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VII



Orleães


Entrando em Orleães, quanto era grande e bela!


Premindo-se, os soldados fremem em torno dela.


Para os abençoar, mães os filhos lhe mostram,


E, à medida que avança, eis que todos se prostram!.


Paul Allard


De Túrones a Orleães a viagem foi uma contínua ovação. Por onde passava, ia Joana semeando a alegria. Se os cortesãos a olham com suspeita e desdém, o povo esse ao menos acredita nela e na sua missão libertadora. Os próprios ingleses, tomados de estupor, permanecem imóveis nas trincheiras, vendo desfilar, sob o comando da Pucela, o exército de salvação. Os habitantes de Orleães, loucos de entusiasmo, esquecendo o perigo, transpõem os muros da cidade e correm ao encontro da heroína. No dizer de uma testemunha ocular, “eles já se sentiam reconfortados e desassediados pela divina virtude que lhes tinham dito haver naquela simples pucela, que todos consideravam muito afetuosamente, tanto os homens como as mulheres e as crianças”. (109)


As campanhas de Joana d'Arc no Loire oferecem um espetáculo único na História: o dos capitães de Carlos VII, os Dunois, os La Hire, os Gaucourt, os Xaintrailles, marchando contra o inimigo sob as ordens de uma rapariga de dezoito anos!


Inúmeras dificuldades se lhe antolham. Os ingleses haviam feito um círculo de formidáveis fortificações em torno de Orleães. Dentro em pouco, na cidade reinará a miséria e será fatal a rendição de uma das maiores e mais fortes praças do reino. Lá se acham as melhores tropas da Inglaterra, comandadas pelos seus mais hábeis generais, as mesmas que vêm de alcançar sobre os franceses longa série de vitórias. Eis o imenso e principal obstáculo que cumpre à donzela vencer. São bravos os que ela comanda, mas estão desmoralizados por tantas derrotas sucessivas e pessimamente organizados para evitarem novos desastres.


Um primeiro ataque às trincheiras de Saint-Loup, tentado em sua ausência, é repelido. Avisada, a heroína se arroja a toda brida, com a bandeira desfraldada. Eletriza os soldados e, num ímpeto fascinador, arrasta-os ao assalto.


“Era a primeira vez – diz Anatole France, numa das raras passagens de sua obra, em que lhe faz justiça – que Joana via combater e logo, entrando na batalha, se tornou o chefe, porque era melhor que todos. Fez mais do que os outros. Não que fosse mais versada do que eles em coisas de guerra; era-o muito menos; mas, por ter o coração mais abnegado. Quando cada um pensava em si, ela pensava em todos; quando cada um tratava de se resguardar, ela a tudo se expunha, pois de antemão se votara sem reserva ao sacrifício. Assim, aquela criança que, como qualquer criatura humana, temia os sofrimentos e a morte, a quem suas vozes, seus pressentimentos haviam anunciado que seria ferida, tomou lugar à frente dos guerreiros e, sob uma chuva de projéteis arremessados pelas bestas e colubrinas, permaneceu de pé à borda do fosso, empunhando o estandarte, para manter unidos os combatentes”.(110)


Com esse vigoroso ataque, conseguiu romper as linhas inglesas. Uma a uma, as fortificações foram tomadas e em três dias Orleães estava livre do cerco. Depois, os combates se sucedem, como relâmpagos num céu de fogo. Cada assalto é uma vitória. É Jargeau, é Meung, é Beaugency! Finalmente, em Patay, os ingleses são batidos em campo raso e o General Talbot, que os comandava, cai prisioneiro. Em seguida, as tropas libertadoras marcham sobre Remos e Carlos VII é sagrado rei da França.


Em dois meses Joana reparara todos os desastres; reconstituíra, moralizara, disciplinara, transfigurara o exército e reerguera todas as coragens.


“Antes dela – dizia Dunois –, duzentos ingleses punham em fuga mil franceses; com ela, algumas centenas de franceses forçam um exército inteiro a recuar”. (111) No Mistério do Cerco, drama popular, representado pela primeira vez no ano de 1456, em Orleães, um dos atores exclama:


Um só de nós vale por cem


sob o estandarte da Pucela.(112)


Alguns autores, como Thalamas,(113) julgaram poder afirmar que a situação de Orleães em 1429 não chegara a ser tão grave quanto geralmente se diz. Os ingleses eram pouco numerosos e os borgonheses se haviam retirado. A cidade, bem abastecida, se achava em estado de resistir longo tempo e os orleaneses podiam libertar-se unicamente por seus próprios esforços.


