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V



Vaucouleurs


Eis, vou partir!


Adeus, vós todos a quem eu amava.


Paul Allard


Retomemos o curso da história de Joana. Vimo-la sair de Domremy. A partir desse dia, as provações vão surgir sob cada um de seus passos e serão tanto mais cruéis, quanto lhe virão daqueles cuja simpatia, afeição e amparo devia esperar. São-lhe aplicáveis estas palavras: “Ela veio para o meio dos seus e os seus não a conheceram”. (84)


Desde os primórdios de sua missão, Joana sentiu as penosas alternativas que, depois, freqüentemente, a assaltaram. Tão devotada a seus deveres, tão submissa à autoridade de seus genitores, ela se vê, mau grado ao amor que a ambos consagra, na contingência de lhes infringir as ordens e de abandonar clandestinamente a casa onde nascera.


Seu pai tivera em sonho a revelação dos desígnios que ela acariciava. Sonhou, uma noite, que a filha deixava a terra natal, a família, e partia, acompanhada de homens de guerra. Vivamente preocupado, falou disso aos filhos, ordenando-lhes que, de preferência a consentirem que se ausentasse assim, “a afogassem no Mosa”. E acrescentava: “Se o não fizerdes, fa-lo-ei eu próprio!”


Joana fora obrigada a dissimular, resolvida, como estava, “a obedecer antes a Deus do que aos homens”.


Em Ruão, os juizes lhe fazem carga dessa circunstância: “Acreditavas proceder bem, perguntam-lhe, partindo sem permissão de teu pai e de tua mãe?” – “Sempre obedeci a meu pai e a minha mãe em tudo, exceto no que respeitava à minha partida. Mas, depois lhes escrevi e eles me perdoaram.”


Mostra-se assim cheia de deferência e submissão para com aqueles que a criaram. No entanto, os juizes insistem: “Quando deixaste pai e mãe, não consideraste estar cometendo um pecado?!” Joana então exprime todo o seu pensamento, nesta bela resposta: “Pois que Deus ordenava, era preciso fazer. Mesmo que eu tivesse cem pais e cem mães e que fosse filha de rei, ainda assim teria partido!” (85)


Acompanhada por um de seus tios, Durand Laxart, a quem, passando por Burey, se reunira, o único parente que lhe acreditou na vocação, o único que a animou a executar seus projetos, apresenta-se a Roberto de Baudricourt, comandante de Vaucouleurs, em nome do delfim. O primeiro acolhimento foi brutal: Joana, porém, não desanima, prevenida que fora por suas vozes. Escudada numa resolução inabalável, nada é capaz de desviá-la de seu objetivo. Afirma-o em termos enérgicos à boa gente de Vaucouleurs: “Antes que a quaresma vá a meio, hei de estar na presença do rei, ainda que tenha de gastar minhas pernas até aos joelhos!” E, pouco a pouco, à força de insistência, o rude comandante lhe presta mais atenção aos propósitos.


Como todos os que dela se aproximavam, Roberto de Baudricourt experimentou o ascendente daquela criança. Depois de mandá-la exorcizar por Jean Tournier, cura de Vaucouleurs, e de convencer-se de que nenhuma tenção má a guiava, não mais ousa negar-lhe crédito à missão, nem cumular-lhe de obstáculos o caminho. Manda lhe dêem um cavalo e escolta. Já o cavaleiro Jean de Metz, dominado pela ardente convicção de Joana, lhe prometera conduzi-la à presença do rei. E, como lhe perguntasse: “Mas, quando?” prontamente ela respondeu “Antes já do que amanhã, antes amanhã do que mais tarde!”


Finalmente, partiu, ouvindo do comandante da praça, por despedida, estas palavras de uma frieza pouco animadora: “Vai e suceda o que haja de suceder!” Que importam, entretanto, a Joana tais palavras! Não é às vozes da Terra que dá ouvidos, mas às do Alto, que a estimulam e alentam. As incertezas e perigos do futuro lhe revigoram a força da alma e a confiança, tanto que de contínuo repetirá o ditado de sua província: “Ajuda-te a ti mesmo, que Deus te ajudará!” O porvir é de infundir terror. Ela, porém, de posse das forças divinas, nenhuma coisa teme!


Dá, por essa forma, um exemplo a todos os peregrinos da vida. Emboscadas tremendas se multiplicam na estrada que cumpre ao homem percorrer: por todos os lados atoleiros, angulosas pedras, sarças, espinhos. Todavia, para transpormos tão perigosos óbices, temos em nós, dados por Deus, os recursos de uma energia oculta, de que podemos usar com eficácia, atraindo, pela mediação das potências invisíveis, os misteriosos socorros do Alto, que nos centuplicam as forças pessoais, assegurando-nos o bom êxito na luta. Ajuda-te a ti mesmo e Deus te ajudará!


Joana parte, levando por companhia unicamente alguns homens de coragem. Viaja dia e noite por províncias inimigas, para vencer as cento e cinqüenta léguas que a distanciavam de Chinon, onde reside o delfim Carlos, cognominado, por escárnio, o rei de Burges, porque, sob o cetro, somente conserva uns farrapos de reino, vivendo despreocupado de seu infortúnio, absorvido pelos prazeres, cercado de cortesãos, que o traem e secretamente pactuam com o inimigo.


Para chegar até lá, tem que atravessar a terra dos borgonheses, aliados da Inglaterra, caminhar à chuva por atalhos escondidos, vadear rios transbordados, dormir sobre o solo encharcado. Não hesita um só instante. Suas vozes lhe repetem sem cessar: “Vai, filha de Deus, vai, nós iremos a teu auxílio!” E ela vai, vai, a despeito dos obstáculos, por entre todos os perigos. Voa em socorro de um príncipe desesperançado e sem coragem.


E vede que mistério admirável! Uma criança é quem vem tirar a França do abismo. Que traz consigo? Algum socorro militar? Algum exército? Não, nada disso. Traz apenas a fé em si mesma, a fé no futuro da França, a fé que exalta os corações e desloca as montanhas. Que diz a quantos se apinham para vê-la passar? “Venho da parte do Rei do céu e vos trago o socorro do céu!”


    

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