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IV



A mediunidade de Joana d’Arc; o que eram suas vozes; fenômenos análogos, antigos e recentes


De pé, banhada em pranto, escuta atentamente


Alguma voz do céu, dolente.


Paul Allard


Os fenômenos de visão, de audição, de premonição, que pontilham a vida de Joana d'Arc deram lugar às mais diversas interpretações. Entre os historiadores, uns não viram neles mais do que casos de alucinação; outros chegaram a falar de histeria ou neurose. Alguns lhe atribuíram caráter sobrenatural e miraculoso.


O fim capital desta obra é analisar tais fenômenos, demonstrar que são reais, que obedecem a leis por muito tempo ignoradas, mas cuja existência se revela cada dia de modo mais imponente e mais preciso.


À medida que se dilata o conhecimento do Universo e do ser, a noção do sobrenatural recua e se apaga. Sabe-se hoje que a Natureza é una; porém, que na sua imensidade encerra domínios, formas de vida, que durante largo tempo nos escaparam aos sentidos. Sendo estes, como são, extremamente limitados, não nos deixam perceber senão as faces mais grosseiras e elementares do Universo e da vida. Sua pobreza e insuficiência se manifestaram sobretudo a partir do invento dos poderosos instrumentos de ótica, o telescópio e o microscópio, que alargaram em todas as direções o campo de nossas percepções visuais. Que sabíamos dos infinitamente pequenos, antes da construção dos aparelhos de aumento? Que sabíamos das inúmeras existências que pululam e se agitam em derredor de nós e em nós mesmos?


Entretanto, isso constitui apenas os baixos da Natureza e, por assim dizer, o substractum da vida. Para o alto se sucedem e escalonam planos sobre os quais se graduam existências cada vez mais sutis, etéreas, inteligentes, com um caráter ainda humano; depois, em certas alturas, angélicas, pertencentes sempre, pelo exterior, senão pela essência, aos estados imponderáveis da matéria, estados que, sob muitos aspectos, a Ciência hoje reconhece, como, por exemplo, na radioatividade dos corpos, nos raios de Roentgen, em todo o conjunto das experiências realizadas sobre a matéria radiante.


Além dos que, visíveis e tangíveis, nos são familiares, sabemos agora que a matéria também comporta múltiplos e vários estados invisíveis e impalpáveis, que ela pouco a pouco se apura, se transforma em força e luz, para tornar-se o éter cósmico dos físicos. Em todos esses estados, sob todos esses aspectos, continua sendo a substância em que se tecem inúmeros organismos, formas de viver de uma inimaginável tenuidade. Num largo oceano de matéria sutil, intensa vida palpita por sobre e em torno de nós. Para lá do círculo apertado das nossas sensações, cavam-se abismos, desdobra-se um vasto mundo desconhecido, povoado de forças e de seres que não percebemos, porém que, todavia, participam de nossa existência, de nossas alegrias e sofrimentos, e que, dentro de determinados limites, nos podem influenciar e socorrer. Nesse mundo incomensurável é que uma nova ciência se esforça por penetrar.


Numa conferência que fez, há anos, no Instituto Geral Politécnico, o Doutor Duclaux, diretor do Instituto Pasteur, se exprimia nos seguintes termos: “Esse mundo, povoado de influências que experimentamos sem as conhecer, penetrado de um quid divinum que adivinhamos sem lhe percebermos as minúcias, é mais interessante do que este em que até agora se confinou o nosso pensamento. Tratemos de abri-lo às nossas pesquisas: há nele, por fazerem-se, infindáveis descobertas, que aproveitarão à Humanidade.”


Oh! maravilha! nós mesmos pertencemos, por uma parte do nosso ser, a mais importante, a esse mundo invisível que dia a dia se desvenda aos observadores atentos. Existe em todo ser humano uma forma fluídica, um corpo imperceptível, indestrutível, imagem fiel do corpo físico, do qual este último é apenas o revestimento transitório, o estojo grosseiro, dispondo de sentidos próprios, mais poderosos do que os do invólucro material, que não passam de enfraquecido prolongamento dos primeiros. (15)


No corpo fluídico está a verdadeira sede das nossas faculdades, da nossa consciência, do que os crentes de todas as eras chamaram alma. A alma não é uma entidade metafísica, mas, sim, um centro imperecível de força e de vida, inseparável de sua forma sutilíssima. Preexistia ao nosso nascimento e a morte não tem efeito sobre ela. Vem a encontrar-se, além-túmulo, na plenitude das suas aquisições intelectuais e morais. Tem por destino continuar, através do tempo e do espaço, a evolver para estados sempre melhores, sempre mais iluminados pela luz da justiça, da verdade, da beleza eterna. O ser, indefinidamente perfectível, colhe aumentado, quando no estado psíquico, o fruto dos trabalhos, dos sacrifícios, e das provações de todas as suas existências.


Os que viveram entre nós, e continuam sua evolução no Espaço, não se desinteressam dos nossos sofrimentos e das nossas lágrimas. Dos páramos superiores da vida universal manam de contínuo sobre a Terra correntes de força e de inspiração. Vêm daí as centelhas inesperadas do gênio, os fortes sopros que passam sobre as multidões, nos momentos decisivos; daí também o amparo e o conforto para os que vergam ao peso do fardo da existência. Misterioso laço une o visível ao invisível. Relações de diversas ordens se podem estabelecer com o Além, mediante o auxílio de certas pessoas especialmente dotadas, nas quais os sentidos profundos, que jazem adormecidos em todo ser humano, são capazes de despertar e entrar em ação desde a vida terrena. A esses auxiliares é que damos o nome de médiuns.(16)



No tempo de Joana d'Arc essas coisas não eram compreensíveis. As noções sobre o Universo e sobre a verdadeira natureza do ser permaneciam ainda confusas e, em muitos pontos, incompletas, ou errôneas. Entretanto, marchando, há séculos, de conquista em conquista, mau grado às suas hesitações e incertezas, o espírito humano já hoje começa a levantar o vôo. O pensamento do homem se eleva, acabamos de vê-lo, acima do mundo físico, e mergulha nas vastas regiões do mundo psíquico, onde principia a entrever o segredo das coisas, a chave de todos os mistérios, a solução dos grandes problemas da vida, da morte e do destino.


Não esquecemos ainda os motejos de que estes estudos foram, a princípio, objeto, nem as críticas acerbas que ferem os que, corajosamente, perseveram em semelhantes pesquisas, em manter relações com o invisível. Mas, não chasquearam também, até no seio das sociedades sábias, de muitas descobertas que, mais tarde, se impuseram como outras tantas refulgentes verdades? O mesmo se dará com a existência dos Espíritos. Um após outro, os homens de ciência são obrigados a admiti-la e, freqüentemente, por efeito de experiências destinadas a demonstrar o seu nenhum fundamento, Sir W. Crookes, o célebre químico inglês, que pelos seus compatriotas é igualado a Newton, pertence a esse número. Citemos também Russell Wallace e Oliver Lodge; Lombroso, na Itália; os doutores Paul Gibier e Dariex, na França; na Rússia, o Conselheiro de Estado Aksakof ; na Alemanha, o barão du Prel e o astrônomo Zöllner.(17)


Todo homem sério, que se conserva a igual distância de uma credulidade cega e de uma não menos cega incredulidade, é forçado a reconhecer que as manifestações de que aqui se trata ocorreram em todos os tempos. Encontrá-las-eis em todas as páginas da História, nos livros sagrados de todos os povos, assim entre os videntes da Índia, do Egito, da Grécia e de Roma, como entre os médiuns de nossos dias. Os profetas da Judéia, os apóstolos cristãos, as druidisas da Gália, os inspirados das Cevenas, na época dos Camisardos, tiram suas revelações da mesma fonte que a nossa boa lorena.


A mediunidade sempre existiu, pois que o homem sempre foi espírito e, como espírito, manteve em todas as épocas uma brecha aberta sobre o mundo inacessível aos nossos sentidos ordinários.


Constantes, permanentes, tais manifestações em todos os meios se dão e sob todas as formas, das mais comuns às mais grosseiras, como as das mesas falantes, dos transportes de objetos sem contacto, das casas assombradas, até as mais delicadas e sublimes, com o êxtase ou as altas inspirações, tudo conforme a elevação das inteligências que intervêm.


*


Entremos agora no estudo dos fenômenos que, em avultado número, a vida de Joana d'Arc nos depara. Convém primeiramente notar: graças às suas faculdades psíquicas extraordinárias é que ela pôde conquistar rápido ascendente sobre o exército e o povo. Consideravam-na um ser dotado de poderes sobrenaturais. O exército não passava de um agregado de aventureiros, de vagabundos movidos pela gana da pilhagem. Todos os vícios reinavam naquelas tropas sem disciplina e prontas sempre a debandar. No meio de soldados assim, sem continência, sem vergonha, é que cumpria a uma jovem de dezoito anos viver. De tais brutos, que não respeitavam sequer o nome de Deus,(18) tinha ela que fazer crentes, homens dispostos a sacrificar tudo por uma nobre e santa causa.


