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VI



Chinon, Poitiers, Tours


Vai, avança ousadamente


Que do triunfo irás à frente.


Paul Allard


Para a maior parte dos autores, Joana entrou na Touraine por Amboise, seguindo a estrada romana que se alonga pela margem esquerda do Loire. Teria então vindo primeiramente de Gien a Blois, pelo Sologne. Saindo de Amboise, teria atravessado o Cher, em Saint-Martin-le-Beau, o Indre, em Cormery, e parado em Sainte-Catherine-de-Fierbois, onde havia uma capela consagrada a uma de suas santas. Segundo antiga tradição, Carlos Martel, vencedor dos Sarracenos, tendo-os exterminado nos bosques bravios (ferus boscus, Fierbois), depusera a espada na ermida, que se erguia em meio desses bosques. Reconstruída em 1375, ela era freqüentada pelos cavaleiros e homens d'armas que, para obterem a cura de ferimentos, faziam voto de lá ir em peregrinação depositar seus gládios.


A certa altura da estrada, fora posto de alcatéia, provavelmente pelo pérfido La Trémoille, um troço de soldados pagos para se apoderarem de Joana. Ao enfrentarem, porém, com a enviada de Deus, os bandidos ficaram como que pregados ao solo. (86)


Conforme aos depoimentos, idênticos, de Poulengy e de Novelonpont, a viagem de Vaucouleurs a Chinon se efetuou em onze dias. Segue-se daí, diz o padre Bosseboeuf, que Joana chegou a Chinon a 23 de fevereiro, numa quarta-feira. (87) Wallon, Quicherat e outros dizem ter sido a 6 de março.


Eis aqui a cidade e seus três castelos, cujos contornos se confundem numa extensa massa cinzenta de muros ameados, de torres e torreões.


Ao entrar em Chinon, a pequena caravana desfilou pelas ruas ladeirentas, margeadas de edificações góticas, com os frontispícios chapeados de ardósias e as quinas ornadas de estatuetas de madeira. Desde logo, às portas das casas, ou nos serões à noite, junto à lareira crepitante, começam a circular de boca em boca maravilhosos contos, em que figura como protagonista a donzela que viera dos confins da Lorena, para cumprir as profecias e pôr termo à insolente fortuna dos Ingleses.


Joana e sua escolta pousaram “em casa de uma boa mulher, perto do castelo”,(88) sem dúvida a do gentil homem Reignier de la Barre, cuja viúva, ou filha, recebeu a Pucela com muita alegria. (89) Passou aí dois dias, sem conseguir a audiência que pedira. (90) Mais tarde, alojou-se no próprio castelo, na torre de Coudray.


Afinal, a tão desejada entrevista lhe foi concedida. Era noite. O flamejar das tochas, o estridular das fanfarras, o aparato da recepção, tudo isso não irá causar-lhe assombro e intimidá-la? Não, porque ela vem de um mundo mais brilhante do que o nosso. Desde tempos remotos, conheceu magnificências ao lado das quais toda aquela encenação é por demais descolorada. Muito para lá de Domremy, muito para além da Terra, em épocas que lhe precederam o nascimento, freqüentou moradas mais gloriosas do que a corte de França e disso guardou a intuição.


Mais vibrante do que o tilintar das armas e o ressoar das trombetas é a voz que lhe fala no íntimo, repetindo: “Vai, filha de Deus, estou contigo!”


Entre meus leitores, alguns hão de estranhar esses dizeres. É, pois, chegada à ocasião de afirmar, de recordar que o Espírito existe anteriormente ao corpo; que, antes de seu último nascimento na Terra, já ele percorreu dilatados períodos de tempo, habitou muitos lugares, e que, retornando a este mundo a cada nova encarnação, traz consigo volumosa bagagem de qualidades, faculdades e aptidões, reunidas durante o passado oculto que atravessou.