Não só todos os historiadores, Micheles, Henri Martin, Wallon, Lavisse, etc., são unânimes em atestar a situação precária dos sitiados, como também o afirma um outro escritor, nada suspeito de parcialidade em favor de Joana: Anatole France, que escreveu o seguinte: “Perturbados pelas dúvidas e temores, ardendo de inquietações, sem sono, sem repouso, não avançando um passo em qualquer sentido, os orleaneses começavam a desesperar”. (114)


Enquanto isso, os ingleses aguardavam novos reforços prometidos pelo Regente. Cinco mil combatentes se reuniram em Paris sob as ordens de Sir John Falstolf, com abundantes víveres, para marchar em auxílio dos sitiantes. (115)


Lembremos ainda mais o depoimento do duque d'Alençon no Processo de reabilitação. Falando das temíveis fortificações construídas pelos ingleses, diz: “Se me achara em qualquer delas com um punhado de homens armados, ousara desafiar o poder de um exército e creio bem que os atacantes não lograriam tomá-las. E, de fato, os capitães que tiveram parte nas operações me declararam que algo de miraculoso houve no que se fez em Orleães!”. (116)


A esses testemunhos convém aditar a afirmação de um dos sitiados, João Luillier, notável comerciante da cidade, o qual assim se exprimia: “Todos os meus concidadãos e eu estamos certos de que, se a Pucela não viera socorrer-nos, em pouco teríamos caído nas mãos dos sitiantes. Fora impossível aos orleaneses conseguirem resistir por muito tempo às forças inimigas, cuja superioridade era enorme”. (117)


O entusiasmo dos habitantes dá a medida dos perigos por que passaram: após a libertação da praça, os orleaneses “se ofereciam a Joana para que a heroína dispusesse deles e de seus bens à vontade”, diz-nos o Journal du Siège. (118)


Não menos probante é o testemunho que um modesto tabelião da cidade, Guilherme Girault, deixou consignado numa página de um de seus livros de assentamentos. Em meio das aclamações de toda a França, Girault escrevia que o livramento de Orleães fora o “milagre mais evidente que já houvera depois da Paixão”. (119)


Esta parte da vida de Joana é rica de fenômenos de premonição, que devemos acrescentar aos já assinalados.


Suas vozes lhe haviam dito que, quando ela entrasse em Orleães, os ingleses não se mexeriam. O fato se verificou.


As chalanas que tinham de atravessar o rio para embarcar os víveres não podiam fazê-lo, por ser contrário o vento que soprava. Joana diz: “Esperem um pouco. Tudo entrará na cidade.” Com efeito o vento mudou e enfunou as velas. (120)


Nenhuma inquietação lhe produziu a partida do Marechal de Boussac, à frente do segundo comboio de víveres. Dizia: “Sei que não lhe acontecerá mal algum.” E assim foi.


Pouco a pouco, a alegria dos orleaneses ganha toda a França. À medida que as vitórias de Joana se sucedem, o rei as comunica às suas “boas cidades”, convidando as populações a “louvarem a Deus e renderem homenagem a Pucela, que sempre estivera presente à execução de todas estas coisas”. (121)


Por toda parte as notícias são recebidas com júbilo delirante e o povo consagra à heroína um culto cada dia mais elevado.


*


Há 480 anos, Orleães festeja o aniversário de tão prodigiosos acontecimentos. Graciosamente convidado pelo maire, tive ocasião de assistir a muitas dessas solenidades. (122) Transcrevo aqui as notas que então escrevi, sob a impressão do momento:


O grande sino de alarma, velha testemunha do assédio, o mesmo que assinalava os movimentos dos ingleses, toca de quarto em quarto de hora. Suas vibrações sonoras se propagam por sobre a cidade, se instilam pelas ruas estreitas e tortuosas da antiga Orleães, penetram até ao fundo das casas, despertam nos corações a lembrança do levantamento do cerco. Acudindo-lhe ao chamado, logo todos os sinos das paróquias entram a bimbalhar. Suas aéreas vozes se elevam no espaço e formam um concerto portentoso, em que predominam as notas graves do grande sino, sons que impressionam as almas sonhadoras.


