Ruão; o suplício
XII
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Do Cristo, com ardor,
Joana a imagem beijava.
Casimir Delavigne
Estamos a 30 de maio de 1431. O drama toca ao desenlace. São oito horas da manhã. Todos os sinos da grande cidade normanda dobram lugubremente. É o dobre fúnebre, o dobre a finados. Anunciam a Joana que sua última hora soara. “Ai! de mim! exclama ela chorando, tratam-me horrível e cruelmente; é preciso até que meu corpo, intacto e puro, jamais conspurcado, seja hoje consumido e reduzido a cinzas! Ah! preferia que me decapitassem sete vezes a ser assim queimada... Oh! invoco a Deus por testemunha das grandes ofensas que me fazem!”. *
* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. II, pág. 104. Depoimento de frei João Toutmouillé.
Impressiona-a cruciantemente a ideia do suplício do fogo. Pensa nas chamas que se alteiam, na morte que se aproxima lentamente, na prolongada agonia de um ser vivo a sentir as mordeduras ardentes que lhe devoram as carnes. Tal gênero de morte era destinado aos piores criminosos e, no entanto, vai sofrê-la Joana, a virgem inocente, Joana – a libertadora de um povo!
Isto põe a nu a baixeza de seus inimigos, daqueles que ela tantas vezes vencera. Em lugar de lhe renderem à coragem, ao gênio, as homenagens que os soldados civilizados dispensam aos adversários que a má sorte lhes faz cair nas mãos, os ingleses reservam para Joana, depois dos mais atrozes maus tratos, ignominioso fim. Seu corpo será consumido e suas cinzas lançadas ao Sena. Não lhe permitirão repousar num túmulo, onde os que a amaram possam ir chorar, depositar flores, praticar o tocante culto da saudade.
Fazem-na entrar na carreta sinistra e a tétrica procissão se encaminha para o local do suplício. Oitocentos soldados ingleses a escoltam. Imensa multidão consternada se comprime para vê-la passar. O cortejo desemboca na rua Écuyère, na praça do VieuxMarché, onde se erguem três palanques. Os prelados e oficiais tomam lugar em dois deles. O cardeal de Winchester, revestido da púrpura romana, ocupa seu trono. Lá estão também o bispo de Beauvais e o de Bolonha, todos os juízes e os capitães ingleses. Entre os palanques avulta a fogueira, de aterradora altura. É um monte de lenha, dominando toda a praça. Querem que o suplício seja longo, a fim de que a virgem, vencida pela dor, grite implorando graça, renegue de sua missão e de suas vozes.
Leem o libelo acusatório, composto de 70 artigos, nos quais se acumulou tudo quanto o ódio mais venenoso pode imaginar para desnaturar os fatos, iludir a opinião e fazer da vítima um objeto de horror. Joana se ajoelha. Nesse solene momento, em presença da morte que se avizinha, sua alma se desprende das sombras terrenas e entrevê os esplendores eternos. Ora em voz alta. Profere uma prece extensa e fervorosa. Perdoa a todos, a seus inimigos, a seus algozes. Num sublime arroubo do pensamento e do coração, reúne dois povos, enlaça dois reinos. As inflexões de sua voz emocionam vivamente a multidão; de dez mil peitos ofegantes rebentam os soluços. Os próprios juízes, tigres de feições humanas, Cauchon, Winchester, todos choram. Pouco lhes dura, porém, a emoção. O cardeal faz um aceno e Joana é amarrada por fios de ferro ao poste fatal; passam-lhe à volta do pescoço pesada golilha.
Ela então se dirige a Isambard de la Pierre e diz: “Eu vos peço, ide buscar-me a cruz da igreja mais próxima; quero tê-la erguida bem defronte de meus olhos, (até ao último instante)”. * Quando lhe apresentam a cruz, cobre-a de beijos e de pranto. Quando vai morrer de uma morte horrível, abandonada por todos, quer ter diante de si a imagem desse outro supliciado que, lá nos confins do Oriente, no cume de um monte, deu a vida em holocausto à verdade.
* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. II, pág. 100. Depoimento de frei Isambard de la Pierre.
Naqueles minutos graves a heroína revê toda a sua vida, curta, mas brilhante. Evoca a lembrança dos entes que ama, recorda os dias serenos da sua infância em Domremy, o semblante meigo de sua mãe, a fisionomia austera do velho pai e as companheiras de sua meninice, Hauviette e Mengette, seu tio Durand Laxart, que a acompanhou a Vaucouleurs, e, finalmente, os homens dedicados, que lhe fizeram companhia até Chinon. Numa visão rápida, passa em revista as campanhas do Liger, os gloriosos combates de Orleães, de Jargeau, de Patay; escuta as fanfarras guerreiras e os gritos de alegria da multidão em delírio.