Há em todos nós, nas profundezas da consciência, um amontoado de impressões e de lembranças, constituído no decurso de nossas vidas antecedentes, seja na Terra, seja no Espaço. Essas lembranças e impressões jazem adormecidas: o espesso manto da carne as abafa e apaga. Mas, às vezes, e sob a ação de algum agente exterior, despertam repentinamente. Chispam então as intuições, ignoradas faculdades reaparecem e nos tornamos, por instantes, um ser diferente do que éramos aos olhos de nossos semelhantes.(91)


Já sem dúvida haveis de ter observado certas plantas que se balouçam na superfície das águas dormentes dos lagos. Aí tendes uma imagem da alma humana, a flutuar sobre as profundezas sombrias de seu passado, mergulhando as raízes em regiões desconhecidas e longínquas, donde haure a vivificante seiva, necessária à formação da flor esplendente que vai desabrochar, crescer, desdobrar-se no campo da vida terrena.


Joana foi introduzida num imenso salão do castelo, onde se achavam reunidos trezentos fidalgos, cavaleiros e damas da nobreza, ricamente trajados. Que impressão não devera produzir na humilde camponesa aquele espetáculo! De que coragem não precisou para afrontar tantos olhares licenciosos ou inquisitoriais, tão numerosa assembléia de cortesãos, que ela percebia lhe ser hostil?


Lá estavam Regnault de Chartres, chanceler de França, arcebispo de Reims, sacerdote de alma empedernida, pérfido e cúpido; La Trémoille, o grande camarista, homem invejoso e dissimulado, que dominava o monarca e, em segredo, urdia traições com os ingleses; o duro e orgulhoso Raul de Gaucourt, mordomo-mor do rei, o marechal Gilles de Retz, infame feiticeiro, mais conhecido pela alcunha de “Barba Azul”, e uma infinidade de outros cortesãos titulares, de padres astuciosos e ávidos. Joana sentia em torno de si uma atmosfera de incredulidade e animadversão. Tal o meio em que vivia Carlos VII, amolentado pelo abuso dos prazeres, longe do teatro da guerra, entre os favoritos e as amantes.


Suspeitoso e tímido, o rei, para experimentá-la, pusera no trono um cortesão e se ocultara na multidão de fidalgos. A donzela, porém, vai direto à sua presença, ajoelha-se e lhe fala por longo tempo em voz baixa. Revela-lhe pensamentos que ele guardava em segredo, as dúvidas que nutria sobre seu próprio nascimento, suas hesitações ocultas, e um raio de confiança e de fé ilumina, diz a Crônica, o semblante do monarca. (92) Os que presenciavam a cena compreenderam, tomados de espanto, que um fenômeno extraordinário acabava de operar-se.


Entretanto, “ninguém houve que pudesse crer achar-se a sorte do mais altivo reino da cristandade confiada a tais mãos, nem que ao braço débil de uma pobre aldeã estivesse reservado o desempenho de uma tarefa que malograra os conselhos dos mais avisados e a coragem dos mais fortes”. (93) Contudo, Joana ainda teve que suportar muitas humilhações e sofrer exame feito por matronas, para verificação de sua pureza. Em Poitiers, onde a mandaram, comparece diante de uma comissão de inquérito, composta de uma vintena de teólogos, dois dos quais bispos, os de Poitiers e de Maguelonne.


“Era um belo espetáculo – diz Alain Chartier, escrevendo sob a impressão da cena – vê-la disputar, ela, mulher, contra os homens; ignorante, contra os doutores, só, contra tantos adversários.”


Todas as suas réplicas denotam grande vivacidade de espírito e são sempre de surpreendente oportunidade. A cada momento lhe irrompem dos lábios ditos chistosos, tão imprevistos quanto originais, que arrasam as lastimosas objeções de seus examinadores. Os autos dos interrogatórios de Poitiers foram destruídos. Alguns historiadores responsabilizam por essa destruição os agentes da coroa da França, que se mostraram tão ingratos e indiferentes para com a Pucela durante seu longo cativeiro. Não nos resta mais do que um resumo das conclusões a que chegaram os doutores chamados a emitir opinião acerca de Joana.(94) “Nela não se encontra maldade alguma – dizem eles –, e sim tudo o que é bom; humildade, virgindade, devoção, honestidade e simpleza”. (95)


Possuímos, além disso, os testemunhos do Processo de reabilitação. Frei Seguin, da Ordem dos Dominicanos, exprimia-se assim, com muita bonomia e simplicidade. “Eu que vos falo perguntei a Joana de que idioma se servia a voz que lhe falava. – “De um melhor do que o vosso”, respondeu-me. E, com efeito, eu falo o limosino. Interrogando-a de novo, disse-lhe: “Crês em Deus?” “Sim, melhor do que vós”, foi a resposta que me deu”. (96)


