Infância de Joana d’Arc


III


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Ao som plangente do Ave-Maria,

Vibra a memória sua e do Céu irradia!


Saint-Yves d’Alveydre


Ao pé das colinas que bordam o Mosa, algumas choupanas se grupam em volta de modesta igreja; para cima e para baixo, verdes campinas se estendem, que o riozinho de límpidas águas rega. Ao longo das vertentes, sucedem-se plantações e vinhedos, até à floresta profunda, que se eleva qual muralha em frente dos outeiros, floresta cheia de murmúrios misteriosos e de gorjeios de pássaros, donde surgem por vezes, de improviso, os lobos, terror dos rebanhos, ou os homens de guerra, saqueando e devastando, mais perigosos que as feras.


É Domremy, aldeia ignorada até então, mas que, pela criança a cujo nascimento assistiu em 1412, se vai tornar célebre no mundo inteiro.


Lembrar a história dessa criança, dessa donzela, constitui ainda o melhor meio de refutar os argumentos de seus detratores. É o que, antes de tudo, faremos, apegando-nos de preferência às circunstâncias, aos fatos que hão permanecido na obscuridade, alguns dos quais nos foram revelados por via mediúnica.


Numerosas obras, primores da ciência e de erudição, se têm escrito sobre a virgem de Lorena. Longe de mim a pretensão de igualá-las. Este livro se distingue de tais obras por um traço característico; ilumina-o, aqui e ali, o pensamento da heroína. Graças às mensagens obtidas dela, em condições satisfatórias de autenticidade, mensagens que se encontram sobretudo na segunda parte do volume, ele se torna como que um eco de sua própria voz e das vozes do Espaço. É por semelhante título que se recomenda a atenção do leitor.


Joana não descendia de alta linhagem; filha de pobres lavradores, fiava a lã junto de sua mãe, ou guardava o seu rebanho nas veigas do Mosa, quando não acompanhava o pai na charrua. *


* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. I, págs. 80, 106, etc.


Não sabia ler nem escrever; * ignorava todas as coisas da guerra. Era uma boa e meiga criança, amada por todos, especialmente pelos pobres, pelos desgraçados, aos quais nunca deixava de socorrer e consolar. Contam-se, a esse respeito, anedotas tocantes. Cedia de boamente a cama a qualquer peregrino fatigado e passava a noite sobre um feixe de palha, a fim de proporcionar descanso a anciães extenuados por longas caminhadas. Cuidava dos enfermos, como por exemplo do pequeno Simon Musnier, seu vizinho, que ardia em febre; instalando-se lhe à cabeceira, velava-lhe o sono.


* Ver, por exemplo, J. Fabre – Processo de reabilitação, t. II, pág. 145.


Cismadora, gostava, à noite, de contemplar o céu rutilante de estrelas, ou, então, de acompanhar, de dia, as gradações da luz e das sombras. O sussurrar do vento nas ramagens ou nos arbustos, o rumorejo das fontes, todas as harmonias da Natureza a encantavam. Mas, a tudo isso, preferia o toque dos sinos. Era-lhe como que uma saudação do Céu à Terra. E qualquer que fosse o acidente do terreno onde seu rebanho se abrigasse, lá lhes ela ouvia as notas argentinas, as vibrações calmas e lentas, anunciando o momento do regresso, e mergulhava numa espécie de êxtase, numa longa prece, em que punha toda a sua alma, ávida das coisas divinas. Mau grado à pobreza, achava meio de dar ao sineiro da aldeia alguma gratificação para que prolongasse, além dos limites habituais, a canção de seus sinos. *


* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. I, pág. 106.


Penetrada da intuição de que sua vinda ao mundo tivera um fim elevado, afundava-se, pelo pensamento, nas profundezas do Invisível, para discernir o caminho por onde deveria enveredar. “Ela se buscava a si mesma”, diz Henri Martin. *


* Histoire de France, t. VI, pág. 140.


Ao passo que, entre seus companheiros de existência, tantas almas se mantêm fechadas e, por assim dizer, extintas na prisão carnal, todo o seu ser se abre às altas influências. Durante o sono, seu Espírito, liberto dos laços materiais, se libra no espaço etéreo; apercebe-lhe as intensas claridades, retempera-se nas possantes correntes de vida e de amor que aí reinam, e, ao despertar, conserva a intuição das coisas entrevistas. Assim, pouco a pouco, por meio desses exercícios, suas faculdades psíquicas despertam e crescem. Bem cedo vão entrar em ação.


No entanto, essas impressões, esses cismares não lhe alteravam o amor ao trabalho. Assídua em sua tarefa, nada desprezava para satisfazer aos pais e a todos aqueles com quem lidava. “Viva o trabalho!” dirá mais tarde, afirmando assim que o trabalho é o melhor amigo do homem, seu amparo, seu conselheiro na vida, seu consolador na provação, e que não há verdadeira felicidade sem ele. “Viva o trabalho!” é a divisa que sua família adotará e mandará inscrever-lhe no brasão, quando o rei a houver feito nobre.