Revê, ouve tudo isso na hora derradeira. Quis, por essa forma, num como supremo abraço, dizer o adeus final a todas aquelas coisas, a todos aqueles entes amados. Não tendo nenhum deles diante da vista, concretizou na imagem do Cristo crucificado suas lembranças, suas ternuras. Dirigiu-lhe o adeus que assim dizia à vida, nos extremos anseios de seu coração despedaçado.
Os carrascos põem fogo à lenha e turbilhões de fumaça se enovelam no ar. A chama cresce, corre, serpeia por entre as pilhas de madeira. O bispo de Beauvais acerca-se da fogueira e gritalhe: “Abjura!” Ao que Joana, já envolvida num círculo de fogo, responde: “Bispo, morro por vossa causa, apelo do vosso julgamento para Deus!”
As labaredas rubras, ardentes, sobem, sobem mais e lambem-lhe o corpo virginal; suas roupas fumegam. Ei-la que se torce nas ataduras de ferro. Alguns minutos depois, em voz estridente, lança à multidão silenciosa, aterrorizada, estas retumbantes palavras: “Sim, minhas vozes vinham do Alto. Minhas vozes não me enganaram. Minhas revelações eram de Deus. Tudo que fiz, fi-lo por ordem de Deus!”. * Suas vestes incendiadas se tornam uma das centelhas da imensa pira. Ecoa um grito sufocado, supremo apelo da mártir de Ruão ao mártir do Gólgota: “Jesus!”
* J. Fabre – Processo de reabilitação, t. II, pág. 91. Depoimento de frei Martin Ladvenu
E nada mais se ouviu, além dos estalidos que o crepitar do fogo produz...
Terá Joana sofrido muito? Ela própria nos assegura que não. “Poderosos fluidos – diz-nos – choviam sobre mim. Por outro lado, minha vontade era tão forte que dominava a dor.”
Está morta a virgem da Lorena. O Espaço todo se ilumina. Ela se eleva e paira acima da Terra, deixando após si um rastro luminoso. Já não é um ser material, mas um puro Espírito, um ser ideal de pureza e de luz. Os Céus se lhe abriram até ao infinito. Legiões de Espíritos radiosos vêm-lhe ao encontro, ou lhe formam cortejo. E o hino do triunfo, o coro celestial da boa vinda repercute nos espaços siderais: “Salve! salve! aquela que o martírio coroou! Salve! tu que, pelo sacrifício, conquistaste eterna glória!”
Joana entrou no seio de Deus, nesse foco inextinguível de energia, de inteligência e de amor, cujas vibrações animam o Universo inteiro. Muito tempo permaneceu mergulhada nele. Afinal, um dia, saiu de lá mais radiante e mais bela, preparada para missões de outra ordem, das quais adiante falaremos.
Deus, em recompensa, lhe deu autoridade sobre suas irmãs do Céu.
Concentremo-nos; saudemos a nobre figura de virgem, a jovem de imenso coração, que, tendo salvado a França, pela França morreu antes dos vinte anos.
Sua vida resplandece como celeste raio de luz, na temerosa noite da Idade Média.
Com sua fé vigorosa, com sua confiança em Deus, veio trazer aos homens a coragem e a energia necessárias a transpor mil obstáculos; veio trazer à França traída, agonizante, a salvação e o renascimento. Por paga de tanta abnegação heroica – horror! – só colheu mágoas, humilhações, perfídias e, como coroamento de sua breve, porém maravilhosa carreira, uma paixão e uma morte tão dolorosa, como iguais só houve as do Cristo.
O pai de Joana, ferido no coração pela notícia do martírio da filha, morreu subitamente; acompanhou-o de perto ao túmulo o mais velho dos filhos. A mãe da virgem imolada continuou a viver, tendo por único objetivo neste mundo instar com persistência pela revisão do processo. Em vão, durante muito tempo, deu passos sobre passos, dirigiu petições sobre petições ao rei e ao papa.
Em 1449, quando Carlos VII fez sua entrada em Ruão, sorriulhe uma esperança; mas, o pontífice Nicolau V lhe respondeu com evasivas e o rei se manteve couraçado na ingratidão. Em 1455, com Calisto III, foi mais bem sucedida, por isso que todo o povo francês lhe apoiava as reclamações. A corte se viu constrangida a dar ouvidos à voz pública. Fizeram compreender ao rei que sua honra estava manchada pela heresia, que servira de pretexto à morte da heroína. Assim, a reabilitação se efetuou muito mais no interesse da coroa da França, do que em homenagem à memória de Joana. Presentemente, a Igreja se apresta para explorar sua vítima de outros tempos.