Joana soube praticar esse milagre. Acolheram-na a princípio como intrigante, como uma dessas mulheres que os exércitos levam na cauda. Mas, sua linguagem inspirada, seus costumes austeros, sua sobriedade e os prodígios que se operaram logo em torno dela, a impuseram bem depressa àquelas imaginações gastas. O exército e o povo se viam, assim, tentados a encará-la como uma espécie de fada, de feiticeira e lhe davam os nomes dessas formas fantásticas a que atribuem o assombramento das fontes e dos bosques.


O desempenho de sua tarefa não se tornava com isso senão mais difícil. Era-lhe preciso fazer-se ao mesmo tempo respeitada e amada como chefe; obrigar, pelo ascendente, aqueles mercenários a verem na sua pessoa uma imagem da França, da pátria que ela queria constituir.


Pelas predições realizadas, pelos acontecimentos verificados, conseguiu inspirar-lhes absoluta confiança. Chegaram quase a divinizá-la. Sua presença era tida como garantia de bom êxito, símbolo da intervenção celeste. Admirando-a, devotando-se-lhe, mais fiéis se lhe tornaram do que o rei e os nobres. Ao divisarem-na, sopitavam os pensamentos e sentimentos malévolos e nos seus corações se acendiam os da veneração. Todos a consideravam um ser sobre-humano, segundo o testemunho de seu intendente, Jean d'Aulon, no processo. (19) O conde Guy de Laval escrevia à sua mãe, em 8 de junho de 1429, depois de tê-la visto em Salles-sur-Cher, na companhia do rei: “É coisa toda divina vê-la e ouvi-la”.(20)


Sem assistência alguma oculta, como é que uma simples rapariga dos campos houvera podido adquirir tal prestígio, alcançar tais resultados? O que soubera a respeito da guerra na sua meninice: os constantes sobressaltos dos campônios, a destruição das aldeias, os lamentos dos feridos e dos moribundos, o rubro crepitar dos incêndios, tudo isso fora antes de molde a afastá-la da profissão das armas. Era, porém, a escolhida do Alto para levantar a França de sua queda e incutir a noção de pátria em todas as almas. Para atingir esse escopo, maravilhosas faculdades e socorros poderosos lhe foram outorgados.


*


Examinemos de mais perto a natureza e o alcance das faculdades mediúnicas de Joana.


Há, em primeiro lugar, as vozes misteriosas que ouvia, tanto no silêncio dos bosques, como no tumulto dos combates, no fundo da masmorra e até diante dos juízes, vozes freqüentemente acompanhadas de aparições, conforme ela própria o diz, no curso do processo, em doze interrogatórios diferentes. Depois, há os numerosos casos de premonição, isto é, as profecias realizadas, anúncio dos acontecimentos vindouros.


Antes de tudo: são autênticos esses fatos? Nenhuma dúvida é possível. Os textos, os depoimentos aí estão, copiosos; as cartas, as crônicas abundam. (21)


Existe, sobretudo, o processo de Rouen, cujas peças, redigidas pelos inimigos da acusada, dão a seu favor testemunhos ainda mais fortes do que os do Processo de reabilitação. Neste último, os mesmos fatos são atestados sob juramento pelos conhecedores de sua vida, depondo perante os inquisidores, ou em presença do tribunal. (22)


Acima, porém, dos testemunhos, colocaremos a opinião de um contemporâneo, que os resume todos e cuja autoridade é grande. Queremos falar de Quicherat, diretor da Escola de Chartes. Não era um místico, um iluminado, mas homem grave e frio, eminente crítico de História, que se entregou a uma pesquisa aprofundada, toda de erudição, a um exame escrupuloso da vida de Joana d'Arc. Eis aqui a sua apreciação: (23)“Aproveite ou não à Ciência, impossível é deixar de admitir-lhe as visões.”


Acrescentarei: à ciência nova aproveitará, pois todos esses fenômenos, considerados outrora miraculosos, se explicam hoje pelas leis da mediunidade.


Joana era ignorante: por únicos livros tivera a Natureza e o firmamento estrelado.


A Pedro de Versailles, que a interroga em Poitiers sobre o grau de sua instrução, responde: “Não sei o ABC.” Muitos o afirmam no Processo de reabilitação.(24) Entretanto, realizou maravilhosa obra, como igual mulher alguma jamais empreendeu. Para levá-la a bom termo, porá em jogo aptidões e qualidades raras. Iletrada, confundirá e convencerá os doutores de Poitiers. Por seu gênio militar e pela habilidade dos seus planos, adquirirá pronta influência sobre os chefes do exército e os soldados. Em Ruão, fará frente a sessenta eruditos, casuístas destros em sutilezas jurídicas e teológicas; frustrar-lhes-á as ciladas e lhes responderá a todas as objeções. Mais de uma vez os deixará embaraçados pelo poder de suas réplicas, rápidas como relâmpagos, penetrantes quais pontas de espadas.


Como conciliar tão esmagadora superioridade com a falta de instrução? Ah! é que existe outro manancial de ensinamentos que não a ciência da escola! Pela comunhão constante com o mundo invisível, desde a idade de treze anos, quando teve a sua primeira visão, é que Joana alcança as luzes indispensáveis ao desempenho de sua missão espinhosa. As lições dos nossos guias do espaço são mais eficazes do que as de um professor, mais abundantes, sobretudo, em revelações morais. Essas vias de instrução, que se chamam as Universidades e as Igrejas, quase não as praticam; seus representantes pouco lêem nesse “livro de Deus” de que fala Joana, nesse imenso livro do Universo invisível, onde ela haurira sabedoria e luzes! “Há nos livros de Nosso Senhor muito mais do que nos vossos. – O Senhor tem um livro no qual nenhum clérigo jamais leu, por mais perfeito que seja no clericato!” afirma em Poitiers.(25)


Por estas palavras, faz sentir que os mundos ocultos e divinos possuem fontes de verdades infinitamente mais ricas e profundas do que as nascentes em que bebem os humanos, fontes que se abrem por vezes aos simples, aos humildes, aos ignorantes, àqueles que Deus marcou com seu selo, os quais encontram nelas elementos de saber, que excedem quanto o estudo nos pode proporcionar.


A ciência humana nunca é isenta de um certo orgulho. Seus ensinos cheiram quase sempre a convenção, a afetação, a pedantismo. Falta-lhe, de contínuo, clareza, simplicidade. Algumas obras de psicologia, por exemplo, são de tal modo obscuras, complexas, eriçadas de expressões barrocas, que chegam ao ridículo. É divertido apreciar a que esforços de imaginação, a que ginástica intelectual, homens, como o professor Th. Flournoy e o Doutor Grasset, se dão para edificar teorias tão burlescas quanto eruditas. As verdades que promanam das altas revelações aparecem, ao contrário, em traços de luz e, com poucas palavras, pela boca dos humildes, resolvem os mais escabrosos problemas.


“Eu te bendigo, ó meu Pai – exclama o Cristo –, por teres revelado aos pequeninos o que ocultaste aos sábios”.(26)


Bernardino de Saint-Pierre exprime o mesmo pensamento, dizendo: “Para achar a verdade, é preciso procurá-la com um coração simples.”


Era com um coração simples que Joana escutava suas vozes, que as interrogava nos casos importantes e que, sempre confiante na sábia direção delas, se constitui, sob o impulso das potências superiores, um instrumento admirável, rico de preciosas faculdades psíquicas.


Não só vê e ouve maravilhosamente, como também sente pelo tato e pelo olfato as aparições que se apresentam: “Toquei em Santa Catarina, que me apareceu visivelmente”, diz. “Beijaste ou abraçaste Santa Catarina ou Santa Margarida?” perguntam-lhe. – “Abracei-as ambas.” – “Recendiam perfumes!” – “É bom se saiba que recendiam perfumes”. (27)


Noutro interrogatório, exprime-se assim: “Vi São Miguel e os anjos, com os olhos do meu corpo, tão perfeitamente como vos vejo. E, quando se afastavam de mim, eu chorava e bem quisera que me levassem consigo”. (28)


É essa a impressão de todos os médiuns que entrevêem os esplendores do Espaço e os seres radiosos que lá vivem. Experimentam um enlevo que lhes torna mais tristes e duras as realidades deste mundo. Haver partilhado, por um instante, da vida celeste e cair de novo, pesadamente, nas trevas do nosso planeta: que pungente contraste! Mais ainda o era para Joana, cuja alma seleta, depois de se achar, por alguns momentos, no meio que lhe era familiar, donde viera, e de receber dele “grande conforto”, se via novamente em face dos rudes e penosos deveres que lhe corriam.


Poucos homens compreendem estas coisas. As vulgaridades da Terra lhes encobrem as belezas do mundo invisível que os cerca e no qual penetram como cegos na luz. Há, porém, almas delicadas, seres dotados de sutilíssimos sentidos, para as quais o espesso véu da matéria se rasga por segundos e através desses rasgos elas lobrigam um recanto do mundo divino, do mundo das verdadeiras alegrias, das felicidades reais, onde nos encontraremos todos depois da morte, tanto mais livres e venturosos quanto melhor tivermos vivido pelo pensamento e pelo coração, quanto mais houvermos amado e sofrido.


