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XI



Ruão; o processo


Entro todo a tremer nest’árdua escuridade!


Seja feita, ó meu Deus, tua santa vontade!


Paul Allard


Chegamos agora ao processo.


Com efeito, ao mesmo tempo em que padecia tão duro e horrível cativeiro, Joana ainda tinha que sofrer as longas e tortuosas fases de um processo, tal como nunca houve igual no mundo.


De um lado, tudo quanto de hipócrita perversidade, de astúcia, de perfídia, de ambição servil ressumar pode o espírito do mal: setenta e um clérigos, padres e doutores, fariseus de corações petrificados, todos homens da Igreja, mas que fazem da religião uma máscara destinada a dissimular ardentes paixões – a cupidez, o espírito de intriga, o fanatismo tacanho.


De outro lado, só, sem amparo, sem conselheiro, sem defensor, uma criança de dezenove anos, a encarnação da pureza e da inocência, uma alma heróica num corpo de virgem, um coração sublime e terno, pronto aos maiores sacrifícios para salvar seu país, para cumprir fielmente sua missão e dar o exemplo da virtude no dever.


Jamais se viu a natureza humana subir tão alto de uma parte e, de outra, cair tão baixo.


A História já definiu as responsabilidades. Nada quero dizer que possa acirrar os ódios políticos, ou religiosos. Pois o nome de Joana d'Arc não é, entre todos os nomes gloriosos, aquele em torno do qual se devem coligar os sentimentos de admiração, partam de onde partirem? A Igreja procurou desculpar-se da acusação que lhe pesava, havia séculos, e para isso se empenhou na tarefa de lançar o odioso da condenação de Joana exclusivamente sobre Pedro Cauchon, bispo de Beauvais. Renegou-o, coberto de maldições. Mas, Pedro Cauchon é o único grande culpado?


Lembremos um fato. A 26 de maio de 1430, três dias depois da captura de Joana às portas de Compiègne, o vigário geral do inquisidor-mor da França, residente em Paris, escrevia ao duque de Borgonha, suplicando e “ordenando que, sob as penas de direito, lhe enviasse presa uma certa mulher chamada Jehanne a Pucela, veementemente suspeitada de crimes cheirando à heresia, a fim de comparecer perante o promotor da Santa Inquisição”.(142)


Assim, o temível tribunal do Santo Ofício, que na época já não era mais do que um fantasma, reaparecia, saía da sombra, para reclamar a maior vítima de quantas lhe compareceram à barra. E a Universidade de Paris, a principal corporação eclesiástica da França, lhe apoiava as reivindicações. Anatole France, bem informado sobre este ponto, diz: (143)


“No caso da Pucela, não era unicamente um bispo quem punha a Santíssima Inquisição em movimento, era a filha dos reis, a mãe dos estudos, o belo e refulgente sol da França e da cristandade, a Universidade de Paris. Atribuindo-se o privilégio de conhecer das causas relativas às heresias, seus pareceres, reclamados de todas as partes, faziam fé por toda a face do mundo em que a cruz fora plantada.”


Havia um ano que ela pedia a apresentação da Pucela ao inquisidor, como suspeita de sortilégio.


O mesmo autor acima citado ainda diz:(144)


“Depois de se entender com os doutores e mestres da Universidade de Paris, o bispo de Beauvais surgiu, a 14 de julho, no acampamento de Compienha e reclamou a Pucela como pertencente à sua justiça. Apresentava em apoio da reclamação as cartas que a Alma Mater endereçara ao duque de Borgonha e ao senhor de Luxemburgo.”


Era a segunda vez que a Universidade reclamava Joana ao duque; temia que outros a libertassem “por vias oblíquas” e lha pusessem fora da alçada. O emissário levava também autorização para oferecer dinheiro.


Pedro Cauchon, bispo de Beauvais, que, por se ter aliado aos ingleses, o povo expulsara de seu sólio, instruiu em pessoa e dirigiu o processo. Coube-lhe o papel mais importante, é incontestável; mas, o vice-inquisidor João Lemaitre aprovou todas as escolhas que o mesmo bispo fez para a composição do tribunal, em que os dois muitas vezes se sentaram lado a lado. E quando Cauchon estava impedido, João Lemaitre presidia às sessões. Todos os documentos comprovam este fato. (145)


O vice-inquisidor assinou e autenticou os autos das audiências, que os escrivães do tribunal redigiam em três vias. Um desses exemplares ainda existe na Biblioteca da Câmara dos Deputados, trazendo aposto o selo da Inquisição.


