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As missões de Joana D'Arc



Joana d’Arc e a idéia de humanidade


XIV


Nunca matei ninguém.


Jehanne


Não pretenderemos que Joana d'Arc tenha sido quem nos trouxe a primeira noção de humanidade. Muito antes dela, em todos os tempos, os gemidos dos que sofrem despertaram nas almas sensíveis os sentimentos de piedade, de compaixão, de solidariedade. Estas qualidades, porém, no decurso da guerra de Cem Anos, se haviam tornado raríssimas, particularmente entre os que cercavam Joana, entre aqueles soldados embrutecidos, que fizeram da guerra uma obra de rapina e de banditismo. É numa época assim, férrea e sanguinária, que a virgem Lorena nos faz ouvir a cariciosa linguagem da comiseração, da bondade.


Não há dúvida de que ela se armou para salvar a França, mas, passada a hora da luta, volve a ser a mulher de terno coração, o anjo de meiguice e da caridade. Por toda parte, opõe-se aos massacres e sempre oferece a paz antes de atacar. (181) Três vezes, diante de Orleães, reitera propostas deste gênero. Socorre os feridos e mesmo os feridos ingleses. (182) Aos desgraçados leva o conforto e sofre por todos os sofrimentos humanos.


Na escura noite feudal, o décimo quinto século se mostra mais tenebroso, ainda mais sinistro do que os outros. É o século em que se vê um rei de Aragão matar o filho e um conde de Gueldre assassinar o pai; em que um duque da Bretanha se faz assassino do irmão, e uma condessa de Foix o carrasco da irmã. Através da densa nuvem sangrenta que envolve homens e coisas, Joana nos aparece qual visão do Alto. Fitando-a, encontramos repouso para a vista e nos consolamos do espetáculo dos morticínios. São dela estas dulcíssimas palavras: “Jamais vi correr sangue de francês, sem que os cabelos se me eriçassem”. (183)


Na corte de Carlos VII não se praticava somente toda sorte de roubos e de atos de banditismo. Os assassínios também eram freqüentes. O senhor de Giac, camarista-mor e mais tarde favorito do rei, assassinara a mulher, Joana de Naillac, para casar com a opulenta condessa de Tonnerre, Catarina de l'Isle-Bouchard, e pereceu, ele próprio, afogado, por instigações não só do condestável de Richemont, a cuja política se constituíra um embaraço, como de La Trémoille, que lhe cobiçava a esposa, depois de ter, à força de maus tratos, dado a morte àquela com quem se casara. Um outro favorito de Carlos VII, Le Camus de Beaulieu, morre assassinado na presença do monarca. O conde d'Armagnac seqüestra o marechal de Séverac, arranca-lhe um testamento a seu favor e em seguida manda matá-lo. (184)


Num meio assim monstruoso é que à boa Lorena cumpre intervir. Essa circunstância lhe tornará ainda mais penosa a tarefa e multiplicará, para a sua sensibilidade, as causas de sofrimento.


Alguns escritores quiseram ver em Joana d'Arc uma espécie de virago, de virgem guerreira exaltada pelo gosto dos combates. Nada mais falso; desmentem semelhante opinião as ações e palavras da heroína. É certo que ela sabe afrontar os perigos e expor-se aos golpes do inimigo; mas, quer nos acampamentos, quer no ardor das refregas, jamais se despojou da doçura e da modéstia peculiares à mulher. Era bondosa e pacífica de natureza. Nunca trava combate com os ingleses, sem que previamente os convide a se afastarem. Quando os adversários se retiram sem lutar, como a 8 de maio, junto de Orleães, ou quando cedem ao embate dos franceses, ordena que os poupem: “Deixai-os ir, dizia, não os mateis. A mim me basta que se retirem.”


Nos interrogatórios de Ruão perguntam-lhe: “Que era o a que mais querias, ao estandarte, ou à espada?” Ela responde: “Amava muito mais, mesmo quarenta vezes mais ao meu estandarte, do que à minha espada. Nunca matei ninguém!”. (185)


Para se preservar dos arrastamentos da luta, estava sempre com a bandeira empunhada, porque, dizia ainda: “Não quero servir-me da espada.” Não raro surgia onde mais violenta era a peleja, em risco de ser morta ou presa. Nesses momentos, referem seus companheiros d'armas, deixava de ser a mesma. Passado, porém, o perigo, voltavam a predominar nela a doçura e a simplicidade. (186) Ainda durante a ação, sua sentimentalidade acorda, reaparece a mulher: “Ao sentir-se ferida, consta no texto, teve medo e chorou.” Depois, decorrido algum tempo, disse: “Estou consolada.” Seus temores, suas lágrimas a tornam mais tocante aos nossos olhos, pois que lhe emprestam ao caráter esse encanto, essa força misteriosa, que constituem um dos maiores atrativos de seu sexo.


Joana, dizíamos, tinha um coração sensível. As injúrias dos inimigos feriam-na fundo: “Quando os ingleses lhe chamavam ribalda, refere uma testemunha, rompia em pranto.” Mas, logo, por meio da prece, que dirigia a Deus, purificava a alma de todo ressentimento e perdoava.