Até nas insignificantes minúcias da existência de Joana se manifestam um sentimento muito vivo do dever, um juízo seguro, uma clara visão das coisas, qualidades que a tornam superior aos que a cercam. Já se reconhece ali uma alma extraordinária, uma dessas almas apaixonadas e profundas, que descem à Terra para desempenhar elevada missão. Misteriosa influência a envolve. Vozes lhe falam aos ouvidos e ao coração; seres invisíveis a inspiram, dirigem-lhe todos os atos, todos os passos. E eis que essas vozes comandam. Ordens superiores se fazem ouvir. É-lhe preciso renunciar à vida tranquila. Pobre menina de dezessete anos, deverá afrontar o tumulto dos acampamentos! E em que época! Numa época bárbara em que, quase sempre, os soldados são bandidos. Deixará tudo: sua aldeia, seus pais, seu rebanho, tudo o que amava, para correr em socorro da França que agoniza. À boa gente de Vaucouleurs que se apiada de sua morte, que responderá? “Foi para isto que nasci!”


A primeira visão se lhe produziu num dia de verão, ao meio-dia. O céu era sem nuvens e o Sol derramava sobre a Terra modorrenta todos os encantos de sua luz. Joana orava no jardim contíguo à casa de seu pai, perto da igreja. Escutou uma voz que lhe dizia: “Joana, filha de Deus, sê boa e cordata, frequenta a igreja, * põe tua confiança no Senhor”. ** Ficou atônita; mas, levantando o olhar, viu, dentro de ofuscante claridade, uma figura angélica, que exprimia ao mesmo tempo a força e a doçura e se mostrava cercada de outras formas radiantes.


* Naqueles tempos, o Catolicismo era a forma religiosa mais espalhada e quase a única mediante a qual poderiam as almas unir-se a Deus. Eis porque o Espírito, que se anunciava sob o nome de São Miguel, subordinando-se às vistas do século para melhor atingir o seu fim, não podia ter outra linguagem. Ver cap. XV: “Joana d’Arc e a idéia de religião”.


** Henri Martin – Histoire de France, t. VI, pág. 140.


Doutra vez, o Espírito, o arcanjo São Miguel, e as santas que o acompanhavam, falam da situação do país e lhe revelam a missão. “É preciso que vás a socorro do delfim, para que, por teu intermédio, ele recobre o seu reino”. * Joana a princípio se escusa: “Sou uma pobre rapariga, que não sabe cavalgar, nem guerrear!” “Filha de Deus, vai, serei teu amparo”, responde a voz.


* Ibidem, t. VI, pág. 142.


Pouco a pouco seus colóquios com os Espíritos se tornavam mais frequentes; não eram, porém, de longa duração. Os conselhos do Alto são sempre breves, concisos, luminosos. É o que ressalta de suas respostas nos interrogatórios de Rouen. “Que doutrina te revelou São Miguel?” perguntam-lhe. “Sobre todas as coisas, dizia-me: Sê dócil e Deus te ajudará...” * Isto é simples e sublime ao mesmo tempo e resume toda a lei da vida. Os Espíritos elevados não se comprazem nos longos discursos. Ainda hoje, os que podem comunicar-se com os planos superiores do Além não recebem mais do que instruções curtas, profundas e marcadas com o cunho de alta sabedoria. E Joana acrescenta: “São Miguel me ensinou a bem proceder e a frequentar a Igreja.” Com efeito, para toda alma que aspira ao bem, a inteireza nos atos, o reconhecimento e a prece são as condições primeiras de uma existência reta e pura.


* J. Fabre – Processo de condenação, 7º interrogatório secreto, pág. 174.


Um dia São Miguel lhe diz: “Filha de Deus, tu conduzirás o delfim a Reims, a fim de que receba aí sua digna sagração”. * Santa Catarina e Santa Margarida lhe repetiam sem cessar: “Vai, vai, nós te ajudaremos!” Estabelecem-se, então, entre a virgem e seus guias, estreitas relações. No seio de seus “irmãos do paraíso”, vai ela cobrar o ânimo necessário para levar a termo sua obra, da qual está inteiramente compenetrada. A França a espera, é preciso partir!


* Processo, t. I, pág. 130.


Aos primeiros albores de um dia de inverno Joana se levanta e, já tendo preparado a ligeira bagagem, um embrulhozinho e o bastão de viagem, vem ajoelhar-se ao pé do leito em que ainda repousam seu pai e sua mãe e, silenciosa, murmura em prantos um adeus. Recorda, nesse momento doloroso, as inquietações, as carícias, os desvelos da mãe, os cuidados do pai, cuja fronte a idade já curva. Pensa no vácuo que a sua partida abrirá, na amargura de todos aqueles com quem até ali partilhara vida, alegrias e dores. Mas, o dever ordena: não faltará à sua tarefa. Adeus, pobres pais! adeus, tu que te encheste de tantos desassossegos por teres visto, em sonho, tua filha na companhia de gentes de guerra! * Ela não procederá conforme as tuas apreensões, pois que é pura, pura como o lírio sem mácula; seu coração só conhece um amor: o de seu país.


* J. Fabre – Processo de condenação, 3º interrogatório secreto, págs. 142-143.


“Adeus, vou a Vaucouleurs”, diz ao passar pela casa do lavrador Gerard, cuja família era ligada à sua. “Adeus, Mengette”, disse a uma de suas companheiras. “Adeus, vós todos com quem convivi até hoje.”


Houve, entretanto, uma amiga de quem evitou despedir-se: a sua querida Hauviette. Os adeuses, por demasiado comoventes, a abalariam talvez e ela precisava de toda a coragem. *


* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. 1. Depoimentos de três amigas de Joana. Depoimentos de seis lavradores.


Joana partiu em direção a Burei, onde habitava um de seus tios, para lá ganhar Vaucouleurs e a França. Aos dezessete anos, partiu sozinha debaixo do céu imenso, por uma estrada semeada de perigos. E Domremy nunca mais tornou a vê-la.


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