Era de direito que nos processos de heresia as decisões e julgamentos fossem tomados e pronunciados pelos dois juízes: o bispo e o inquisidor. Foi o que se verificou em Ruão, como algures. Impossível, portanto, deixar-se de reconhecer que a jurisprudência inquisitorial acobertava Cauchon.


Mas, não é tudo. Os bispos de Coutances e Lisieux, consultados no curso do processo, aprovaram a acusação. Há mesmo a esse respeito uma particularidade, que convém seja posta em relevo: o bispo de Lisieux, Zanon de Castiglione, ao manifestar-se pela condenação, fundamentou seu voto, dizendo que Joana era de muito baixa condição para ser inspirada por Deus. Realmente! Que teriam pensado de semelhante resposta os apóstolos do Cristo, aqueles humildes artífices e pescadores da Galiléia, e o próprio Cristo, filho de um carpinteiro?


Também figuram no processo os bispos de Thérouanne, de Noyon e de Norwich. Todos três tomaram parte nas admoestações à Pucela.


Cauchon cercou-se de personagens consideradas e de teólogos de fama. Deu assento no tribunal a homens como Tomás de Courcelles, apelidado mais tarde “a luz do concílio de Basiléia e o segundo Gerson”, Pedro Maurício e João Beaupère, que foram reitores da Universidade de Paris; a doutores e mestres em Teologia, tais como Guilherme Érard Nicole, Midi, Jacques de Touraine e a grande número de abades mitrados das grandes abadias normandas.


Ora, nenhum, dentre tantos clérigos eminentes, se mostrou imparcial. Todos eram partidários dos ingleses e inimigos de Joana. O promotor João d'Estivet, a alma danada de Cauchon, homem sem fé nem escrúpulos, se tornou particularmente notável pelo ódio e pelas violências contra a acusada. Nenhum direito lhe reconheceram a pretender, conforme pediu, que do tribunal fizessem parte, em número eqüitativo, alguns eclesiásticos amigos da França. Dessa decisão ela apelou para o papa e para o concílio. Tudo em vão.


Os juizes, sem exceção, assessores, cônegos, doutores em Teologia, recebiam dos ingleses, por sessão, uma paga equivalente a 40 francos, moeda atual. Os recibos estão juntos ao processo. Os assessores chegaram a ser quase cem, mas não funcionavam todos ao mesmo tempo. Os que se mostravam mais hostis a Joana, além da paga, também recebiam presentes.


O rei da Inglaterra deu aos membros do tribunal cartas de garantia para o caso que “aqueles que tivessem tido por agradáveis os erros de Joana tentassem pleiteá-los perante o papa, o concílio, ou noutra parte”. (146)


Houve muitos pareceres da Sorbona, entre outros o de 19 de abril, confirmado pelas quatro Faculdades a 14 de maio. Todos concluíam contra a Pucela.


Cumpre acrescentar que o inquisidor geral João Graverend, num sermão que pregou na igreja de São Martinho dos Campos, em Paris, após o suplício de Joana, repetiu todos os termos da acusação e aplaudiu a sentença. Pouco tempo depois, o papa nomeava Pedro Cauchon bispo titular de Lisieux.


É exato que mais tarde a pena de excomunhão o fulminou, porém não como castigo de seu crime; simplesmente porque recusou satisfazer a um pagamento que o Vaticano exigia. Assim, foi por uma questão de dinheiro que esse prelado se viu atingido pelos raios pontifícios, ao abrigo dos quais esteve, enquanto só carregava a culpa de haver levado à condenação a libertadora de seu país.(147)


De fato, nenhuma voz se elevou em toda a cristandade, para protestar contra o iníquo julgamento de Joana, quer do lado do clero que se conservara francês, quer do lado do clero que se passara para os ingleses. Ao contrário, uma circular que a seus diocesanos dirigiu Regnault de Chartres, arcebispo de Remos, nos revela o vergonhoso estado de espírito de Carlos VII e de seus conselheiros. Num relatório escrito de acordo com os documentos da municipalidade e almotacelado de Reims, encontrou-se a análise de uma missiva do chanceler aos habitantes de sua cidade arquiepiscopal, concebida nos termos que se vão ler.