A cidade inteira se apresenta enfeitada e empavesada. Por cima dos edifícios flutuam bandeiras; nas sacadas e janelas, misturam-se os pavilhões nacionais e os estandartes com as cores e as armas da Pucela.


A multidão enche as ruas e praças. Abundam forasteiros, vindos uns dos arredores, outros de pontos longínquos da França e até do estrangeiro. Significativa particularidade! todos os anos, grande número de ingleses vêm participar das festas da virgem Lorena. Entre os prelados franceses, via-se o cardeal Vaughan, arcebispo de Westminster. Um povo que procede assim não é um povo sem grandeza.


Em parte alguma a lembrança de Joana d'Arc se conservou tão viva. Em Orleães, tudo nos fala da Pucela. Cada esquina de rua, cada monumento nos recorda um episódio do cerco. Durante quatro séculos, a França desconheceu sua heroína. O silêncio e a obscuridade lhe envolveram a memória. Só Orleães nunca a esqueceu.


A partir de 1430, um ano depois de levantado o sítio, foram instituídas a cerimônia e as procissões comemorativas e, desde então, a municipalidade e o clero, numa digna emulação, se esforçam por dar à solenidade novos atrativos, sempre que ela se repete. Espetáculo raro e tocante: todos os poderes se unem para tornar a manifestação cada vez mais brilhante. Só a memória de Joana é hoje capaz de restabelecer a união dos pensamentos e dos corações, do mesmo modo que ela em pessoa restabeleceu a unidade da França, no momento dos supremos desastres e do esboroamento.


Na noite de 7 de maio, por volta das 8 horas, Joana, vitoriosa nas Tourelles, entrava na cidade assediada. Comovedora e inolvidável cerimônia consagra anualmente a lembrança desse fato. O maire, levando à frente a bandeira da heroína, uma bandeira branca com as flores de lis bordadas a ouro, seguido pelos conselheiros municipais, sai da municipalidade e vem até ao adro da catedral, onde passa o estandarte sagrado às mãos do bispo, que ali o aguarda cercado do clero e dos prelados estrangeiros.


Sob um céu escuro, carregado de nimbos, avulta as torres maciças da basílica da Santa Cruz. As tropas formam quadrado; troa o canhão; o sino grande, o bordão da catedral, e os das outras igrejas repicam vibrantemente. Abrem-se as portas do vasto templo; a passos lentos, o cortejo dos bispos e dos padres as transpõe e se estende ao longo dos pórticos escancarados, diante dos quais se vêem desfraldadas as bandeiras de Santo Aignan e Santo Euverte, padroeiros da cidade. Ao clarão das tochas, que os cavaleiros empunham, rutilam as mitras e os báculos. Lâmpadas, que subitamente se acendem no interior das torres, as iluminam, emprestando-lhes cores fantásticas. Uma luz purpúrea se derrama por sobre os florões, as ogivas, o rendilhado de pedra da fachada, as bandeiras ondulantes, as estolas e as sobrepelizes.


Etendard de la délivrance

A la victoire tu menas nos aïeux.

Fils de ces preux, disons comme eux:

Vive Jeanne! Vive la France!


Um frêmito, um alento forte passa pela multidão atenta e concentrada. As frontes se inclinam diante da bandeira branca, ornada de flores de lis, que lentamente sobe os degraus e desaparece em baixo das abóbadas, semelhando o fantasma da virgem Lorena a mostrar-se no seu aniversário.


As grades tornam a fechar-se; apagam-se as luzes; as harmonias emudecem; a multidão se retira e a basílica torna à escuridão e ao silêncio nas trevas da noite.


