la. Nós, porém, não podemos aceitar semelhante beatificação, que é uma manobra da Igreja, porquanto é mais um dos muitos atos que a celebrizaram justamente: uma semicovardia, originada de um cálculo, em que o interesse se mascara com o desejo da verdade.”


Jerônimo de Praga


Julho de 1909 pela incorporação:


“Amai a Deus acima de tudo. Aí está a força que vos libertará desse mundo material e vos fará suportar as chamas da dor.


Esse amor me deu toda a energia, todo o poder.


Dói-me ver que os franceses disputam entre si minha alma.


Tudo perdôo à Igreja, exceto a sua doutrina. Não lhe perdôo o andar espalhando erros e o terror nas almas.


A Igreja se extingue. Bendigamo-la pelo bem que fez. Lamentemo-la pelo mal que praticou. Sou seu guia e não seu defensor.


Que a França se torne consciente de seu papel, que é o de derramar no mundo claridades sempre mais vivas.


Chegaram os tempos. O Espírito de Verdade, anunciado pelo Cristo, vem próximo. Nascerá no meio de vós. O Cristianismo não foi compreendido. Ele viera para tirar a alma do sofrimento e da inconsciência. Agora, outras verdades superiores vão luzir.”


Joana d’Arc


    

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