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VIII



Remos


Da França o reino, ao delfim,


Restituir aqui vim.


Saint-Yves d’Alveydre


Cumprira-se a profecia de Joana com relação a Orleães. Restava o segundo ponto: a marcha sobre Remos e a sagração de Carlos VII. Sem perda de um instante, a Pucela se pôs em campo para realizá-la até ao fim. Deixou o Orleães e foi em busca do delfim no interior da Touraine. Encontrou-o em Túrones e daí o acompanhou a Loches, insistindo continuamente para que ele preparasse tudo que era necessário ao êxito da audaciosa empresa. Mas, indolente, sem vontade própria, o príncipe hesitava entre as solicitações da heroína e as observações de seus conselheiros, que julgavam temerário arriscar-se a uma viagem de sessenta léguas, atravessando um país eriçado de fortalezas e de praças ocupadas pelo inimigo. A essas objeções, Joana respondia invariavelmente : “Bem sei; mas, nada disso merece consideração. Seremos bem sucedidos!”


O entusiasmo do povo e do exército se alastrava progressivamente. De todos os lados se ouvia que era preciso aproveitar o aturdimento dos ingleses, que haviam evacuado o Líger e se retiravam para Paris, abandonando bagagens e artilharia. Até aí, jamais tinham recebido tão violento golpe. Aterrorizados, criam ver nos ares exércitos de fantasmas, avançando para combatê-los.


Por toda a França ecoava o rumor dos acontecimentos. Com o renascer da confiança, despertavam as energias. Tão forte se fez a corrente da opinião, que Carlos VII não pôde permanecer indiferente. Cumulou de honras a libertadora e sua família, continuando, entretanto, indeciso, sem coragem. Nem sequer foi visitar os orleaneses. Seus influentes conselheiros, La Trémoille e Regnault de Chartres, viviam inquietos, intimamente irritados com o bom êxito da obra de Joana, que os punha na sombra, ciosos do prestígio que a constituía objeto da atenção e das esperanças de todos. Assustava-os a possibilidade de verem submergir na poderosa e irresistível caudal do sentimento popular, que fizera recuar a invasão inglesa, o crédito e a fortuna de que se orgulhavam.


Afinal, a voz pública se tornou clamor e não houve remédio senão ceder. Reuniu-se em Gien um exército de 12.000 combatentes. De todas as partes acorriam os gentis-homens. Os que, por muito pobres, não podiam equipar-se, pediam para servir como infantes. A 29 de junho, partiu a expedição, com pouco dinheiro, escassos víveres e insuficiente artilharia.


A 5 de julho chegou a Troyes. A cidade, muito forte, bem provida e defendida por uma guarnição anglo-borgonhesa, recusou abrir as portas. O exército francês, carente de recursos, não podia empreender um longo assédio. Ao cabo de alguns dias, os soldados já estavam reduzidos a se alimentarem de favas e das espigas de trigo que encontravam nos campos.


O rei convocou um conselho para deliberar sobre as resoluções que deviam ser tomadas. Quanto à Pucela, nem ao menos a convidaram. O chanceler expôs a triste questão: deve o exército retroceder, ou continuar a marcha para Remos? A cada um dos presentes cumpria responder por sua vez. Roberto le Masson, senhor de Trèves-sur-Loire, fez ver que, não tendo o rei empreendido aquela operação, nem por considerá-la fácil, nem por ter às suas ordens um exército poderoso e o dinheiro preciso para mantê-lo, mas porque Joana afirmava que tal era a vontade de Deus e que nenhuma resistência haviam de encontrar, convinha antes de tudo consultar a heroína. Essa proposta logrou geral aprovação. Ora, no momento mesmo em que isso se dava, Joana, prevenida por suas vozes, batia fortemente à porta. Entrou e, dirigindo-se ao rei, disse: “Gentil rei da França, se consentirdes em ficar mais dois dias apenas diante da vossa boa cidade de Troyes, ela, por força ou por amor, vos prestará obediência, não tenhais a menor dúvida!” – Replicou o chanceler: “Se tivéssemos a certeza de que isso se verificaria em seis dias, esperaríamos de boa-mente!” – “Não duvideis!” replicou Joana.


E, sem tardança, pôs-se a percorrer os acampamentos, a fim de organizar o ataque, infundindo em cada um o ardor de que se sentia possuída. A noite passou-se em preparativos. De cima das muralhas e das torres, os sitiados observavam os campos franceses, presos de febril atividade. A luz de archotes, cavaleiros, escudeiros, soldados trabalhavam à porfia, entupindo os fossos, preparando a faxina e as escadas, construindo abrigos para a artilharia. Era um espetáculo fantástico e de impressionar.


Aos primeiros arrebóis da madrugada, os habitantes de Troyes viram, terrificados, que tudo estava disposto para um furioso assalto: as colunas de ataque colocadas, com suas reservas, nos pontos mais favoráveis; as poucas peças de artilharia bem abrigadas e prontas a abrir fogo; os archeiros e besteiros em seus postos de combate. O exército inteiro, formado em silêncio, esperava o sinal. De pé, junto ao fosso, com o estandarte na mão, a Pucela ia ordenar às trombetas que tocassem a avançar, quando os sitiados, transidos de pavor, pediram lhes permitisse capitular.