Dá notícia da prisão de Joana diante de Compiègne e diz que tal sucedera “por ela não ter querido aceitar conselho, mas fazer tudo a seu bel-prazer... Deus consentira em que fosse presa, por se haver enchido de orgulho, por causa das ricas vestes que trajava e por não ter feito o que Deus lhe ordenara, mas só o que era da sua vontade, dela Joana”.(148)


Entretanto, Carlos VII, embora pessimamente aconselhado, recebera altas e instantes solicitações em favor da heroína.


Jaques Gélu, fidalgo, arcebispo d'Embrun, que fora preceptor do delfim Carlos, escreveu a seu real discípulo, depois da captura de Joana, lembrando-lhe o que a Pucela fizera pela coroa da França. Rogava-lhe que perscrutasse a própria consciência e visse se não “foram suas ofensas a Deus que ocasionaram aquela desgraça”. “Recomendo-vos, acrescenta Gélu, que não poupeis meios nem dinheiro, para recobrar essa donzela e resgatar-lhe a vida, seja a que preço for, se não quiserdes incorrer na pecha indelével de uma censurabilíssima ingratidão.”


Aconselha-lhe que ordene se façam por toda parte preces pela libertação de Joana, a fim de obter o perdão de alguma possível falta.


Assim falou o velho bispo, que se lembrava de ter sido conselheiro do delfim nos maus dias e que amava estremecidamente o rei e o reino. (149)


O resgate de Joana, quando em poder do conde de Luxemburgo, era possível. Nada fizeram. Havia também a possibilidade de a resgatarem por um golpe de força: os franceses ocupavam Louviers, a pequena distância de Ruão. Conservaram-se imóveis. Os que, antes da viagem a Remos, falavam em atacar a Normandia, agora se calavam.


No mínimo, podiam ter conseguido alguma coisa pelos meios processuais, embaraçando a sentença do tribunal, mediante os recursos formalísticos do que os juízes se mostravam tão respeitadores. O bispo de Beauvais, que dirigia o processo, era sufragâneo do arcebispo de Remos. Podia este exigir que lhe ele desse, pelo menos, conhecimento dos debates. Reinaldo de Chartres, porém, se absteve de toda e qualquer intervenção.


Poderiam ter recorrido aos protestos da família de Joana, reclamar a apelação para o papa, ou para o Concílio, ameaçar os ingleses de represálias em Talbot e nos outros prisioneiros de guerra, para salvação da vida da Pucela. Nada se tentou!


“O abandono de Joana à sua sorte, diz Wallon,(150) obedeceu a deliberado propósito: sua morte entrava nos cálculos daqueles detestáveis políticos... Regnault de Chartres, La Trémoille e todas aquelas outras tristes personagens sacrificaram, com Joana, o príncipe, a pátria e até Deus, unicamente para guardarem o ascendente de que desfrutavam nos conselhos do rei.”


Tudo bem pesado, a responsabilidade do suplício e da morte de Joana toca, parece-nos, em partes iguais, à Igreja e às coroas da Inglaterra e da França.


Todavia, no que respeita à Igreja, uma circunstância devemos lembrar. É que, se tantos padres e prelados, se a própria Inquisição chafurdaram no Processo de condenação de Joana d'Arc, também foi sob a direção do grande inquisidor João Béhal que o Processo de reabilitação se desenrolou. Assim como houve sacerdotes capazes de condenar Joana, outros houve, e não dos de menor valor, que tomaram a si glorificá-la, contando-se entre esses o grande Gerson e o arcebispo d'Embrun.


