Compienha
IX
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Nada receio, senão a traição.
Joana
A Paris! clamava a Pucela no dia seguinte ao da sagração. A Paris! repetia o exército inteiro. * Se houvessem marchado logo sobre a capital, como Joana queria, teriam tido ensanchas de penetrar facilmente na cidade, graças à confusão que reinava entre os ingleses. Mas, Carlos VII perdeu um tempo precioso, que o duque de Bedford aproveitou para reforçar a defesa daquela praça, requisitando da Inglaterra o auxílio de um exército, que o cardeal de Winchester, tio do rei Henrique, levantara-se com o objetivo de combater os Hussitas.
* Henri Martin – Histoire de France, t. VI, pág. 200.
Aí começa a estrela de Joana a empalidecer. Aos triunfos, às brilhantes vitórias, vão seguir-se as horas trevosas, as horas de provação, que precederão o encarceramento e o suplício. À medida que a fama da heroína se dilata, que sua glória sobrepuja todas as glórias, o ódio se lhe avoluma em torno e as intrigas se tecem entre os grandes fidalgos, cujos planos e tenebrosas maquinações ela viera frustrar. Todos aqueles cortesãos pérfidos, que se sentem eclipsados, aqueles ministros da Igreja, cujas almas destilam fel, que lhe não perdoam o dizer-se, menosprezando-lhes a autoridade, enviada do céu e o preferir-lhes aos conselhos as inspirações das vozes que escutava; muitos até dos chefes militares vencidos em centenas de combates e que se veem desbancados no que respeita à ciência da guerra, todos esses homens, feridos no orgulho, juraram perdê-la e só esperam o momento propício. Vem próximo esse momento.
Os ingleses, a seu turno, estão aterrados com os reveses sofridos. Fora destroçado o principal exército de que dispunham. Morreram ou caíram prisioneiros os melhores capitães com que contavam. Seus soldados desertam de medo da Pucela, a “feiticeira da França”, como lhe chamam e de cujo sobre-humano poder não duvidam. Assim, é inquestionável que, se Carlos VII, logo após a sagração, tivesse avançado sobre Paris, a grande cidade se teria rendido sem combate.
Em vez disso, seis semanas se gastam em hesitações e quando, por fim, defrontam com a capital, nenhuma precaução toma. As ordens de Joana não são cumpridas; deixam de entupir os fossos e de sustentar o ataque. Deram-lhe por ajudantes os dois comandantes que mais a hostilizavam, “os homens mais ferozes que já existiram”, diz Michelet: Raul de Gaucour e o Marechal de Retz, o odioso bruxo, que mais tarde subirá ao cadafalso para expiar o crime de feitiçaria. * O rei não quis mostrar-se às tropas. Em vão mandavam-lhe mensagens sobre mensagem; não vinha. O duque d'Alençon correu a buscá-lo em Senlis. Prometeu ir e faltou à palavra.
* Nos calabouços de seus castelos de Suze, de Tiffauges etc. encontraram-se as ossadas de muitas centenas de crianças, cujo sangue servira para suas bruxarias.
No ataque à porta Saint-Honoré, Joana, como sempre, se portou heroicamente. Durante um dia todo permaneceu junto ao fosso, sob uma saraivada de projeteis, incitando os soldados ao assalto. Ao cair da tarde, recebeu um tiro de besta, que a feriu profundamente na coxa, obrigando-a a deitar-se no talude. Ainda assim, não cessava de exortar os franceses, exclamando continuamente: “O rei! o rei! o rei que apareça!” O rei, porém, nunca apareceu. Por volta das onze horas da noite, vieram retirá-la dali e a levaram contra a vontade.
As forças recuaram para Saint-Denis, onde já o monarca se encontrava, tomando providências a fim de regressar aos castelos do Líger. Joana não podia resignar-se a perder de vista os campanários de Paris: “era como se estivesse presa à grande cidade por uma força extra-humana”. * No dia seguinte, quis recomeçar o ataque. Porém, que aconteceu? Não puderam mais passar. O rei havia mandado destruir as pontes e impusera a retirada.
* Henri Martin – Histoire de France, t. VI, pág. 209.
Cometeu-se assim uma das maiores infâmias que a História registra. Coligaram-se contra a divindade aqueles mesmos a quem ela enviara um messias salvador. Lograram desta forma entravar a missão de Joana d'Arc e, segundo a forte expressão de Henri Martin, “obrigaram Deus a mentir”. Revelaram tal egoísmo e tão grande cegueira que, por sua própria indignidade, sustaram a ação da Providência.