Outro dos juizes de Poitiers, Guilherme Aimery, lhe objetava: “Dizes que Deus te prometeu a vitória e pedes soldados. Para que soldados, se a vitória está garantida?” – “Os soldados batalharão em nome de Deus – replicou Joana – e Deus dará a vitória”. (97)


Quando lhe pedem que mostre os sinais de ser verdade o que diz, isto é, quando lhe pedem milagres, ela observa: “Não vim a Poitiers para dar sinais de coisa alguma. Levai-me, porém, a Orleães e vos mostrarei os sinais de que sou enviada”. (98)


Pela segunda vez, obrigam-na a sujeitar-se a ser examinada por um conselho de matronas, a que a rainha da Sicília preside; para lhe verificarem a virgindade.


Depois de sair triunfante de todas essas provações, ainda foi forçada a esperar mais de um mês, para marchar contra os Ingleses. Só quando a situação de Orleães se torna desesperadora é que Dunois consegue que a enviem, como último recurso, à frente de um comboio de víveres.


*


Joana veio primeiramente a Tours, para mandar fazer sua armadura e seu estandarte. Reinava aí viva agitação, entregues os habitantes a ativos trabalhos de defesa. A 14 de outubro de 1428, o Marechal de Gaucourt, bailio de Orleães e mordomo-mor do rei, os avisara de que os Ingleses haviam posto cerco a Orleães e que tencionavam em seguida marchar sobre Túrones. (99) A cidade se aprestava para resistir. Por toda parte pedreiros, obreiros de toda espécie, trabalhadores braçais, porfiavam numa atividade febril. Trabalhava-se com ardor em levantar baluartes, cavar e alargar fossos, reparar e aparelhar as pontes. Nas torres e trincheiras, construíam-se guaritas de madeira para as atalaias. Abriam-se canhoneiras nas muralhas de circunvalação. Bombardas e colubrinas, balas de pedra, pólvora, tudo o que compunha a artilharia da época estava sendo armazenado. O inimigo podia vir; saberiam responder-lhe.


A antiga cidade dos Túrones gozava então de grande importância. Chamavam-lhe a segunda Roma, por causa de seu numeroso igrejário, de seus mosteiros e, sobretudo, por causa da romaria a São Martinho, para a qual vinham peregrinos de todos os pontos da cristandade. A fim de fazermos idéia de sua situação ao tempo de Joana d'Arc, subamos pelo pensamento a uma das torres da colegiada de São Martinho, à de Carlos Magno, por exemplo, conservada até hoje e que encerra o túmulo de Luitgarde, esposa daquele rei, circunstância que lhe deu o nome.


Vista de relance, ela nos apresentará, mais ou menos, aspecto idêntico ao que ofereciam todas as grandes cidades francesas da Idade Média, razão pela qual convém demoremos um pouco a inspeção.


Cintavam-na quatro linhas contínuas de muralhas e de torres. No interior desse perímetro, um labirinto de ruas estreitas e praças apertadas, ao longo das quais se enfileiravam casas de frontões ogivais e coberturas, denticuladas, com os pavimentos inclinados uns sobre os outros, as portas guarnecidas de estatuetas, vigas esculpidas, altas trapeiras e vidros de cores variadas. Completando tão pitoresco conjunto, grandes divisas de ferro, recortadas pelas mais extravagantes formas, substituem os números das casas, balançando ao vento. Umas têm sentido histórico ou heráldico, o de outras é emblemático, comemorativo ou religioso. Eis aqui, por exemplo, algumas das da Grand' Rue: Ao Unicórnio; À Pega; Aos Padrenossos de Ouro; Ao Asno Vigilante; da praça São Martinho: Ao Macaco Pregador, À Coruja; da rua de la Rôtisserie: Às Três Tartarugas, etc.(100)


Do ponto elevado em que nos achamos, observai a floresta de lanternins agudos, de campanários, de muros donde emergem os três corpos da catedral, que já tem a nave principal mais ou menos acabada, porém, cujas torres são altas apenas de dez ou vinte metros, a abadia de São Juliano e a mole imponente da colegiada de São Martinho, da qual hoje duas torres somente restam.