Evidentemente, tendo sido Joana queimada como feiticeira, a coroa da França não queria nem podia ficar sob a acusação de haver pactuado com o inferno. Mas, para conseguir o processo de revisão, que viria aliviá-la desse peso, foi-lhe preciso negociar durante três anos, com a corte de Roma; foi precisa toda a influência do rei e de seus conselheiros, influência que, entretanto, o pontífice romano tinha o maior interesse em salvaguardar, numa época de cisma, quando três papas acabavam de disputar a autoridade sobre o mundo cristão. Foi necessária uma pressão forte, para obter-se a revisão, e, sem a pressão e a insistência havidas, é provável que a reparação nunca se daria.


“O tribunal de reabilitação – diz Joseph Fabre –, que se fez esperar vinte e cinco anos, sancionou a impunidade dos carrascos, do mesmo passo que proclamou a inocência da supliciada. Ainda mais: declarou Joana isenta do crime de heresia; mas, admitiu, que como herética, a virgem teria merecido o fogo, consagrando, assim, o exemplo dos juízes do primeiro tribunal, o nefasto princípio da intolerância, do qual foi ela vítima”.(151)


Conquanto tardia e insuficiente, aceitamos a reparação tal como se operou. Recordemos que nas principais cidades da França se levaram a efeito procissões expiatórias, em que o clero tomou parte saliente. Lembremos igualmente que, em época mais recente, os próprios ingleses glorificaram a memória de Joana: um de seus poetas, Southey, proclamou-a a maior glória do gênero humano. Muitas e muitas vozes se hão erguido na Inglaterra, pedindo que, nas praças públicas de Ruão, representantes da coroa e do parlamento cantem a palinódia.


Relembremos tudo isso e digamos que diante da portentosa figura de Joana devem desaparecer todos os ressentimentos, todos os ódios devem cessar. Em torno de seu augusto nome, nenhuma luta de partidos ou de nações se pode empenhar, porque esse nome, sendo um símbolo de patriotismo, é também, e sobretudo, um símbolo de paz e de concórdia.


Joana pertence a todos, certamente, e em particular à França. Todavia, se houvesse cabimento para uma exceção no seio do país, em favor de alguma coletividade ou grupo, se Joana pudesse pertencer mais a uns do que a outros, mandaria a lógica inflexível que fossem favorecidos pela exceção os que lhe souberam compreender a vida e penetrar-lhe o mistério, os que procuram ainda hoje, no estudo do mundo invisível, as forças, o amparo, os socorros que lhe asseguraram o triunfo, para pô-los ao serviço do bem moral e da salvação da pátria.


*


Voltemos aos juízes de Ruão. Quando se estudam as fases do processo, ressalta evidente que, no espírito daqueles sofistas de corações gelados, no pensamento daqueles padres vendidos aos ingleses, Joana estava de antemão condenada. Não se encheram eles de despeito e raiva ao verem uma mulher levantar, em nome de Deus, de quem se diziam representantes, a causa que traíram, julgando-a perdida, a causa da França? Todos aqueles homens só visavam a um fim, só alimentavam um desejo: vingar nessa mulher a autoridade de que eram ciosos e que sentiam ameaçada, a situação de que gozavam e que consideravam comprometida. Para eles, como para os ingleses, Joana estava destinada à morte; mas, que apenas morresse não lhes bastava à política e ao ódio; era preciso que a vissem morrer desonrada, renegando sua própria missão, e que os salpicos dessa desonra atingissem o rei e toda a França!


Para isso, um único recurso havia: obterem que ela se retratasse, que negasse a missão de que se achava investida. Era necessário que se confessasse inspirada pelo inferno. Um processo por feitiçaria, eis o caminho mais bem indicado para conduzi-la a tal extremo. A fim de alcançar-se o objetivo, não se devia hesitar no emprego de qualquer meio: o embuste, a espionagem, maus tratos, todos os sofrimentos, todos os horrores de uma horrenda prisão, onde a castidade da virgem se encontrasse exposta aos últimos ultrajes. As ameaças e a própria tortura lhes serviam. Mas, a tudo Joana resistiu.


Concebei uma sala abobadada, onde, por estreitas aberturas, se filtra mortiça luz. Dir-se-ia uma cripta funerária. O tribunal está reunido. Uns sessenta juizes o compõem, sob a presidência do bispo de Beauvais, a quem os ingleses prometeram o arcebispado de Ruão, se soubesse servir-lhes aos interesses. Por sobre suas cabeças (pungente ironia!) pende da parede a imagem do Cristo crucificado. Ao fundo da sala, em todas as saídas, brilham as armas dos soldados ingleses, de odientos semblantes, ferozes.