Com o desastre diante dos muros de Paris, abre-se para Joana extenso período de incertezas, de inquietações, de íntimas angústias. Durante oito meses, experimentará as alternativas das vitórias e dos reveses: vence em Saint-Pierre-le-Moûtier, é derrotada em Charité. Sente que a boa fortuna a abandona. À borda dos fossos de Melun, suas vozes lhe dirão: “Joana, serás capturada antes do dia de São João!” A uma causa única é lícito atribuir essa reviravolta da sorte: à má vontade dos homens, à ingratidão do rei e de seus conselheiros, que criaram mil obstáculos à heroína e ocasionaram o malogro de seus empreendimentos.
Apoucaram-na com isso? De maneira alguma. A partir desse momento é que ela se torna verdadeiramente grande, maior do que era por efeito de suas vitórias. As provações, o cativeiro, o martírio suportado com tanta nobreza, a elevarão acima dos mais ilustres conquistadores e a sublimarão aos olhos da posteridade. No cárcere, diante do tribunal de Ruão, sobre a fogueira, será mais imponente do que no tumultuar dos combates, ou na embriaguez do triunfo. Sua atitude, seus sofrimentos, suas palavras inspiradas, suas lágrimas, sua dolorosa agonia, farão dela uma das mais puras glórias da França, um alvo da admiração dos séculos, um motivo dos zelos de todos os povos!
A adversidade lhe adornará a fronte com uma auréola sagrada. Pelo heroísmo com que recebe a dor, pela grandeza d'alma nos reveses e em presença da morte, virá a ser justa causa de orgulho para todos aqueles nos quais vibram e palpitam o sentimento da beleza moral e o amor a seu país.
É bela a glória das armas; porém, só o gênio, a santidade e o martírio têm direito às apoteoses da História!
Fracassado o cerco da Charité, Joana foi chamada à corte. Bem depressa, porém, a inação começa a pesar-lhe e ei-la novamente deixando-se arrebatar por seu ardor. Abandona o rei aos prazeres e festas em que se comprazia e à frente de uma tropa que lhe era dedicada voa para Compienha, então assediada. É aí que lhe sucede cair prisioneira do conde de Luxemburgo, do partido da Borgonha. Durante uma das sortidas, que ela constantemente fazia, o governador da cidade, Guilherme de Flavy, mandou arriar o rastilho e a heroína, não tendo podido mais entrar na praça, foi capturada.
Que responsabilidade cabe ao senhor de Flavy em tal sucesso? Muitos o consideraram resultado de premeditada traição. Fazia pouco que o chanceler Regnault de Chartres passara por Compienha, onde tivera entrevistas com o duque de Borgonha. Não obstante, a maioria dos historiadores – H. Martin, Quicherat, Wallon e Anatole France – creem na lealdade daquele capitão. * Mau grado a essas opiniões, seu papel no tocante à captura de Joana permaneceu equívoco e mal definido. É verdade que o moderno historiógrafo do comandante Flavy, Pierre Champion, não conseguiu, pelo exame dos textos existentes, chegar a uma conclusão formal e, por seu lado, não descobriu documento algum probante. ** De conformidade com indicações recebidas do Além, somos levados a acreditar que não houve premeditação; mas, que souberam aproveitar a ocasião que se oferecia, para livrar-se de uma personalidade que se constituíra empecilho a certas ambições.
* Ver: Henri Martin, Histoire de France, t. VI, pág. 231. – Wallon, Jeanne d'Arc, pág. 211. – Quicherat, Apercus nouveaux, págs. 77-85. Nem Lavisse, nem Michelet dizem coisa alguma a respeito (ver Lavisse, t. VI, pág. 61).
** Ver: Guillaume de Flavy, por Pierre Champion, 1 volume, 1906.
Embora, porém, nenhuma conspiração tenha tramado previamente contra Joana, nem por isso deixou de haver traição, uma vez que G. de Flavy não tentou sequer salvá-la. Encurralada pelos borgonheses no ângulo da estrada de Margny com o baluarte que defendia a ponte, a alguns metros da entrada, a heroína podia ser facilmente socorrida. No momento crítico, o comandante de Compienha ocupava o baluarte com muitas centenas de homens. Observando tudo o que se passava, nenhuma tentativa de socorro fez e abandonou a donzela à sua sorte. Nisto é que a traição parece flagrante.