Em todas as épocas Joana andou sacrificada aos interesses de casta e de partido. Há, porém, milhares de almas obscuras e modestas que a sabem amar com desprendimento e, atravessando o espaço, sobem-lhe os pensamentos que esse amor inspira. Muito mais a sensibiliza o culto dessas almas boas, do que as pomposas manifestações organizadas para glorificá-la. Esses pensamentos amorosos é que lhe dão a verdadeira alegria e a mais grata recompensa, conforme no-lo afirmou mais de uma vez, na intimidade das nossas reuniões de estudos.
Por largo tempo Joana esteve desconhecida, incompreendida, e ainda em nossos dias o é por muitos dos que a admiram. Cumpre, entretanto, reconhecer a possibilidade do erro assim praticado. Efetivamente, os que a imolaram – e no meio deles havia um rei –, para ocultarem da posteridade o crime que cometeram, tudo maquinaram com o fito de lhe desnaturarem o papel, amesquinharem a missão, correrem um véu sobre a sua memória. Obedecendo a esse intuito é que destruíram o registro dos inquéritos de Poitiers, que falsificaram, di-lo Quicherat, certos documentos do processo de Ruão, que tomaram os depoimentos prestados no de reabilitação com a preocupação constante de não arranharem altas suscetibilidades.
Nos processos verbais de Ruão se diz que, na manhã do suplício, em o último interrogatório a que a sujeitaram no cárcere, sem notários, sem escrivães, e só muitos dias depois passados a escrito por Cauchon, a virgem renegara suas vozes. É falso. Ela jamais as renegou. Em dado momento, extenuada, exausta, sem forças, submeteu-se à Igreja: nisto unicamente consiste a abjuração de Saint-Ouen.
Por efeito de tais perfídias é que a memória de Joana ficou tanto tempo eclipsada. No começo do décimo nono século, dela tínhamos apenas uma silhueta apagada, uma lenda incompreensível, infiel. Quis, porém, a justiça imanente da História que a verdade abrisse caminho. Das camadas populares surgiram incansáveis trabalhadores: Michelet, Henri Martin, o senador Fabre, Quicherat, sobretudo, diretor da Escola de Chartes, e também alguns padres. Todos esses obreiros conscienciosos escrutaram os pergaminhos amarelecidos, esquadrinharam as bibliotecas poeirentas. Descobriram-se muitos documentos ignorados. Encontrou-se nas Ordenações reais do tempo, nas crônicas de Saint-Denis, num acervo enorme de arquivos depositados na biblioteca de Chartes, nas contas de despesas das “boas cidades”, a revelação de fatos que realçam a heroína. Tardou-lhe a justiça, mas foi-lhe feita refulgente, absoluta, universal.
Eis porque à França moderna corre um grande dever: o de reparar, ao menos moralmente, as faltas da França antiga. Todos os olhares devem convergir para a nobre e pura imagem, para o vulto luminoso da virgem Lorena, que é o anjo da pátria. É preciso que todos os filhos da França gravem, no pensamento e no coração, a lembrança da que o Céu nos enviou na hora dos desastres e dos cataclismos. É necessário que pelos tempos em fora uma eterna homenagem suba àquele Espírito valoroso que amou a França até a ponto de lhe dar a vida, de perdoar sobre a fogueira todos os abandonos, todas as insídias, àquela que se ofereceu em holocausto à salvação de um povo.
Imenso alcance teve o sacrifício de Joana d'Arc. Em política – como deixaremos firmados na segunda parte deste volume – produziu a unidade da França. Antes dela, éramos apenas um país desmantelado, esfacelado pelas facções. Depois dela, houve uma França. Joana entrou resolutamente no braseiro e, expirando, ao mesmo tempo em que sua alma se evolava para o Além, dali saía a unidade nacional.
Toda obra de salvação se realiza por meio do sacrifício.
Quanto maior é este, mais soberba e imponente a obra. Toda missão redentora tem como coroação e remate o martírio. É a grande lei da História. Assim foi com Joana, assim com o Cristo. Por isso, sua vida traz o cunho da mão divina. Deus, o soberano artista, se revela nessa vida por traços inconfundíveis e sublimes. O sacrifício de Joana teve ainda um alcance maior: o de ficar sendo um ensinamento e um exemplo para as gerações, para os séculos vindouros. Deus tem determinado propósito quando reserva tais lições à Humanidade. Para as grandes personalidades dos mártires é que se volverão os pensamentos dos que sofrem, dos que vergam ao peso das provações. São outros tantos focos de energia, de beleza moral, ao calor dos quais virão aquecer-se as almas enregeladas pelo frio da adversidade. Através dos séculos, elas projetam uma cauda luminosa, uma espécie de esteira, que nos atrai e arrasta para as regiões rutilantes. Esses entes passaram pela Terra para nos fazerem adivinhar o outro mundo. Morrendo, deram nascimento à vida e a lembrança que deixaram há sido o reconforto de milhões de criaturas fracas e aflitas.
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