*


Oito de maio, 10 horas. Batida pelos raios do Sol, a catedral se ostenta ornamentada de auriflamas e pavilhões. É sóbria, mas de muito efeito a decoração interna. Longas bandeiras vermelho e ouro, as cores de Orleães, enfeitam o coro. Suspensos aos pilares, vêem-se os brasões do Bastardo e dos outros companheiros da Pucela. Na altura do órgão, dominando todo o conjunto, as armas de Joana, (123) num quadro virginal de alvíssimos estofos. Nenhum lugar vazio na vasta nave. A França inteira – exército, magistratura, clero, poderes municipais, burgueses, artistas – está representada naquela reunião. Aos uniformes agaloados, às togas encarnadas dos juizes e aos trajes pretos dos funcionários, mesclam-se os garridos vestuários e os chapéus floridos das senhoras.


O ofício começa pela Missa em memória de Joana d'Arc, de Gounod. Às harmonias do órgão, juntam-se as fanfarras de guerra e em seguida um coro de donzelas entoa as Vozes de Joana, do mesmo autor. As notas puras do canto descem da elevada tribuna, como se foram melodias celestes. Dir-se-ia um eco das esferas angélicas, uma como evocação da virgem mártir que, Espírito radioso, todos sentem pairando sob aquelas abóbadas. Por um instante, esquecem-se as tristezas e as dores terrenas. A impressão é grandiosa e profunda; de muitos olhos marejam lágrimas.


Elevo então a Joana o pensamento, dirijo-lhe ardente prece e um raio do Sol, coando-se através das vidraças brasonadas, me banha de luz, enquanto que, ao meu derredor, larga sombra cobre a multidão comprimida dos ouvintes.


Depois, o bispo de Orleães faz o panegírico da Pucela. Reconduz-nos à Terra e, em frases calorosas, expõe a situação da cidade durante o cerco. Diz:


“Certamente ela se defende bem, a nobre cidade! Paris é inglesa, seja; Orleães se conservará francesa. Paris é apenas a cabeça do reino; Orleães é o coração. Enquanto o coração bate, restam esperanças. Almotacéis, povo, burgueses, clero, guerreiros, resolvem morrer de preferência a se renderem. Queimarão os arrabaldes, desmantelarão as igrejas, estarão dia e noite de atalaia; os negociantes baterseão como se tal fora sua profissão habitual; e assim darão tempo ao rei de mandar reforços. E, viva Deus! ver-se-á para que lado pende a sorte das batalhas.


Mas, ai! o rei, nem dinheiro, nem soldados enviava; os sitiantes apertavam o cerco; erguiam fortificações de semana a semana; os víveres se esgotavam e a fome, a horrível fome, devastava.(124) Mais meio mês, e Orleães sucumbirá e o reizinho de Bourges nem sequer continuará a ser o simples reizinho de Bourges e a França baixará ao túmulo em que jazem as nações mortas...”


Pouco adiante, pinta o delírio dos habitantes, após as vitórias de Joana:


“Ah! os oito dias que se seguiram à jornada de Patay, quanto devera ser bom vivê-los! Quão mais suave deve ter parecido a Primavera! quão mais luminosa a superfície do nosso Líger e embalsamado o nosso Vale de ouro! Podeis imaginar as visitas em ação de graças a todas as vossas igrejas; os cantares que não mais cessavam; os entusiasmos de que eram objeto os heróis da maravilhosa epopéia; o povo respirando pela primeira vez, depois das opressões da guerra de Cem Anos; numa palavra, esta cidade aclamando-se a si mesma, na vitória da Pucela, e a ressurreição da Pátria?”


Desce do púlpito o orador. A turba imensa se precipita para o adro, baralha-se com as forças do exército, ziguezagueia por entre os bispos, as bandeiras, as relíquias, e a tradicional procissão desfila, comprida de dois quilômetros, sob um céu escampo, através das ruas empavesadas. Vai percorrer as estações marcadas pelas vitórias de Joana, em Orleães sitiada.


No local do forte das Tourelles uma cruz modesta guarda a memória daquela – diz a inscrição – que “por seu valor, salvou a cidade, a França e seu rei”. Aí a última parada. Troa de novo o canhão e as bandas militares saúdam o estandarte; o cortejo regressa ao ponto donde partira e se dispersa. Contente, a multidão vai entregar-se a seus folgares, enquanto os verdadeiros amigos de Joana irão orar e meditar na solidão.


    

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