Todavia, não era unicamente sobre esses fatos extraordinários, sobre suas visões e vozes, que Joana acentuava a confiança que punha em seus amigos do Espaço. A razão lhe demonstrava também quão pura e elevada era a fonte de suas inspirações, porquanto aquelas vozes a guiavam sempre para a prática de ações úteis, no sentido do devotamento e do sacrifício. Ao passo que certos visionários se extraviam por entre devaneios estéreis, em Joana os fenômenos psíquicos concorrem todos para a realização de uma grande obra. Daí sua fé inabalável: “Creio tão firmemente – responde aos juízes – nos ditos e feitos de São Miguel que me apareceu, como creio que Nosso Senhor Jesus-Cristo sofreu morte e paixão por nós. E o que me move a crê-lo são os bons conselhos, o conforto e os ensinamentos que me deu”.(29)


Tudo ponderando com seguro critério, é principalmente o lado moral das manifestações que constitui, a seus olhos, uma prova da autenticidade delas. Pelos avisos eficazes, pelo amparo que lhe concediam, pelas sãs instruções que lhe prodigalizavam, reconhece que seus guias são enviados do Alto.


No decurso do processo, como no de sua ação militar, as vozes lhe aconselham o que deve dizer e fazer. Recorre a elas em todos os casos difíceis: “Pedi conselho à voz acerca do que devia responder, dizendo-lhe que, por sua vez, pedisse conselho a Nosso Senhor. E a voz me disse: Responde ousadamente; Deus te ajudará”.(30)


Os juízes a interrogam sobre esse ponto: “Como explicas que as santas te respondam?” – “Quando faço apelo a Santa Catarina – diz Joana –, ela e Santa Margarida apelam para Deus e, depois, por ordem de Deus, me dão a resposta”. (31)


Assim, para os que sabem interrogar o invisível por meio da concentração e da prece, o pensamento divino desce, degrau a degrau, das maiores alturas do espaço até às profundezas da Humanidade. Mas, nem todos o discernem como Joana.


Quando suas vozes emudecem, ela se recusa a responder sobre qualquer questão importante: “Por enquanto, nada obtereis de mim; ainda não tenho a permissão de Deus.”


“Creio que não vos digo tudo o que sei. Porém, muito mais temo cair em falta dizendo qualquer coisa que desagrade às minhas vozes, do que receio vos responder”.(32)


Admirável discrição, que muitos homens bem agiriam imitando, quando as vozes da consciência e do bom senso não lhes ordenam que falem.


Até ao fim de sua vida trágica, Joana mostrará grande amor aos seus guias, inteira confiança na proteção que lhe dispensavam. Mesmo quando pareceu que a abandonavam depois de lhe terem prometido a salvação, nenhuma queixa, nenhuma blasfêmia proferiu. Na prisão, confessa-o ela própria, eles lhe haviam dito: “Serás libertada por uma grande vitória” (33) e, em lugar da libertação, era a morte o que lhe vinha. Seus inquiridores, que nenhum meio de a desesperar desprezavam, insistiam nesse abandono aparente e Joana respondia sem se perturbar: “Nunca praguejei nem de santo, nem de santa.”


A história da boa Lorena apresentava casos de clarividência e de premonição em número bastante elevado para lhe emprestarem, aos olhos de toda gente, um misterioso poder divinatório. Às vezes parece ler no futuro; por exemplo, quando diz ao soldado de Chinon que a injuriara, ao vê-la entrar no castelo: “Ah! tu renegas de Deus e, no entanto, estás tão perto da morte!” Efetivamente, nessa mesma tarde o soldado, por um acidente, morre afogado.(34) Fato idêntico sucede com relação ao inglês Glasdale, no ataque à bastilha da Ponte, diante de Orleães. Ela o intima a se render ao rei dos céus, acrescentando: “Tenho grande compaixão de tua alma!” No mesmo instante, Glasdale cai, armado, no Líger, onde se afoga.(35) Mais tarde, em Jargeau, prevê o perigo que ameaça o duque d'Alençon, cuja vida prometera proteger: “Gentil duque – exclama –, retire-se daí, senão aquela boca de fogo que lá vê lhe dará a morte.”


A previsão era justa, pois o Senhor du Lude, indo ocupar o lugar deixado pelo duque, foi morto pouco depois.(36)


Doutras vezes e com muita freqüência, atesta-o a própria Joana, suas vozes a previnem. Em Vaucouleurs, sem jamais o ter visto, vai direto ao senhor de Baudricourt: “Reconheci-o, graças à minha voz. Foi ela que me disse: Está ali ele!”. (37) Conforme as revelações que tivera, Joana lhe prediz a libertação de Orleães, a sagração do rei em Reims e lhe anuncia a derrota dos Franceses na jornada dos Arenques, no instante mesmo em que acabava de verificar-se.(38)


Em Chinon, levada à presença do rei, não hesitou em descobri-lo entre os trezentos cortesãos no meio dos quais se dissimulara: “Quando fui introduzida no aposento do rei – diz –, logo o reconheci entre os outros, porque a minha voz mo indicou”. (39) Numa entrevista íntima, lembra-lhe ela os termos da prece muda que, sozinho no seu oratório, ele dirigira a Deus.


Suas vozes lhe comunicam que a espada de Carlos Martel está enterrada na Igreja de Santa Catarina de Fierbois e mostram-lha.(40)


É ainda a voz que a desperta em Orleães, quando, extenuada de fadiga, se atira no leito, ignorando o ataque à bastilha de Saint-Loup: “Meu conselho me disse que vá contra os ingleses, exclama de repente. E não me dizíeis que o sangue da França estava sendo derramado.” .(41)


Porque seus guias lho predisseram, sabe que será ferida por um dardo no ataque às Tourelles, a 7 de maio de 1429. Uma carta do encarregado de negócios de Brabante, conservada nos arquivos de Bruxelas e datada de 22 de abril do mesmo ano, escrita, por conseqüência, quinze dias antes do fato, relata essa predição e a maneira pela qual havia de realizar-se. Na véspera do combate, Joana ainda declara: “Amanhã sairá sangue de meu corpo”. (42)


Nessa mesma jornada, prediz, contra toda a verossimilhança, que o exército vitorioso reentraria em Orleães pela ponte, que se achava então destruída. E foi o que se deu.


Libertada a cidade, Joana insiste com o rei para que não defira a partida para Reims, repetindo: “Não durarei mais que um ano, Sire; é preciso, pois, que me aproveitem bem!” (43) Que presciência da curteza de sua carreira!


Por suas vozes foi avisada de que Troyes, em breve, se renderia, assim como, mais tarde, o foi também do seu próprio cativeiro. “Na semana da Páscoa, achando-me junto ao fosso de Melun, minhas vozes me disseram que seria presa antes do dia de São João – refere a acusada aos juízes de Rouen – e como eu lhes pedisse que, quando fosse presa, morresse logo, sem o prolongado tormento da prisão, elas me disseram: Recebe tudo com resignação. É preciso que assim se faça. Mas, não me disseram a hora”. (44)A propósito, citemos, de passagem, esta bela resposta aos seus inquiridores: “Se eu soubera a hora, não me teria ido entregar voluntariamente. Entretanto, teria feito segundo me ordenassem minhas vozes, quaisquer que fossem para mim as conseqüências”. (45)


Conta-se também uma cena tocante passada na igreja de Compienha (Compiègne). Diz ela, chorando, aos que a cercavam: “Bons amigos e queridos filhos, sabei que me venderam e traíram. Dentro em breve, dar-me-ão a morte. Orai por mim!”. (46)


Na prisão, seus guias lhe predizem a libertação de Compienha, (47)o que lhe causa grande alegria. Teve também a revelação do seu fim trágico, sob uma forma que ela não compreendeu, mas cujo sentido seus juízes apreenderam: “O que minhas vozes mais me dizem é que serei salva... Acrescentam: Recebe tudo com resignação, não te aflijas por causa do teu martírio. Virás, enfim, para o reino do paraíso”. (48)


De contínuo, suas vozes a advertem dos conciliábulos secretos dos capitães, ciosos da sua glória, e que dela se ocultam para deliberarem sobre os feitos da guerra. Mas, de súbito, Joana aparece e, conhecendo-lhes de antemão as resoluções, as frustra: “Estivestes no vosso conselho e eu estive no meu. O conselho de Deus se cumprirá, o vosso perecerá”. (49)


Não é, igualmente, às inspirações de seus guias que Joana deve a posse das eminentes qualidades que formam os grandes generais: o conhecimento da estratégia, da balística, a habilidade no emprego da artilharia, coisa inteiramente nova naquela época? Como teria podido saber que os franceses gostam mais de avançar do que de combater por trás das trincheiras? E como explicar de maneira diversa que uma simples camponesa se tenha tornado, de um dia para outro e aos dezoito anos, incomparável comandante de exército, consumado tático?