Para que essa ostentação de força? Para o julgamento de uma menina de dezenove anos! Joana lá está, pálida, cambaleante, carregada de ferros; enfraqueceram-na os sofrimentos de um longo cativeiro. Lá está ela, só, em meio de inimigos que juraram perdê-la.


Só? Oh! não! Pois que, se os homens a abandonam, se seu rei a esquece, se os nobres da França nada fazem para arrancá-la aos ingleses, à força ou pelo resgate, ao menos há seres invisíveis velando por ela, amparando-a, inspirando-lhe réplicas tais, que, por vezes, causam espanto aos juízes.


E que barulho! Que tumulto! No auge do furor, cheios de raiva, os membros do tribunal, de momento a momento, se interpelam reciprocamente e disputam entre si. As questões se multiplicam. Engendram mil ardis para desnortear a acusada, por meio de tretas hipócritas, apoquentam-na com perguntas tão sutis, tão difíceis que, segundo a expressão de um dos assessores, Isambard de la Pierre, “os mais notáveis clérigos da assistência não teriam podido a elas responder, sem grandes embaraços”.(152)


No entanto, ela a todos responde, ora com admirável finura, ora com um sentido tão profundo e com palavras tão sublimes, que ninguém mais podia duvidar de que fosse inspirada pelos Espíritos. Temerosa impressão se apoderava dos assistentes, quando ela dizia: “Eles aqui estão sem que os vejais.” Aqueles homens se achavam, porém, demasiadamente enterrados no crime, para serem capazes de retroceder.


Assim, esforçavam-se por oprimir a donzela, física e moralmente. Submetiam-na a interrogatório sobre interrogatório. Efetuavam, às vezes, dois por dia, de três horas cada um. E durante todo o tempo obrigavam-na a ficar de pé, suportando o peso de grossas correntes.


Contudo, Joana não se deixa intimidar. Aquele sinistro lugar se lhe afigura um novo campo de batalha, com o que dá mostra de sua grande alma, de sua coragem máscula. A potência invisível que a inspira prorrompe em frases veementes, que aterrorizam seus acusadores.


Dirigindo-se ao bispo de Beauvais, exclama: “Dizeis que sois meu juiz. Não sei se sois. Mas, tende o cuidado de não julgar mais; porque, do contrário, vos exporeis a grande perigo. Advirto-vos, a fim de que, se Nosso Senhor vos castigar, eu tenha cumprido o dever que me cabia de vos prevenir.” – “Vim da parte de Deus. Nada tenho que fazer aqui. Entregai-me ao julgamento de Deus de quem vim”.(153)


Fazem-lhe esta pergunta prenhe de insídia: “Acreditas estar na graça de Deus?” – “Se não estou, que ele me faça estar; e, se estou, que ele nela me conserve”. (154) – “Julgas, pois, inútil confessar-te, ainda que em estado de pecado mortal?” – “Jamais cometi pecado mortal.” – “Podes lá sabê-lo?” – “Minhas vozes me teriam abandonado!” – “Que dizem tuas vozes?” – “Dizem-me: Não tenhas medo; responde desassombradamente; Deus te ajudará”. (155)


Procuram levá-la a reconhecer-se culpada do crime de magia, de sortilégios, pretendendo que se servira de objetos dotados de poderes misteriosos:


“Defendias o estandarte, ou o estandarte é que te defendia?” Ela responde: “Fosse do estandarte ou de Joana a vitória, tudo pertencia a Deus.” – “Mas, era no estandarte ou em ti mesma que fundavas a esperança da vitória?” – “Em Deus e em nada mais”. (156)