Fácil foi o acordo sobre as condições da rendição.


Interesse máximo tinha o rei em poupar as cidades que se quisessem entregar. No dia seguinte, 10 de julho, a guarnição inglesa se retirava, levando como prisioneiros de guerra alguns franceses, cuja sorte os negociadores esqueceram de regular. Esses desgraçados, ao passarem por Joana, lançaram-se-lhe aos pés, implorando-lhe que interviesse a favor deles. A heroína se opôs energicamente a que fossem levados e o rei teve que os resgatar a dinheiro.


Seguindo o exemplo de Troyes, Châlons e Remos abriram as portas a Carlos VII.


Em Châlons, foi dada a Joana a satisfação de encontrar muitos habitantes de Domremy, que ali tinham vindo para vê-la, entre eles o lavrador Gérardin, de cujo filho Nicolau era ela madrinha. A esses amigos confiou tudo o que lhe ia ao pensamento e no coração, expondo as esperanças que nutria e os temores que a afligiam, narrando as lutas que sustentara, as vitórias que obtivera, falando do esplendor da sagração próxima e da ressurreição da França, até então aviltada e espezinhada. Sentia-se à vontade e se expandia sem reservas no meio dessa gente humilde, porém boa, que lhe trazia vivíssima recordação da infância. Fazia-lhes compreender que aquelas glórias a deixavam impassível e quão grande lhe seria o prazer de voltar para sua aldeia, de retomar, com a vida tranqüila de outrora, as ocupações campestres, no seio da família. Sua missão, entretanto, a retinha perto do rei e forçoso lhe era submeter-se à vontade do Alto. Menos a inquietava a guerra contra os ingleses, do que as intrigas da corte e a perfídia dos poderosos. “Nada receio, senão a traição”, dizia-lhes. (125) E, com efeito, pela traição é que viria a perecer. Contra todo grande missionário, tramando-lhe a perda, haverá sempre, agachado na sombra, um traidor.


*


No profundo azul do céu se recortam as altas torres da catedral de Remos, já velha de muitos séculos, na época de Joana d'Arc. Pelas três largas portas, abertas de par em par, se lobrigam as vastas naves resplandecentes à luz de milhares de círios e nas quais se comprime uma multidão policrômica de padres, fidalgos, homens d'armas e burgueses em trajos de festa.


As vibrações dos cânticos sacros enchem as abóbadas e, por instantes, ressoam as notas estridentes das fanfarras de guerra.


Apinham-se no adro as confrarias, as corporações com seus estandartes, todos os que não conseguiram lugar na basílica. Cerca o edifício imensa turba de populares, cidadãos e camponeses dos arredores, contida a custo por cavaleiros barbados de ferro e por archeiros que ostentam nos uniformes as armas da França. Pajens e escudeiros seguram pelas rédeas as magníficas cavalgaduras do rei, dos pares e dos chefes militares. É objeto da curiosidade geral o cavalo preto da Pucela, que um soldado de seu séqüito mantém preso.


Penetremos na alta nave gótica e avancemos até à capela-mor. O rei, cercado dos doze pares do reino, leigos e eclesiásticos, ou de seus suplentes, e do condestável Carlos d'Albert, que conduzia a espada da França, acaba de ser armado cavaleiro. Perto, encostada ao pilar da direita, no sítio que ainda hoje se aponta, está Joana, armada em guerra, empunhando seu estandarte branco, aquele estandarte, que “depois de ser lábaro de tantos trabalhos, viria a ser objeto de subidas honras”. (126)


A unção, o monarca recebeu-a do arcebispo de Remos, Reinaldo de Chartres, que, tomando a coroa de sobre o altar, a entregou aos dozes pares, os quais, com os braços erguidos, a sustêm por cima da cabeça do rei. Depois de havê-la cingido, Carlos de Valois revestiu os mantos reais, azuis, ornados de lírios douro. Nesse momento, a Pucela, num ímpeto de emoção, lançando-se-lhe aos pés, se lhe abraçou aos joelhos e disse:


“Gentil sire, está feito assim o que foi do agrado de Deus, cuja vontade era que eu levantasse o cerco de Orleães e vos trouxesse a esta cidade de Remos, a fim de receberdes aí a vossa digna sagração e provardes por essa forma que sois verdadeiramente rei e herdeiro da coroa da França.”


Clangorejam de novo as trombetas e o cortejo se move. Quando, no limiar da porta principal, aparece o rei, uma oscilação imensa se produz na multidão e as aclamações reboam.


As eminentes abóbadas vibram ao som das fanfarras. Pelo espaço, elevam-se os cânticos, os gritos de alegria e milhares de vozes lhes respondem do invisível. Eles lá estão, todos os grandes Espíritos da Gália, festejando o renascimento do país natal, todos os que amaram e serviram até à morte à nobre terra da França. Pairam por sobre o povo em delírio.