Sua mediunidade, vê-se, revestia formas variadas. Essas faculdades, disseminadas, fragmentadas, na maior parte dos indivíduos do nosso tempo, nela se acham reunidas, grupadas em possante unidade. Além disso, seu grande valor moral as reforçava. A heroína era a intérprete, o agente desse mundo invisível, sutil, etéreo, que se estende para além do nosso e cujas harmonias e vozes alguns seres humanos percebem.


Os fenômenos que enchem a vida de Joana se encadeiam e concorrem para o mesmo fim. É nítida e precisa a missão que recebeu das altas Entidades e cuja natureza e caráter mais longe procuraremos determinar. Foi anunciada previamente e se cumpriu segundo as linhas principais. Toda a sua história o atesta. Aos juízes de Ruão, dizia: “Vim da parte de Deus; nada tenho que fazer aqui; mandai-me de novo a Deus, de quem vim”.(50)


E quando, na fogueira, as chamas a envolvem e lhe mordem as carnes, ainda exclama: “Sim, minhas vozes eram de Deus! Minhas vozes não me enganaram”.(51)


Poderia Joana mentir? Por ela respondem a sinceridade, a retidão que manifestou em todas as circunstâncias. Uma alma tão leal, que preferiu todos os sacrifícios a renegar da França e de seu rei, uma alma assim não podia degradar-se até à mentira. Há nas suas palavras tal acento de verdade, de convicção, que ninguém, mesmo entre os seus detratores mais ardentes, ousou acusá-la de impostura. Anatole France, que, certo, não a poupa, escreve: “O que, sobretudo, ressalta dos textos é que ela foi uma santa. Foi uma santa, com todos os atributos da santidade no século XV. Teve visões e estas visões não foram nem fingidas, nem forçadas.” E, mais adiante: “Não pode ser suspeitada de mentira”. (52)


Sua lealdade era absoluta; para apoiar o que dizia, não se servia, como tanta gente, de termos excessivos, de expressões descomedidas. “Nunca jurara”, diz uma testemunha no Processo de reabilitação, e, para afirmar, contentava-se com acrescentar: “Sem dúvida”. (53) Estas palavras se encontram também nos interrogatórios do processo de Ruão. Revestiam uma significação particular na sua boca, pronunciadas no tom de franqueza e com aquela fisionomia aberta, que lhe eram peculiares.


Outro ponto de vista: ter-se-ia ela enganado? Seu bom senso, sua lucidez de espírito, seu critério firme, os relâmpagos de gênio que lhe iluminam, aqui e ali, a vida, não permitem que em tal se creia. Joana não era uma alucinada!


Certos críticos, entretanto, o acreditaram. A maior parte dos fisiologistas, por exemplo, Pierre Janet, Tr. Ribot, o Doutor Grasset, aos quais convém juntar alguns alienistas, como os Drs. Lélut, Calmeil, etc., não vêem na mediunidade senão uma das formas da histeria ou da neurose. Para eles, os videntes são enfermos e a própria Joana d'Arc não lhes escapa às apreciações sob este critério. Ainda recentemente, o professor Morselli, no seu estudo Psicologia e Espiritismo, não considerou os médiuns como espíritos fracos ou desequilibrados?


É sempre fácil qualificar de quimeras, de alucinações ou de loucuras os fatos que nos desagradam, ou que não podemos explicar. Nisto, muitos cépticos se consideram pessoas bastante criteriosas, quando não passam de vítimas dos seus preconceitos.


Joana não era neurótica, nem histérica. Robusta, gozava de saúde perfeita. Era de costumes castos e, ainda que de uma beleza plena de atrativos, sua presença impunha respeito, veneração, mesmo aos soldados que lhe partilham da vida. (54) Três vezes: em Chinon, no princípio de sua carreira, em Poitiers e em Ruão, sofreu exame feito por matronas, que lhe atestaram a virgindade.


Suportava, sem fraquejar, as maiores fadigas. “Sucede-lhe passar até seis dias em armas”, escreve, a 21 de junho de 1429, Perceval de Boulainvilliers, conselheiro camarista de Carlos VII. E, quando a cavalo, excitava a admiração de seus companheiros de armas, pelo tempo que podia permanecer assim, sem ter necessidade de apear-se. (55)Muitos depoimentos lhe atestam a resistência física. “Ela se comportava de tal maneira, diz o cavaleiro Thibault d'Armagnac, que não seria possível a qualquer homem melhor atitude no que respeita à guerra. Todos os capitães se maravilhavam das fadigas e trabalhos que suportava”. (56)


O mesmo ocorre com a sua sobriedade: há, sobre esse ponto, numerosos testemunhos, desde o de pessoas que a viram por pouco tempo, como a senhora Colette, até os de homens de seu séquito habitual. Citemos as palavras do pajem, Luís de Contes: “Joana era extremamente sóbria. Muitas vezes, durante um dia inteiro, não comeu mais do que um pedaço de pão. Admirava-me que comesse tão pouco. Quando ficava em casa, só comia duas vezes por dia”. (57)


A rapidez maravilhosa com que a nossa heroína se curava dos próprios ferimentos mostra a sua poderosa vitalidade: alguns instantes, alguns dias de repouso lhe bastam e volta para o campo de batalha. Ferida gravemente, por haver saltado da torre de Beaurevoir, recobra a saúde assim que consegue tomar algum alimento.


Denotarão todos estes fatos uma natureza fraca e neurótica?


E se, das qualidades físicas, passamos às do espírito, a mesma conclusão se impõe. Os numerosos fenômenos dos quais Joana foi o agente, longe de lhe turbarem a razão, como sucede com os histéricos, parece, ao contrário, teremina robustecido, a julgar pelas respostas lúcidas, claras, decisivas, inesperadas, que dá aos seus interrogadores de Ruão. A memória se lhe conservou fiel, o juízo são; manteve a plenitude de suas faculdades e foi sempre senhora de si.


O Dr. G. Dumas, professor da Sorbona, em comentário publicado por Anatole France no fim do seu segundo volume, declara não ter conseguido, pelos testemunhos, descobrir em Joana qualquer dos estigmas clássicos da histeria. Insiste demoradamente sobre a exterioridade dos fenômenos, sobre a clareza objetiva deles, sobre a “independência e autoridade relativas” da inspirada em presença das “santas”. Não lhe parece que suas visões possam ser filiadas a qualquer tipo patológico verificado experimentalmente.


“Nenhum indício – diz por sua vez Andrew Lang – (58)permite supor que Joana, enquanto em comunhão com suas santas, se houvesse achado em estado de dissociação, ou inconsciente do que a cercava. Pelo contrário, vemos que, na cena terrível da abjuração, ela ouve ao mesmo tempo, com igual nitidez, as vozes das santas e o sermão do pregador, cujos erros não teme criticar.”


Acrescentemos que nunca foi vítima de obsessão, pois que seus Espíritos não intervêm senão em certos momentos e sobretudo quando os chama, ao passo que a obsessão se caracteriza pela presença constante, inevitável, de seres invisíveis.


Todas as vozes de Joana tratam da sua grande missão; jamais se ocupam com puerilidades; sempre tem razão de ser o que fazem ouvir, não se contradizem, nem se mostram eivadas das crenças errôneas do tempo, o que teria cabimento se Joana fosse predisposta a sofrer de alucinações. Longe de acreditar em fadas, nas virtudes da mandrágora e em mil outras idéias falsas da época, a donzela demonstra, nos interrogatórios, ignorância a esse respeito, ou exprime o desprezo que vota a tudo isso. (59)


Nada, nela, de sentimentos egoístas, nenhum orgulho, como se nota nos alucinados que, atribuindo grande importância às suas insignificantes pessoas, só vêem à roda de si inimigos e perseguidores. É à França e ao rei que se dirigem seus pensamentos, sob a inspiração divina.


O grande alienista Brierre de Boismont, que se consagrou a um estudo atento da questão,(60) reconhece em Joana uma inteligência superior. Entretanto, qualifica de alucinações os fenômenos de que ela é objeto, mas emprestando-lhes caráter fisiológico e não patológico. Quer com isso dizer que tais alucinações não a impediram de conservar a integridade da razão; seriam fruto de uma exaltação mental, o que todavia nada tem de mórbido. Para ele, a concepção da idéia diretriz, “estimulante poderoso”, se fez imagem no cérebro de Joana, em quem admira uma alma de escol, um desses “mensageiros que nos são enviados do fundo do misterioso infinito”.


Sem ser da mesma opinião do célebre prático da Salpêtrière, quanto às causas determinantes dos fenômenos, o Doutor Dupouy, que os atribui à influência de Entidades celestes, conclui no mesmo sentido. Somente, no seu entender, as alucinações de Joana teriam tido o dom de objetivar as personalidades angélicas que lhe serviam de guias. Poderíamos adotar este modo de ver, pois sabemos que ela considerava suas santas como sendo aquelas cujas imagens adornavam a igreja de Domremy.


Mas, diremos ainda: pode-se atribuir caráter alucinatório a vozes que nos despertam em pleno sono, para prevenir-nos de acontecimentos presentes ou futuros, como foi o caso de Orleães e durante o processo de Joana, em Ruão? a vozes que nos aconselham proceder por forma diversa da que preferimos? Por ocasião de seu cativeiro na torre de Beaurevoir, recebeu bastantes recomendações de seus guias, desejosos de lhe evitarem um erro; no entanto, não puderam impedi-la de saltar do alto da torre, do que teve que se arrepender.