Quantos outros em seu lugar teriam podido ou sabido resistir à tentação de atribuírem a si próprios o mérito de suas vitórias? O orgulho se infiltra até ao fundo das mais nobres e mais puras almas. Quase todos nós somos inclinados a dar crescido valor aos atos que praticamos, a lhes exagerar o alcance, a nos glorificarmos sem razão. Entretanto, tudo nos vem de Deus. Sem ele, nada seríamos, nada poderíamos. Joana o sabe e, na atmosfera de glória que a cerca, se faz humilde, pequenina, atribuindo unicamente a Deus o merecimento da obra realizada. Longe de se envaidecer de sua missão, restringe-a a justas proporções. Não fora mais do que um instrumento ao serviço da Potência suprema:


“Aprouve a Deus obrar assim, por intermédio de uma simples virgem, para repelir os adversários do rei”. (157)


Mas, que instrumento admirável de sabedoria, de inteligência e de virtude! Que profunda submissão às vontades do Alto! “Todos os meus atos e palavras estão nas mãos de Deus e confio nele.”


*


Um dia o bispo de Beauvais entra no cárcere, revestido dos paramentos sacerdotais e acompanhado de sete padres. Joana é prevenida de que será decisivo o interrogatório pelo qual vai passar. Suas vozes, depois de lhe darem esse aviso, aconselham-na que resista com denodo, que defenda a verdade, que desafie a morte. Tanto basta para que, ao defrontar os ministros da Igreja, o corpo extenuado se lhe enrije, o semblante se lhe ilumine e seu olhar brilhe com vivo e inigualável fulgor.


“Joana, diz o bispo, queres submeter-te à Igreja?” Terrível pergunta esta, na Idade Média, e da qual depende a sorte da heroína.


”Reporto-me a Deus em todas as coisas” – responde ela –, a Deus, que sempre me inspirou. – “Aí está uma palavra bastante grave. Entre ti e Deus, há a Igreja. Queres, sim ou não, submeter-te à Igreja?” – “Vim ao encontro do rei para salvação da França, guiada por Deus e por seus santos Espíritos. A essa Igreja, a de lá do Alto, me submeto, com relação a tudo o que tenho feito e dito!” – “Assim, recusas submeter-te à Igreja, recusas renegar as tuas visões diabólicas?” – “Reporto-me a Deus somente. Pelo que respeita às minhas visões, não aceito o julgamento de homem algum!”


Eis aqui o ponto capital do processo. Tratava-se de saber, acima de tudo, se Joana subordinaria a autoridade de suas revelações às vontades da Igreja. Por ocasião do Processo de reabilitação, os juizes e as testemunhas tiveram como preocupação única demonstrar que a virgem hesitara e, por fim, aceitara a supremacia do papa e da Igreja. Ainda hoje, é o argumento dos que colocam a heroína no paraíso católico.


Durante o Processo de condenação, ao contrário, Joana, em todas as suas respostas, se mostra resoluta; seu pensamento não tem obscuridade, à palavra não lhe falta firmeza. Profundo é o sentimento que nutre no tocante à causa que defende. Em realidade, esse solene debate prossegue entre dois princípios inflexíveis. De um lado está a regra, o despotismo das tradições, a suposta infalibilidade de um poder que se imobilizou há séculos. De outro lado encontram-se a inspiração, os direitos sagrados da consciência individual. E a inspiração aqui se manifesta sob uma das mais sugestivas, mais empolgantes formas já vistas no correr dos tempos.


Forçoso é, pois, reconhecer: muito melhor do que os testemunhos do Processo de reabilitação, os interrogatórios de Ruão nos dão a ver Joana em toda a sua grandeza, em todo o esplendor de suas respostas apaixonadas, nas quais a palavra lhe sai vibrante, “enquanto o olhar – diz uma testemunha – despede lampejos”. Fascinava até os próprios juizes. Em parte alguma, em nenhuma ocasião se mostrou mais bela, mais imponente.


“Reporto-me a Deus somente!” dissera. Diante dessa resolução inabalável, diante dessa vontade que coisa alguma será capaz de amolgar, não mais hesitam.


A 9 de maio conduzem-na à sala das torturas. Lá se acham os torturadores com os apetrechos sinistros. Preparam os instrumentos; incandescem os ferros. Joana resiste. Defende a França e o ingrato rei que a abandonou. “Ainda que me arrancásseis os membros e que separásseis do corpo a alma, outra coisa não vos diria!”. (158)


Deixaram de torturá-la, não por piedade, mas porque, no estado de fraqueza física a que chegara, ela evidentemente expiraria durante os tormentos e o que se queria era uma morte pública, um cerimonial espetaculoso, de molde a impressionar a massa popular.