Eis aqui Vercingétorix, acompanhado dos heróis de Gergóvia e de Alésia! Eis Clóvis e seus Francos! Ali, Carlos Martel e seus companheiros! E Carlos Magno, o grande imperador de crescida barba! Com sua espada, a Joyeuse, ele saúda Joana e o rei Carlos. Além, Rolando e os valorosos! E a coorte inumerável dos cavaleiros, dos sacerdotes, dos monges, dos populares, cujos corpos repousam sob as pesadas lápides das tumbas, ou sob o pó dos séculos, todos os que deram a vida pela França! Lá estão e também gritam: Natal! festejando a ressurreição da pátria, o acordar da Gália!...


O cortejo se distende pelas ruas estreitas e pelas augustas praças. Ladeando o rei, vê-se Joana em seu garboso ginete, com a bandeira desfraldada; vêm a seguir os príncipes, os marechais e os capitães, ricamente trajados e cavalgando magníficos corcéis. Pendões, flâmulas e estandartes flutuam ao vento. Mas, entre os fidalgos de suntuosas vestes e os guerreiros de rebrilhantes armaduras, o alvo dos olhares curiosos era a donzela, que os conduzira à cidade da sagração, conforme predissera em sua aldeia, quando não passava de simples camponesa, de pastorinha desconhecida.


Intensa alegria dominava a cidade inteira. De muito longe viera gente para assistir à coroação. Jaques d'Arc, pai de Joana, chegara de Domremy dois dias antes, com Durand Laxart. Hospedaram-se no albergue da Zebra, rua do Adro. Emocionante cena se desenrola quando a heroína, em companhia de seu irmão Pedro, se encontra com o velho pai. Prostrando-se de joelhos, ela lhe pede perdão de haver partido sem o seu consentimento, acrescentando que essa era a vontade de Deus.


Cedendo a instâncias suas, o rei os recebeu e outorgou aos habitantes das aldeias de Greux e Domremy isenção de todos os tributos e impostos. As despesas de Jaques d'Arc foram pagas pelos cofres públicos e em nome da cidade lhe ofereceram um cavalo para regressar à sua aldeia.


Joana percorreu as ruas, acolhendo com modéstia os humildes e os mendigos. O povo se apertava ao redor dela; todos queriam tocar-lhe as mãos e o anel. Ninguém havia que não estivesse convencido de que fora enviada por Deus, para fazer cessar as calamidades que pesavam sobre o reino. Tudo isso ocorria num domingo, a 17 de julho de 1429, data que assinala o ponto culminante da epopéia de Joana d'Arc.


Todavia, Michelet se equivocou, quando disse que a missão de Joana devia terminar em Remos e que ela desobedeceu às suas vozes, continuando a luta. As próprias palavras da heroína, suas declarações aos examinadores de Poitiers e aos juízes de Ruão desmentem semelhante asserção. Mais positivo é ainda o desmentido, na intimação que dirigiu aos capitães ingleses diante de Orleães, em documento datado de 22 de março:


“De onde quer que encontre vossos homens na França, fa-los-ei sair, queiram ou não queiram... Vim da parte de Deus para vos pôr fora de toda a França”.(127)


Nenhuma dúvida, portanto, é possível. A versão, segundo a qual o papel de Joana findava em Remos, começou a ter curso por ocasião do Processo de reabilitação, colimando esconder dos pósteros a deslealdade, poder-se-ia dizer o crime, de Carlos VII e de seus conselheiros e livrá-los das tremendas responsabilidades que pesam sobre um e outros. Tiveram o cuidado, obedecendo a esse intuito, de fazer com que a História fosse falsificada, mutilada, os depoimentos alterados, destruído o registro dos interrogatórios de Poitiers, que, em suma, se praticasse um ato odioso, uma obra de mentira e de iniqüidade!(128)


Contudo, não foi sem apreensão, sem pesar, já o vimos, que Joana prosseguiu na sua árdua tarefa. Alguns dias depois, indo a cavalo entre Dunois e Reinaldo de Chartres, dizia: “Quanto eu estimara que a Deus prouvesse permitir-me regressar agora, abandonando as armas, voltar ao serviço de meu pai e de minha mãe e à guarda de seus rebanhos, na companhia de minha irmã e de meus irmãos, que se sentiriam muito felizes por me tornarem a ver”.(129)


Estas palavras demonstram que o fulgor dos triunfos e os esplendores da corte não a deslumbraram. Atingira o fastígio da glória, constituíra-se o ídolo de um povo, era na realidade a primeira do reino e seu prestígio eclipsara o de Carlos VII. Entretanto, tinha por única aspiração tornar à paz dos campos, às doçuras do lar paterno. Nem as vitórias, nem o poderio que adquirira a haviam transmudado. Conservava-se simples e modesta, em meio das grandezas. Que lição para aqueles que se embriagam e se enchem de orgulho com o bom êxito no mais insignificante empreendimento, para aqueles a quem os favores da fortuna causam vertigem!


    

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