Dizer, com Lavisse, A. France e outros, que a voz ouvida por Joana era a da sua consciência, afigura-se-nos igualmente em contradição com os fatos. Tudo prova que as vozes eram exteriores. O fenômeno nada tinha de subjetivo, pois que ela é despertada, como vimos, aos chamados de seus guias e muitas vezes não apanha mais do que as últimas palavras do que dizem.(61)


Não as escuta bem, senão nas horas de silêncio, conforme o reconhece o próprio Anatole France. (62) “A agitação das prisões e as disputas entre os guardas (63) obstam a que compreenda claramente o que seus guias lhe comunicam.” É, pois, de toda evidência que as palavras vêm de fora; o ruído não embaraça a voz interior, que se percebe no segredo da alma, até nos momentos de tumulto.


Concluamos, pois, de nossa parte, reconhecendo, mais uma vez, em Joana, um grande médium.


Em que pese ao Doutor Morselli (64) e a tantos outros, a mediunidade não se manifesta exclusivamente nos indivíduos de espírito fraco ou de almas inclinadas à loucura. Há talentos de amplas envergaduras, tais como Petrarca, Pascal, Lafontaine, Goethe, Sardou, Flammarion e quantos mais, pensadores profundos, como Sócrates, homens penetrados do espírito divino, santos ou profetas, que tiveram suas horas de mediunidade, nas quais essa faculdade, latente em todos, se revelou, sendo que, nalguns, repetidas vezes.


Nem a altura da inteligência, nem a elevação da alma servem de empecilho a essa espécie de manifestações. Se há muitas produções mediúnicas, cuja forma ou substância deixam a desejar, é que são raras as altas inteligências e os grandes caracteres, qualidades que se achavam reunidas em Joana d'Arc, razão pela qual suas faculdades psíquicas atingiram tão elevado grau de pujança.


Da virgem de Orleães se pode dizer que “realizava o ideal da mediunidade”.


Agora uma outra questão se apresenta e da mais alta importância: Quais eram as personalidades invisíveis que a inspiravam e dirigiam? Por que santas, anjos, arcanjos? Que devemos pensar dessa intervenção constante de São Miguel, Santa Catarina, Santa Margarida?


Para resolver o problema, seria necessário primeiramente analisar a psicologia dos videntes e dos sensitivos e compreender a necessidade, em que eles se vêem, de emprestar às manifestações do Além as formas, os nomes, as aparências que a educação recebida, as influências experimentadas, as crenças do meio e da época em que vivem lhes sugeriram. Joana d'Arc não escapava a essa lei. Servia-se, para traduzir suas percepções psíquicas, dos termos, das expressões, das imagens que lhe eram familiares. É o que fazem os médiuns de todos os tempos. Conforme aos meios, os habitantes do mundo oculto receberão os nomes de deuses, de gênios, de anjos ou demônios, de espíritos, etc.


As próprias inteligências invisíveis, que intervêm ostensivamente na obra humana, se sentem obrigadas a entrar na mentalidade daqueles a quem se manifestam, de adotar as formas e os nomes de entes ilustres, conhecidos deles, a fim de os impressionar, de lhes inspirar confiança, de melhor prepará-los para o papel a que estão destinados.


Em geral, no Além não se liga tanta importância, como entre nós, aos nomes e às personalidades. Lá, se empreendem obras grandiosas e as Potências prepostas à sua realização recorrem aos expedientes reclamados pelo estado de espírito, poder-se-ia dizer de inferioridade e de ignorância, das sociedades e dos tempos em que desejam intervir.


Objetar-me-ão, talvez, que à virgem de Domremy essas Potências sobre-humanas teriam podido revelar sua verdadeira natureza, iniciando-a num conhecimento mais alto, mais largo do mundo invisível e de suas leis. Mas, além de muito demorado e difícil iniciar um ser humano, por melhor dotado que seja, nas leis da vida superior e infinita, que nenhum ainda apreende no conjunto, o mesmo fora que contrariar o fim visado; que tornar, no caso de Joana, irrealizável a obra concebida, obra toda de ação, com o criar, na heroína, um estado de espírito e divergências de vista, que a houveram colocado em oposição à ordem social e religiosa sob a qual era chamada a operar.


Examinando-se com atenção o que diz Joana, com respeito às suas vozes, um fato significativo ressalta logo: é que o Espírito a quem ela dá o nome de São Miguel nunca declarou chamar-se assim.(65)


As duas outras Entidades teriam sido designadas pelo próprio São Miguel, sob os nomes de Santa Catarina e de Santa Margarida.(66) Lembremos que as estátuas destas santas ornavam a igreja de Domremy onde Joana ia orar diariamente. Nas suas longas meditações e nos seus êxtases, tinha quase sempre diante de si as imagens de pedra daquelas duas virgens mártires.


Ora, a existência destas duas personagens é mais do que duvidosa. O que sabemos de ambas consiste em lendas muito contestadas. Cerca do ano 1600, um censor da Universidade, Edmond Richer, que acreditava nos anjos, mas não em Santa Catarina, nem em Santa Margarida, aventa a idéia de que as aparições percebidas pela donzela se fizeram passar, a seus olhos, como sendo as santas que ela venerava desde a infância. “O Espírito de Deus, que governa a Igreja, se amolda à nossa imperfeição”, dizia ele.(67)


Mais tarde, outro doutor da Sorbona, Jean de Launoy, escrevia: “A vida de Santa Catarina, virgem e mártir, é inteiramente fabulosa, do começo ao fim. Não se lhe deve dar crédito algum”. (68) Bossuet, na sua Histoire de France pour 1'instruction du Dauphin, não menciona as duas santas.


Em nossos dias, Marius Sepet, aluno da Escola de Chartes e membro do Instituto, prefaciando a Vie de Sainte Catherine, de Jean Miélot, (69) se manifesta com patentes reservas acerca dos documentos que serviram de base à obra: “A vida de Santa Catarina, diz ele, sob a forma que tomou no manuscrito 6449 do cabedal francês da Biblioteca Nacional, não poderia aspirar a nenhum valor canônico”. (70)


Notemos ainda que o caso mais moderno do cura d'Ars apresenta muita analogia com o de Joana d'Arc. Como a donzela, o célebre taumaturgo era vidente e se entretinha com Espíritos, especialmente com o de Santa Filomena, sua protetora habitual. Sofria também as importunações de um Espírito inferior chamado Grapin. Ora, do mesmo modo que Catarina e Margarida, Filomena é simplesmente um nome simbólico, significando que ama a Humanidade. (71)


*


Se é certo que os nomes atribuídos às Potências invisíveis que influenciaram a vida de Joana d'Arc só têm importância relativa e são, em si, muito contestáveis, outro tanto não se dá, já o vimos, com a realidade objetiva das mesmas Potências e com a ação constante que exerceram sobre a heroína.


Parecendo-nos insuficiente a explicação católica, somos levados a nelas ver Entidades superiores, que resumem, concentram, acionam as forças divinas, nas ocasiões em que o mal se alastra sobre a Terra, quando os homens, por suas obras, entravam ou ameaçam o desenvolvimento do plano eterno.


Essas Potências se nos deparam sob as mais diversas denominações, em épocas bem diferentes. Mas, qualquer que seja o nome que se lhes dê, é fora de dúvida a intervenção que têm tido na História. No século XV, são os gênios protetores da França, as grandes almas que mais particularmente velam pelo nosso país.


Dir-se-á talvez: tudo isso é sobrenatural. Não! por esta palavra o que se designa são as regiões elevadas, as alturas sublimes e, por assim dizer, o coroamento da Natureza. Pela inspiração dos videntes e dos profetas, pelos mediadores, pelos Espíritos mensageiros, a Humanidade esteve sempre em relação com os planos superiores do Universo.


Os estudos experimentais, que vêm sendo feitos há meio século, (72) já lançaram alguma claridade sobre a vida do Além. Assim é que sabemos ser o mundo dos Espíritos povoado de seres em número incalculável, ocupando todos os degraus da escala da evolução. A morte não nos transforma, sob o ponto de vista moral. No espaço, achar-nos-emos de novo com todas as qualidades que houvermos adquirido, mas também com todos os nossos erros e defeitos. Daí resulta que na atmosfera terrestre formigam almas inferiores, sôfregas por se manifestarem aos humanos, o que às vezes torna perigosas as comunicações e exige, da parte dos experimentadores, um preparo laborioso e muito discernimento.


Esses estudos também demonstram que acima de nós há legiões de almas benfazejas e protetoras, as almas dos que sofreram pelo bem, pela verdade e pela justiça e que, esvoaçando sobre a pobre Humanidade, procuram guiá-la pela senda de seu destino. Mais para além dos acanhados horizontes da Terra, uma completa hierarquia de seres invisíveis se distende na luz. É a lendária escada de Jacob, a escada das Inteligências e das Consciências superiores, cujos degraus chegam até aos Espíritos radiosos, até às poderosas Entidades depositárias das forças divinas.