No cerco de Orleães, um dos principais chefes ingleses, Glasdale, assim que a divisava, cobria-a de invectivas. De cima do parapeito do forte das Tourelles, pôs-se, no dia do ataque, a vociferar contra ela. Dali a pouco tempo, ao ser o bastião tomado de assalto, caía, completamente armado, no Liger e se afogava. “Joana – acrescenta a testemunha –, cedendo à piedade, entrou a chorar copiosamente pela alma de Glasdale e dos outros que, em grande número, também se afogaram”. (187)


*


Joana, portanto, não é unicamente a virgem dos combates. Mal cessa a batalha, ei-la que se transforma no anjo de misericórdia. Vimos que, ainda criança, já socorria os pobres e cuidava dos enfermos. Investida no comando do exército, consegue inflamar a coragem na hora do perigo; mas, findo o combate, comove-a o infortúnio dos vencidos e seus esforços convergem para lhes minorar os malefícios da guerra. Em oposição aos costumes do tempo, à medida que o interesse predominante da França lho permite, empenha-se, com risco da própria vida, na defesa dos prisioneiros e dos feridos votados à decapitação. Tudo faz por tornar menos cruel a morte dos moribundos.


Na Idade Média, era de regras não dar quartel aos vencidos. “Os de condição inferior à mediana – diz o coronel Biottot –, (188) eram massacrados e, algumas vezes, até os grandes. Joana, porém, se opõe a esse procedimento, ponderando que a condição social não é um crime, nem dos humildes, nem dos poderosos. Quer salvos todos os inimigos, desde que deponham as armas. Em Jargeau, só a muito custo consegue livrar da morte o conde de Suffolk, que comandava o forte, depois de haver comandado o cerco de Orleães.”


Fora justo que os ingleses, quando a tiveram em seu poder e a processaram, levassem em conta os atos generosos da Pucela. Entretanto, para recordá-los, nenhuma voz se ergueu diante dos juizes de Ruão. Seus inimigos só cuidavam de cevar o ódio de que tinham rasas as almas.


Deve-se, pois, reconhecer que, muito antes mesmo de ser usada a expressão, Joana aplicou o direito das gentes. Tomava assim a dianteira dos inovadores, que mais tarde convidariam o mundo à prática da igualdade e da fraternidade entre os indivíduos e as nações; que, nos tempos porvindouros, evocariam os princípios de ordem, de equidade, de harmonia social, chamados a reger uma humanidade verdadeiramente civilizada. Sob este ponto de vista, a boa Lorena prepara as bases de um futuro melhor e de um mundo novo.


Joana, como se vê, soube, em tudo, ater-se a uma justa medida. Naquela alma tão bem equilibrada, o amor ao país excede a todos os outros, mas sem exclusivismo. Qualquer dor humana lhe infunde piedade, comiseração.


Muito se há, em nossa época, abusado da palavra humanidade e, mais de uma vez, temos visto pensadores, escritores fazerem, por vão e pueril sentimentalismo, tábua rasa dos interesses e direitos da França, em proveito de vagas personalidades, ou de agrupamentos hipotéticos. Jamais entenderemos que nos seja possível amar os negros, os amarelos, os vermelhos, que nunca vimos, mais do que os nossos próximos, a nossa família, pais, mães, irmãos. E a França também é nossa mãe. Sim. devemos ser bons e humanos para com todos; mas, em muitos casos, tal preceito apenas encobre um sofisma, de que se abusa. Se descêssemos ao fundo das coisas, perceberíamos simplesmente que alguns desses grandes humanitários forjam para si, por meio de teorias adrede imaginadas, deveres fictícios, a cujo cumprimento bem sabem que não serão obrigados, visando a iludir outros, imperiosos e imediatos, para com os indivíduos que os rodeiam, para com seu país, a França.


Muitos, caindo num excesso oposto, detestam tudo que é estrangeiro: alimentam ódio cego contra os povos que nos hão guerreado. Que os reveses sofridos não nos obliterem os sentimentos de justiça e nos não impeçam de reconhecer as qualidades e a bravura das nações que nos venceram! À pergunta: “Deus odeia os ingleses?” Joana responde: “Do ódio de Deus aos ingleses nada sei; mas, Ele quer que os ingleses saiam da França e voltem para seu país”. (189)


Como Joana, sejamos equânimes e não odiemos os inimigos. Saibamos render homenagem ao merecimento, trate-se embora de um adversário. Defendamos nossos direitos, nosso patrimônio, quando for preciso, porém não provoquemos os outros.


A esta luz, a virgem Lorena nos dá mais do que uma lição de patriotismo, dá-nos uma lição viva de humanidade. Armando-se, fê-lo muito menos em nome da lei de guerra, do que em nome da lei de amor, muito menos para atacar, do que para defender e salvar. Ainda quando revestida da armadura, revela as mais belas qualidades da mulher: o espírito de desprendimento, a dação espontânea e absoluta de si mesma, a compaixão de todos os que sofrem, o apego, levado ao sacrifício, aos entes amados, à família e à pátria, o engenho do senso prático e das intuições para lhes advogar os interesses, numa palavra – a dedicação, até à morte, a tudo que lhe é caro. Nesse sentido, Joana d'Arc sintetiza e personifica o que há de mais nobre, de mais delicado e de mais belo na alma das mulheres da França.


    

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