Joana foi primeiramente encarcerada no castelo de Beaulieu, a pequena distância de Compienha, sendo depois transferida para a torre de Beaurevoir, de propriedade do conde de Luxemburgo. Durante seis meses, andou de prisão em prisão, por Arrás, Drugy, Crotoy, até que a 21 de novembro, em obediência às intimações prementes e cominatórias da Universidade de Paris, foi vendida aos ingleses, seus inimigos cruéis, por dez mil libras tornesas, além de uma renda consignada ao soldado que a prendera.
João de Luxemburgo descendia de alta linhagem; era, porém, mesquinho de coração e falto de fortuna. Inscrevera no brasão uma divisa de desalentado: “Contra o impossível nada se consegue”. Quão mais vibrante a de seu contemporâneo Jaques Cœur: “Para um coração valoroso, nada é impossível.” Muito endividado, arruinado quase, o conde não queria resignar-se a viver pobre”. Não pôde, consequentemente, recusar as dez mil libras em ouro que o rei da Inglaterra oferecia. Por esse preço, vendeu Joana e a entregou.
Dez mil libras em ouro! Era uma soma enorme para a época. Os ingleses, entretanto, estavam baldos de recursos; assim é que já não podiam mais pagar os seus funcionários. À falta de dinheiro, suspendeu em Paris, durante semanas, o funcionamento da justiça. O notário que redigia os atos do parlamento teve que interromper o trabalho, por não haver mais pergaminho. * Desde, porém, que se tratava de comprar Joana, os ingleses acharam meio de obter tão grossa quantia. Que fizeram para isso? Uma coisa que lhes era familiar: lançaram pesado imposto sobre toda a Normandia. E eis um fato que merece assinalado: com dinheiro francês é que o sangue de Joana d'Arc foi pago!
* Registres du Parlement, t. XV, fevereiro de 1431, segundo H. Martin, t. VI, pág. 245.
No recesso do cárcere, não era a sua própria sorte o que mais atribulava Joana. Acima de tudo, afligia-a o pensamento, que assim, tristemente, exprimiu: “Não mais poderei servir ao nobre país de França!” Ao ter notícia de que sobre a boa gente de Compienha pesa a ameaça de ser passada a fio de espada, se a cidade cair em poder dos inimigos, precipita-se do alto da torre de Beaurevoir, para ir compartilhar-lhes da sorte. “Eu ouvira falar – dirá ela aos juízes – que todos os de Compienha, até à idade de sete anos, seriam tratados a ferro e fogo. Achei, então, que mais valia correr o risco de morrer, do que sobreviver à destruição das boas criaturas”. *
* J. Fabre – Processo de condenação, 5º interrogatório secreto.
De etapa em etapa, de prisão em prisão, chega finalmente a Crotoy, nos confins da Normandia, que os ingleses ocupavam. Metem-na numa torre de defesa, que guarda a embocadura do
Soma. Da janela gradeada de ferro, descortina ela um panorama de praias e mais longe a amplidão do mar. Pela primeira vez, dado lhe é contemplar o imenso lençol líquido e o espetáculo a impressiona fortemente.
O mar! com suas vagas espumantes, seus horizontes ilimitados, seus reflexos multicores!
Ela, tão sensível às harmonias do céu e da terra, às belezas dos dias luminosos e do firmamento estrelado, se extasia na contemplação da vasta superfície, que ora apresenta a coloração cinzenta da prata, ora a de um azul intenso, e reflete à noite as cintilações dos astros; escuta, maravilhada, o sussurro misterioso do vento e das ondas. Quando, à hora de preamar, lhe chegam aos ouvidos o queixume das vagas, o soluçar do oceano, profunda sensação de tristeza a invade. Os ingleses vão chegar, os ingleses que a compraram tão caro! Até então fora, desde Compienha, prisioneira dos borgonheses, seus adversários, sem dúvida, mas homens da mesma língua, da mesma raça e que a tratavam com atenções. Dali por diante, que é o que pode esperar dos bárbaros estrangeiros a quem tantas vezes vencera e que, votando-lhe ódio feroz, jamais perderam ocasião de injuriá-la? Sentindo horrível angústia a lhe despedaçar a alma, põe-se a orar. Ouve, então, a voz que lhe diz e repete: “Recebe tudo de bom grado!”
Passou assim em Crotoy três semanas. Um dia, as senhoras de Abbeville foram visitá-la, consolá-la e, por instantes, misturaram suas lágrimas com as da virgem. *
* Wallon – Jeanne d'Arc, pág. 222.
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