Essas Entidades invisíveis, temo-lo dito, intervêm de quando em quando na vida dos povos, de modo esplendente, como nos tempos de Joana d'Arc. As mais das vezes, porém, a ação que exercem permanece obscura, primeiro para salvaguarda da liberdade humana e, sobretudo, porque, se é indubitável que elas desejam ser conhecidas, não menos certo é quererem que o homem se esforce e se faça apto a conhecê-las.


Os grandes fatos da História, devidos à intervenção delas, são comparáveis às aberturas que se produzem de súbito entre as nuvens, quando o tempo está sombrio, para nos mostrarem o céu profundo, luminoso, infinito, claros esses que, entretanto, logo se cerram, porque o homem ainda não se acha bastante maduro para apanhar e compreender os mistérios da vida superior.


Quanto à escolha das forças e dos meios que os grandes Seres empregam para intervir no campo terrestre, cumpre reconheçamos que o nosso saber é bem fraco para os apreciar e julgar, que nossas faculdades são impotentes para medir os vastos planos do invisível. O que sabemos é que os fatos aí estão, incontestáveis, inegáveis. De longe em longe, através da obscuridade que nos envolve, por entre o fluxo e refluxo dos acontecimentos, nas horas decisivas, quando a Humanidade se desencaminha, então, uma emanação, uma personificação da Potência suprema desce, para lembrar aos homens que, acima do mundo em que se debatem, recursos infinitos existem, que eles podem atrair a si por seus pensamentos e apelos, e se grupam sociedades de almas, que eles alcançarão um dia por seus merecimentos e esforços.


A intervenção, na obra humana, das altas Entidades, a que chamaremos os anônimos do espaço, constitui uma lei profunda, sobre a qual cremos dever insistir ainda, procurando torná-la mais compreensível.


Em geral, já por mais de uma vez o dissemos, os Espíritos superiores que se manifestam aos homens não se nomeiam, ou, se o fazem, tomam de empréstimo nomes simbólicos, que lhes caracterizam a natureza, ou o gênero da missão em que foram investidos.


Mas, por que, ao passo que o homem neste mundo se mostra tão cioso de seus menores méritos, tão apressurado em ligar seu nome às obras mais efêmeras, os excelsos missionários do Além, os gloriosos mensageiros do invisível se obstinam em guardar o incógnito, ou em usar de nomes alegóricos? É que bem diferentes são as regras do mundo terrestre e as dos mundos superiores, onde se movem os Espíritos de redenção.


Aqui, a personalidade prima e absorve tudo. O eu tirânico se impõe: é sinal da nossa inferioridade a fórmula inconsciente do nosso egoísmo. Sendo imperfeita e provisória a presente condição humana, é lógico que todos os atos do homem gravitem ao redor de sua individualidade, isto é, do eu, que mantém e assegura a identidade do ser, no estádio inferior de sua evolução, através das flutuações do espaço e das vicissitudes do tempo.


Nas altas esferas espirituais dá-se o contrário. A evolução se opera sob formas mais etéreas, formas que, em certa altura, se combinam, associam e realizam o que se poderia chamar a compenetração dos seres.


Quanto mais o Espírito sobe e progride na hierarquia infinita, mais se desbastam os ângulos de sua personalidade, mais o seu eu se dilata e expande na vida universal, sob a lei da harmonia e do amor. Sem dúvida, a identidade do ser permanece, porém sua ação se confunde cada vez mais com a atividade geral, isto é, com Deus, que, em realidade, é o ato puro.


Consistem o progresso infinito e a vida eterna em nos aproximarmos continuamente do Ser absoluto, sem jamais o alcançarmos, em confundirmos cada vez mais plenamente a obra que nos é própria com a obra eterna.


Chegado a tão elevados cumes, o Espírito não mais é designado por meio de tal ou tal nome; já não é um indivíduo, uma pessoa, e sim uma das formas da Atividade infinita. Chama-se Legião. Pertence a uma escala de forças e de luzes, tal como uma parcela da chama pertence ao foco que a engendra e alimenta. É parte integrante de imensa associação de Espíritos harmonizados entre si por leis de afinidade luminosa, de sinfonia intelectual e moral, pelo Amor que os identifica. Fraternidade sublime, ante a qual a Terra não passa de pálido e fugidio reflexo!


Por vezes, desses grupos harmoniosos, dessas plêiades rutilantes, um raio vivo se destaca, uma forma radiosa se separa e vem, qual projeção de luz celeste, explorar, iluminar os recônditos de nosso escuro mundo. Ajudar a ascensão das almas, fortalecer uma criatura em hora de grande sacrifício, amparar a fronte de um Cristo na agonia, salvar um povo, resgatar uma nação prestes a perecer: tais as missões incomparáveis que esses mensageiros do Além descem a cumprir.


A lei da solidariedade exige que os entes superiores atraiam a si os Espíritos jovens ou retardados. Assim, uma imensa cadeia magnética se desenrola pelo incomensurável Universo e ata as almas e os mundos.


E, como a sublimidade da grandeza moral consiste em fazer o bem por amor do bem, sem propósito egoísta, os Espíritos benfeitores obram sob o duplo véu do silêncio e do incógnito, a fim de que a glória e o mérito de seus atos se reportem só a Deus e nele se reintegrem...


Desta maneira se explicam as visões de Joana, suas vozes, as aparições do arcanjo e das santas, que nunca existiram como personalidades individuais, batizadas com aqueles nomes, mas que, entretanto, são realidades vivas, seres luminosos, destacados dos centros divinos e que fizeram dela a libertadora de seu país.


Miguel, Micaël, a força de Deus; Margarida, Margarita, a pérola preciosa; Catarina, Katarina, a virgem pura: todos nomes simbólicos, que caracterizam uma beleza moral, uma força superior e refletem uma cintilação de Deus.


*


Joana d'Arc era, pois, um intermediário de dois mundos, um médium poderoso. Por isso, foi martirizada, queimada. Tal, em regra, a sorte dos enviados do Alto; expõem-se às perseguições dos homens, porque estes não querem ou não podem compreendê-los. Os exemplos que dão e as verdades que espalham são um óbice aos interesses terrenos, uma condenação das paixões ou dos erros humanos.


O mesmo ocorre em nossos dias. Conquanto menos bárbara do que a Idade Média, que os lançava em massa às fogueiras, nossa época ainda persegue os agentes do Além. Eles se vêem quase sempre repudiados, desprezados, escarnecidos. Falo dos médiuns sinceros e não dos simuladores, que são numerosos e se insinuam por toda parte. Esses que tais prostituem uma das coisas mais respeitáveis que há no mundo; mas, por isso mesmo, assumem pesadas responsabilidades para o futuro. E como tudo se paga, cedo ou tarde, todos os nossos atos, bons ou maus, recaem sobre nós com as suas conseqüências. É a lei do destino.(73)


As manifestações do mundo invisível são constantes, dizíamos; porém, não são iguais. O embuste, o charlatanismo, às vezes, se misturam com a inspiração; ao lado de Joana d'Arc encontrareis Catarina de La Rochelle e Guilherme, o pastor, impostores ambos. Há também médiuns reais, que se enganam a si mesmos e obram, em dadas ocasiões, sob o império da auto-sugestão. A fonte nem sempre é pura; a visão é algumas vezes confusa. Há, todavia, fenômenos tão brilhantes, que não permitem a dúvida, quais os fatos mediúnicos que ilustram a vida de Joana d'Arc.


A mediunidade, como todas as coisas, apresenta uma diversidade infinita, uma gradação, uma espécie de hierarquia. Quase todos os grandes predestinados, os profetas, os fundadores de religião, os mensageiros da verdade, todos os que proclamaram os princípios superiores de que se tem nutrido o pensamento humano, foram médiuns, pois que suas vidas estiveram em contínuas relações com os altos círculos espirituais.


Demonstrei algures,(74) apoiando-me em testemunhos abundantes e precisos, que o gênio, sob diversos pontos de vista e em muitos casos, pode ser considerado um dos aspectos da mediunidade. Os homens geniais, na maior parte, são inspirados, na mais elevada acepção desta palavra. Suas obras são como luzeiros que Deus acende na noite dos séculos, para clarear a marcha da Humanidade. Depois da publicação do livro que acima citei, colhi novos documentos em apoio dessa tese. Mais adiante mencionarei alguns.


Toda a filosofia da História se resume em duas palavras: a comunhão do visível e do invisível, que se exprime pela alta inspiração. Os homens de gênio, os grandes poetas, os sábios, os artistas, os inventores célebres, todos são, no mundo, executores do plano divino, desse plano majestoso de evolução, que carrega a alma para os pináculos da vida universal.


De algumas vezes, as nobres Inteligências que presidem a essa evolução se humanizam para poderem exercer ação mais eficaz e mais direta. Tendes então Zoroastro, o Buda e, acima de todos, o Cristo. De outras, inspiram e sustentam os missionários encarregados de dar mais viva impulsão aos vôos do pensamento. Moisés, São Paulo, Maomé e Lutero foram deste número. Mas, em todos os casos, a liberdade humana é respeitada. Daí os múltiplos entraves com que os grandes Espíritos topam no caminho.


