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II



A situação em 1429



Jazia a França como em túmulo encerrada!


Do seu grande esplendor restava quase nada;


Chorosa urna – o Loire, a serpear no Oeste;


E o Dauphiné, qual sombra, a Leste.


Saint-Yves d’Alveydre



Qual a situação da França no século XV, no momento em que Joana d'Arc vai aparecer na cena da História?


A luta contra a Inglaterra dura há perto de cem anos. Em quatro derrotas sucessivas, a nobreza francesa fora esmagada, quase aniquilada. De Crécy a Poitiers e dos Campos de Azincourt aos de Verneuil, nossa cavalaria juncou de mortos o solo. O que dela resta está dividido em partidos rivais, cujas querelas intestinas enfraquecem e acabrunham a França. O duque d'Orleães é assassinado pelos lacaios do duque de Bourgogne, que, pouco mais tarde, é morto pelos Armagnacs. Tudo isto ocorre às vistas do inimigo, que avança passo a passo e invade as províncias do Norte, sendo que já, de muito tempo, ocupa a Guiena.


Depois de encarniçada resistência, no curso de um cerco que excede em horror a tudo quanto à imaginação possa engendrar de lúgubre, Rouen teve que capitular. Paris, cuja população é dizimada pelas epidemias e pela fome, está nas mãos dos ingleses. O Loire os vê nas suas margens. Orleães, cuja ocupação entregaria ao estrangeiro o coração da França, resiste ainda; mas, por quanto tempo o fará?


Vastas superfícies do país se encontram mudadas em desertos; as aldeias abandonadas. Só se vêem sarças e cardos brotando livremente das ruínas enegrecidas pelo incêndio; por toda parte os sinais das devastações da guerra, a desolação e a morte. Os camponeses, desesperados, se ocultam em subterrâneos, outros se refugiam nas ilhas do Líger (Loire), ou procuram abrigo nas cidades, onde morrem famintos. Muitas vezes, tentando escapar à soldadesca, os desgraçados emigram para os bosques, se agrupam em hordas e logo se tornam tão cruéis como os bandidos, a cuja sanha fugiram. Os lobos rondam as cercanias das cidades, nelas penetram à noite e devoram os cadáveres deixados insepultos. Tal “a grande lástima em que se encontra a terra de França”, como à Joana dizem suas vozes.


O pobre Carlos VI, em sua demência, assinou o tratado de Troyes, que lhe deserda o filho e constitui Henrique de Inglaterra herdeiro de sua coroa. Enquanto, na Basílica de Saint-Denis, junto ao esquife do rei louco, um arauto proclama Henrique de Lencastre rei da França e da Inglaterra, os restos dos nossos monarcas, sob as pesadas lápides de seus túmulos, certo fremiram de vergonha e de dor. O delfim Carlos, despojado e chamado por irrisão “o rei de Burges (Bourges)”, se entrega ao desânimo e à inércia. Faltam-lhe engenho e valor. Cuida de ganhar a Escócia ou Castela, renunciando ao trono, ao qual pensa não ter talvez direito, pois que o assaltam dúvidas sobre a legitimidade do seu nascimento. E não se ouve senão a queixa lamentosa, o grito de agonia de um povo, cujos vencedores se aprestam para enterrá-lo num sepulcro.


A França se sente perdida, ferida no coração. Ainda alguns reveses, e mergulha-rá no grande silêncio da morte. Que socorro se poderia, com efeito, esperar? Nenhum poder da Terra é capaz de realizar esse prodígio: a ressurreição de um povo que se abandona. Há, porém, outro poder, invisível, que vela pelo destino das nações. No momento em que tudo parece abismar-se, ele fará surgir do seio das multidões a assistência redentora.


Certos presságios parecem anunciar-lhe a vinda. Já, entre outros sinais, uma visionária, Maria d'Avignon, se apresentara ao rei; vira em seus êxtases, dizia, uma armadura que o céu reservava para uma jovem destinada a salvar o reino.(2) Por toda parte se falava da antiga profecia de Merlin, anunciando uma virgem libertadora, que sairia de Bois Chesnu. (3)


E como um raio de luz, vindo do alto, em meio dessa noite de luto e de miséria, apareceu Joana.


Escutai, escutai! Do extremo dos campos e das florestas da Lorena ressoou o galope de seu cavalo. Ela acorre; vai reanimar este povo desesperado, reerguer-lhe a coragem abatida, dirigir a resistência, salvar da morte a França.


   

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