A nossos pés, a cidade inteira, com suas cinqüenta igrejas ou capelas, seus oito grandes claustros, cercados de muros, suas numerosas hospedarias e habitações nobres; verdadeira brenha de flechas, de agulhas, de pontas de minaretes, de torrinhas em forma de fusos, de compridas chaminés góticas. Em baixo, o dédalo das ruas que se cortam e entrecruzam e as encruzilhadas atravancadas de gente e de cavalos. Prestai atenção ao sussurro e ao rumor que sobem até onde estamos. Escute o retinir de todos os sinos a darem as horas.


Imaginai, luzindo sobre este panorama, um límpido raio de Sol; contemplai os reflexos cambiantes do rio; ao longe, as colinas cobertas de vinhedos, as florestas que ocupam os dois planaltos, especialmente ao Sul, e cujos maciços profundos formam grandioso quadro à cidade, que se estende pelo recôncavo do vale. Considerai tudo isso e fareis idéia do que era Túrones no dia em que Joana d'Arc lá chegou acompanhada de sua casa militar. (101)


Conforme ao depoimento de seu pajem Luís de Contes, no processo, ela se hospedou na casa de uma senhora chamada Lapau. (102) Segundo o testemunho de seu capelão, João Pasquerel, foi o burguês João du Puy (103) quem lhe deu agasalho. Essas contradições são apenas aparentes. Com efeito, o nobre turonense Jehan du Puy era casado com Eleonora de Paul e o povo, sempre avezado às corruptelas, deformou este último nome. Yolanda, rainha de Aragão e da Sicília, dera Eleonora, por dama de honra, à sua filha Maria d'Anjou, rainha da França. “Ela era enjovina – diz de Beaucourt em sua Histoire de Charles VII, (104) – e provavelmente fora educada com a jovem princesa.” Tendo-lhes a rainha Yolanda pedido hospedagem para a estrangeira, que tomara sob sua proteção, João du Puy, conselheiro do rei e almotacel, e sua esposa a acolheram. O prédio em que habitavam ficava perto da igreja de Saint-Pierre-le-Puellier e muitos arqueólogos julgam reconhecê-la na casa chamada de Tristão. (105)


Foi em Túrones que, na qualidade de capelão, entrou para o serviço de Joana frei Pasquerel, então leitor do convento dos Agostinhos daquela cidade, (106) o qual a acompanhará fielmente até ser presa em Compienha, um ano depois.


Também foi em Túrones que a intrépida menina recebeu seu equipamento militar, a espada e a bandeira. Seguindo suas indicações, um armeiro da cidade foi procurar a espada que Carlos Martel depositara em Santa Catarina de Fierbois. Estava enterrada atrás do altar e ninguém no mundo sabia que se achava ali. Para a heroína, essa espada sairá da poeira dos séculos e novamente expulsará o estrangeiro.


Outro armeiro de Túrones lhe fabricou um arnês de rutilante alvura. (107)


Obedecendo às instruções de suas vozes, Joana mandou fazer, por um artista turonense, uma bandeira branca, que serviria de estandarte e seria o emblema em torno do qual se reuniriam as tropas dispersas. Ornavam-na franjas de seda e continha, além da imagem de Deus abençoando as flores de lis, a divisa: “Jhésus Maria!” (108). A heroína jamais separava a causa da França dessa outra, mais alta, a inspiração divina, donde lhe decorria a missão.


A 25 de abril de 1429 partiu de Túrones para Blois, onde a esperavam os chefes militares e o grosso do exército. Doze dias depois, data de imperecível memória, ganhava a batalha das Tourelles e forçava o inimigo a levantar o cerco de Orleães.


Quando deixou Túrones, a população inteira se premia nas ruas para vê-la passar e aclamá-la. Envergando a armadura toda branca, que cintilava ao Sol da manhã, ela, garbosa, fazia caracolar o belo cavalo de guerra que montava. Empunhando a bandeira, trazendo à cinta a espada de Fierbois, avançava radiante de esperança e de fé. Dir-se-ia o anjo dos combates, como celeste mensageiro.


    

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