O fato mais saliente, entre os sucessos que assinalam a vida desses mensageiros do Alto, é a idéia religiosa sobre a qual se apóiam, idéia que basta para lhes exaltar a coragem e para congregar em torno deles, humildes quase todos e não dispondo de nenhuma força material, imensas multidões, prontas a disseminar os ensinamentos cuja grandeza sentiram.


Todos hão falado de suas comunicações com o invisível; todos tiveram visões, ouviram vozes e se reconheceram simples instrumentos da Providência, para o desempenho de uma missão. Sós, entregues a si mesmos, nenhum êxito teriam conseguido; a influência do Alto era necessária, indispensável ao triunfo completo da idéia que defendiam e contra a qual se encarniçavam tantos inimigos.


Também a filosofia conta gloriosos inspirados:


Sócrates, como Joana d'Arc, percebia vozes, ou, antes, uma voz, a de um Espírito familiar, a que ele chamava seu demônio,(75) voz que se fazia ouvir em todas as circunstâncias.


No Théagès de Platão se lê que Timarco houvera evitado a morte, se escutasse a voz desse Espírito: “Não vás – aconselha-o Sócrates, ao levantar-se ele do banquete com Filêmon, seu cúmplice e o único sabedor de suas intenções de matar Nicias – não vás: a voz me diz que te retenha.” Se bem que advertido mais duas vezes, Timarco partiu, porém saiu-se mal da empresa e foi condenado à morte. Na hora do suplício, reconheceu, embora demasiado tarde, que devera ter obedecido à voz: “Oh! Clitômaco! – diz ele ao irmão –, vou morrer por não haver dado ouvidos ao que me aconselhava Sócrates.”


Um dia, a voz recomenda ao filósofo que não vá mais longe pela estrada por onde passeava com alguns amigos. Estes se recusam a atendê-lo; continuam a caminhar e encontram um rebanho que os derruba e pisa.


Depois de reconhecer bastas vezes o acerto dos conselhos que se lhe eram ditados pela voz, inteira razão tinha Sócrates para acreditar nela e fazer sentir a seus amigos que, “tendo-lhes comunicado as predições que recebia, jamais verificara a inexatidão de alguma.”


Recordemos ainda a sua declaração solene diante do tribunal dos Efetos, quando para ele se agita a questão de vida ou de morte:


“Esta voz profética do demônio, que nunca deixou de fazer-se ouvir durante todo o curso de minha existência, que jamais deixou, até nas circunstâncias mais comezinhas, de me desviar do que me pudera causar dano, eis que esse deus se cala, agora que me sucedem coisas, que poderiam ser encaradas como o pior dos males. Por que isto? É que, muito verossimilmente, o que ora acontece é um bem para mim. Sem dúvida, nos enganamos, supondo ser a morte uma desgraça!”


Na França, também os filósofos foram visitados pelo Espírito: Pascal passava horas em êxtase; a Recherche de la Vérité, de Malebranche, foi escrita em plena escuridão; e Descartes nos conta como, por súbita intuição, rápida qual relâmpago, concebeu a idéia da Doute méthodique, sistema filosófico a que devemos a libertação do pensamento moderno. Nos seus Annales Médico-psychologiques,(76) diz Brierre de Boismont: “Descartes, ao cabo de longo repouso, era instado por invisível pessoa para continuar as pesquisas da verdade.”


Schopenhauer, na Alemanha, igualmente reconhece haver sofrido a influência do Além: “Meus postulados filosóficos, diz ele, se produziram em mim sem que eu nisso interviesse, nos momentos em que tinha a vontade como que adormecida... Minha pessoa era também por assim dizer estranha à obra.”


Quase todos os poetas de renome gozaram de uma assistência invisível. Dentre eles, citemos unicamente(77) Dante e Tasso, Schiller e Goethe, Pope, (78) Shakespeare, Shelley, Camões, Victor Hugo, Lamartine, Alfred de Musset, (79) etc.


Entre os pintores e os músicos, Rafael, Mozart, Beethoven e outros encontrariam lugar aqui, pois que, sem cessar, a inspiração se derrama em abundantes jorros sobre a Humanidade.


Diz-se constantemente: “Estas idéias andam no ar.” Andam, com efeito, porque as almas do espaço as sugerem aos homens. É lá que se devem procurar as origens dos fortes movimentos de opinião em todos os domínios.


Cumpre, pois, reconhecê-lo: o fenômeno da mediunidade enche todas as eras. Toda a História se aclara pela luz. Aqui se concentra numa personalidade eminente e brilha com vivo fulgor: é o caso de Joana d'Arc. Ali se dissemina, repartida por grande número de intérpretes, como na época atual.


A mediunidade há sido repetidamente a inspiradora do gênio, o meio que Deus emprega para elevar e transformar as sociedades. No século XV, serviu para tirar a França do abismo de males em que se precipitara.


Hoje, é como um sopro novo que passa por sobre o mundo, para restituir a vida a tantas almas adormecidas na matéria, a tantas verdades que jazem na sombra e no esquecimento!


Os fenômenos de visão, de audição, as aparições de defuntos, as manifestações dos invisíveis pela incorporação, a escrita, a tiptologia, etc. vão sendo inúmeros; multiplicam-se cada dia em torno de nós.


As pesquisas de muitas sociedades de estudos, as experiências e os testemunhos de sábios eminentes, de publicistas de primeira ordem, cujos nomes temos declinado, não deixam dúvida sobre a realidade desses fatos. Eles foram observados em condições que desafiam qualquer mistificação. Mencionaremos apenas alguns dos mais recentes, entre os que apresentam analogias com os da vida de Joana d'Arc.


Há primeiramente as vozes:


Em A Personalidade Humana, F. Myers trata da que Lady Caidly ouviu, numa circunstância em que sua existência perigava.


François Coppée fala igualmente de uma voz misteriosa que o chamava pelo nome em certos momentos bastante graves de sua vida, quando, deitado, suas preocupações não lhe permitiam adormecer. Afirma ele: “Seguramente não durmo nesse momento; e a prova é que, mau grado à forte emoção que então experimento, sempre respondi logo: “Quem é? Quem me fala?” Porém, nunca a voz acrescentou coisa alguma ao seu simples chamado”.(80)


No mês de maio de 1897, o Senhor Wiltshire foi despertado alta madrugada, ouvindo seu nome pronunciado por uma pessoa invisível. Como a voz insistisse, ele teve a impressão de um perigo imediato na vizinhança. Acabou por se levantar e sair; chegou precisamente a tempo de salvar a vida a uma jovem que tentara afogar-se.(81)


Na Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, (82) o Dr. Breton, médico da Marinha e presidente da Sociedade de Estudos Psíquicos de Nice, refere o seguinte fato:


“A Srta. Lola, jovem russa, habitando uma casa de campo, pertencente à sua família, na Rússia, vê em sonho entrar-lhe a mãe no quarto e gritar: “Lola, não tenhas medo, a granja está incendiada!” Na noite seguinte, a Srta. Lola é bruscamente acordada por sua mãe, que, penetrando-lhe em pessoa no quarto, grita: “Lola, não tenhas medo, a granja está incendiada!” exatamente as mesmas palavras que ouvira sonhando. A Srta. Lola se casa, torna-se esposa do Senhor de R., oficial russo. Morre-lhe o sogro. Algum tempo depois, a jovem Sra. de R. acompanha a sogra ao cemitério, para, numa capela de família, orar sobre o túmulo do defunto. Ajoelhada e orando, ouve distintamente uma voz dizer-lhe: “Tu também ficarás viúva, mas não terás a consolação de orar sobre o túmulo de meu filho.” Ouvindo isso, a moça desmaiou; acode-lhe a sogra e, logo voltando a si, ela refere a causa de sua emoção.


“Estala a guerra russo-japonesa, o coronel de R. recebe ordem de seguir. Parte e sucumbe na Manchúria. Seu corpo, numa ambulância, é transportado com outros para Mukden, a fim de ser enviado para a Rússia. Mas, o destacamento que os conduzira teve que abandoná-los durante a retirada geral do exército russo. Não obstante as inúmeras investigações efetuadas, nunca se pôde saber o que fora feito daqueles corpos.


“A profecia do Espírito, pai do coronel de R., se cumprira: a jovem viúva não poderá jamais orar sobre o túmulo do marido.”


Falemos agora das aparições, que não são raras na época presente e cuja autenticidade, nalguns casos, se tem podido firmar por meio da fotografia.


A Revue de 15 de janeiro de 1909 traz a narrativa de um fato deste gênero, feito por W. Stead, o grande publicistas inglês, tão conhecido pela sua lealdade, como pelo seu desinteresse e ainda pela sua coragem. Exigisse-o a verdade e vê-lo-íamos em qualquer ocasião enfrentar toda a Inglaterra. É sabido que, com grave dano para seus interesses pessoais, esquecendo os muitos milhões que herdaria de Cecil Rhodes, ousou apontar publicamente o poderoso milionário como um dos principais responsáveis pela guerra sul-africana, chegando a reclamar que lhe fosse aplicada a pena de trabalhos forçados (hard labour).


No decurso dessa mesma guerra, W. Stead se dirigiu ao gabinete de um fotógrafo muito ignorante, mas dotado de dupla vista, para experimentar o que poderia obter, pois que o estudo do mundo oculto o atraía vivamente. Diante do fotógrafo e de Stead surgiu uma aparição, que já dias antes se mostrara ao primeiro. Convencionaram fotografá-la com o escritor. Durante a operação, respondendo a uma pergunta, a personagem invisível aos olhos humanos disse chamar-se Piet Botha. Entre todos os Botha conhecidos de Stead, nenhum havia com aquele prenome. Efetivamente, a seu lado se via muito nítida, na fotografia, a figura de um boer.


Quando, concluída a paz, o General Botha veio a Londres, W. Stead lhe enviou a imagem obtida. No dia seguinte recebeu a visita de um dos delegados da África do Sul, o Sr. Wessels, que, muito admirado, lhe disse “Este homem nunca o conheceu! Jamais pôs pé na Inglaterra. É meu parente e tenho dele um retrato em minha casa!” “Morreu?” perguntou-lhe Stead. “Foi o primeiro comandante boer morto no cerco de Kimberley, respondeu-lhe o interlocutor; chamava-se Petrus Botha, mas nós o tratávamos abreviadamente por Piet.”


Os outros delegados dos Estados livres também reconheceram na fotografia o guerreiro boer.


Não raro as aparições se apresentam a crianças, incapazes de qualquer enredo, de qualquer fraude, e essa circunstância milita fortemente a favor da autenticidade desejada em tais casos.


Os Annales des Sciences Psychiques, de 1 a 16 de fevereiro de 1909, citam muitos desses fatos. Num deles, é protagonista uma menina de dois anos e meio que, por diversas vezes e em diferentes lugares, vê uma irmãzinha que lhe morrera havia algum tempo e estende-lhe a mão. Noutro, figura uma criança de três anos que, por ocasião da morte de um irmão, vê uma de suas tias já falecida e corre para ela, acompanhando-a para onde quer que se dirija o vulto.


Brierre de Boismont, nos Annales Médico-Psychologiques, 1851,(83) narra o seguinte:


“Um rapaz de dezoito anos, sem nenhuma tendência para a exaltação, para o romanesco, ou para as superstições, fora habitar em Ramsgate por causa da saúde. Indo passear a uma das aldeias próximas, entrou, ao cair da tarde, numa igreja, e ficou transido de pavor ao dar com o espectro de sua mãe, que falecera meses antes, em conseqüência de uma enfermidade muito dolorosa, que infundia compaixão a quantos lhe rodeavam o leito. A aparição se conservou imóvel durante um tempo considerável entre a parede e o rapaz, que, afinal, fugiu para casa, aonde chegou quase desfalecido. Acontecendo repetir-se o fenômeno por muitas noites consecutivas, no seu próprio aposento, ele se sentiu doente e cuidou sem demora de regressar a Paris, onde residia seu pai, ao qual resolveu nada dizer da visão, com receio de aumentar a dor que o acabrunhava desde que perdera a esposa adorada.


Obrigado a dormir no quarto do pai, causou-lhe surpresa haver aí uma luz acesa durante toda a noite, o que não era dos hábitos nem do gosto de qualquer dos dois. Ao cabo de muitas horas de insônia produzida pela claridade, o rapaz levantou-se para apagar a luz. Imediatamente o pai despertou em grande agitação e lhe ordenou que tornasse a acendê-la, o que o moço fez, muito admirado da irritação do velho e do terror que lhe alterava a fisionomia. Inquirindo do motivo de tanto pavor, obteve apenas uma resposta vaga e a promessa de que a explicação do fato lhe seria revelada mais tarde.


Passada uma semana, quando muito, depois dessa ocorrência, o rapaz, não podendo dormir pelo incômodo que lhe causava a luz, aventurou segunda vez apagá-la. Mal o fizera, eis que o pai salta do leito, agitado, a tremer convulso, censura-lhe a desobediência e novamente acende a lâmpada. Confessou então que, estando no escuro, o fantasma da mulher lhe aparecia e se conservava imóvel, para só desaparecer quando o quarto se iluminava.


Profundamente impressionado com o que ouvira e temendo aumentar a aflição ao pai, se lhe contasse a aventura de Ramsgate, o mancebo pouco tempo depois deixou Paris e foi para uma cidade do interior, a sessenta milhas de distância, visitar um irmão que aí se achava num internato e ao qual nada comunicara do que lhe sucedera, receando o ridículo.


Apenas entrara e trocara os cumprimentos de uso, o filho do diretor do internato o interroga: “Seu irmão já alguma vez manifestou sintomas de loucura? A noite passada ele desceu em camisa, fora de si, declarando ter visto o Espírito da mãe, acrescentando que não ousava mais voltar para o quarto e desmaiou de medo.”


Poderíamos enumerar muitos outros fatos da mesma natureza. Os habitantes do espaço não desdenham um só dos meios de nos indicarem e demonstrarem que a sobrevivência é uma realidade. Os Espíritos superiores dão acentuada preferência ao fenômeno da incorporação, por ser o que lhes permite obrar mais conscientemente nas manifestações, o que lhes faculta mais amplos recursos intelectuais. Na incorporação, o médium, imerso em profundo sono, por efeito de uma ação magnética invisível, abandona o organismo às Entidades que se querem manifestar, as quais, apoderando-se dele, entram em relação conosco, mediante o emprego da voz, dos gestos e das atitudes. Tão sugestiva e imponente é às vezes a linguagem de que usam, que, por ela, sem sombra de dúvida, se lhes reconhecem o caráter, a natureza, a identidade. Tanto tem de fácil a imitação dos fenômenos físicos, tais como as mesas falantes, a escrita automática, o aparecimento de fantasmas, quão difícil, se não impossível, se mostra a simulação das coisas de elevada ordem intelectual, pois que o talento não é imitável e ainda menos o gênio. Muitas ocasiões temos tido de assistir a cenas desse gênero e sempre nos deixaram funda impressão. Viver, um momento que seja, na intimidade dos grandes Seres, vale por uma das raras felicidades concedidas ao homem neste mundo. Graças à mediunidade de incorporação é que temos podido comunicar com os Espíritos guias, com a própria Joana, e receber deles os ensinos e as revelações que consignamos em nossas obras.


Todavia, essa faculdade mediúnica, constituindo para os experimentadores uma fonte de gozo, não dá motivo de satisfação ao médium, que, ao despertar, nenhuma lembrança conserva do que se passou, enquanto seu Espírito esteve ausente do corpo cedido a outro.


Uma imensidade de pessoas tem o dom da mediunidade em estado latente. Por toda parte, nas moças, nos rapazes, nas meninas, se encontram em gérmen faculdades sutis e, em elaboração, poderosos fluidos, capazes de servirem de ligação entre o cérebro humano e as inteligências do espaço. Ainda nos faltam, porém, escolas e métodos para desenvolver cientificamente e com perseverança tão inestimáveis elementos e assim valorizá-los, tornando-os capazes de produzir todos os frutos que poderiam dar e que colheríamos, se não fora a carência, ainda reinante, de preparo metódico e de paciente estudo. Infelizmente, em vez de frutos, o que com desconsoladora freqüência se observa é que, à mingua de saber e de um trabalho regular, os promissores embriões secam e só flores envenenadas dão.


Pouco a pouco, entretanto, uma ciência nova e uma nova crença despontam e se propagam, levando a todos os homens o conhecimento das leis que regem o universo invisível e os meios de bem cultivarem as preciosas faculdades mediúnicas, transformando-as em instrumento das grandes Almas depositárias dos segredos do Além. Os experimentadores, em conseqüência, terão que renunciar aos acanhados pontos de vista em que se colocam, aos processos rotineiros de uma ciência que já envelheceu, para se consagrarem à utilização dos poderes do espírito, mediante a elevação do pensamento, que é o motor supremo, o traço de união entre os mundos divinos e as esferas inferiores. E desde logo verão que um raio de luz desce do Alto para lhes fecundar as pesquisas e verificarão que o estudo dos grandes problemas filosóficos, a prática do dever, a dignidade e a retidão da vida são as condições essenciais de bom êxito. Em matéria de experimentação psíquica, além da ciência e do método, elementos indispensáveis, prodigiosa é a importância dos surtos generosos da Alma por meio da prece. Eles constituem o ímã, a corrente fluídica que atraem as potências benfazejas e afastam as influências funestas, como o demonstra sobejamente a vida inteira de Joana.


No dia em que estiverem preenchidas todas essas condições, o Novo Espiritualismo terá entrado plenamente no caminho de seus destinos e, para tantas crenças que oscilam ao embate das paixões, como para a alma humana que se chafurda na materialidade, por entre o rebaixamento geral dos caracteres e das consciências, será um meio de salvação, uma força, uma fé vivaz e ativa, que unirá o Céu à Terra e enlaçará as almas e os mundos numa comunhão eterna e infinita.


    

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