Os juizes nada esqueciam do que pudesse fazê-la sofrer. Num requinte de crueldade, compraziam-se em lhe descrever os horrores do suplício do fogo. Ora, este era o martírio que Joana mais particularmente temia: “Preferia que me decapitassem, dizia, a ser assim queimada.” Longe de tocá-los, o queixume da donzela mais lhes excitava a perversidade. Esmagada ao peso das correntes, vigiada de perto por inimigos brutais, no fundo daquele abismo de miséria, onde nenhum raio de compaixão, nenhuma palavra de conforto penetrava, por vezes um grito de revolta lhe assomava aos lábios e um apelo a Deus, “o grande juiz”, motivado pelos ultrajes que lhe infligiam. Mas acrescentava: “Bem pode ser que os que me querem tirar deste mundo vão antes de mim.” Douta feita, declarava ao juiz interrogante: “Não haveis de fazer contra mim o que acabais de dizer, sem que daí vos advenha mal ao corpo e à alma”. (159)


Efetivamente, muitos dos que a julgaram e condenaram tiveram miserando fim. Todos se viram flagelados pelo desprezo público e pelos remordimentos das consciências. Cauchon morreu acabrunhado de remorsos. O povo desenterrou-lhe o cadáver para lançá-lo a uma sentina. O promotor João d'Estivet expirou dentro de um esgoto. Alguns outros, vinte e cinco anos depois, em presença do novo tribunal, no correr do Processo de reabilitação, mais pareciam réus do que testemunhas. Causava dó a atitude em que se apresentavam e a maneira por que falavam traía a perturbação que lhes lançara n'alma o sentimento da própria indignidade.


Nos interrogatórios, nem sempre respeitavam a verdade, quando transcreviam as palavras da acusada. Um dia, em que a inquiriam acerca de suas visões, ao lerem-lhe uma das respostas que anteriormente dera, João Lefèvre notou um erro de redação e apontou-o. Joana pediu ao escrivão Manchon que repetisse a leitura. Relido o trecho, ela declarou que dissera precisamente o contrário. (160)


Outra ocasião, ponderou-lhes, num tom de censura: “Registrais só o que é contra mim e nada do que é a meu favor!”


Apesar de tudo, a energia sobre-humana, a linguagem inspirada, a grandiosa serenidade da donzela nos sofrimentos, acabaram por impressionar os juízes. Cauchon sentia bem que ali estava um ente excepcional, um ente que o Céu amparava. E já entrevia as conseqüências hediondas de seu crime; já elas se lhe erguiam diante dos olhos. Em certos momentos, a voz da consciência o repreendia e ameaçava. O pavor assaltava o prelado. Mas, como recuar? Os ingleses, sempre presentes, acompanhavam com febril atenção a marcha do processo, aguardando com tenebroso furor a hora de poderem imolar Joana, depois de a terem torturado e desonrado. Ao bispo de Beauvais só se lhe deparou um recurso: fazer com que a vítima desaparecesse assassinada. Era evitar um crime público, por meio de um crime secreto. Pensou em matá-la a veneno e providenciou para que lhe enviassem um peixe envenenado. Ela o comeu e logo enfermou, acometida de vômitos. Chegou ao extremo de abatimento. Receando que viesse a morrer, prodigalizam-lhe pérfidos cuidados, pois não convém que morra assim obscuramente. Os ingleses pagaram-na caro e a destinavam à fogueira. Por fim, a robusta constituição da heroína triunfa e imediatamente recomeçam seus sofrimentos morais. Aproveitam o estado de fraqueza em que a vêem para redobrarem de insistência.. Exigem-lhe uma abjuração. Nada fora olvidado para a consecução desse fim: espionagem, mentiras, tentativa de defloramento e até o veneno. A virgem, que era objeto da admiração de um povo inteiro, estava, por seus juízes e guardas, saciada de ignomínias.


Uma cena – poder-se-ia dizer uma comédia – é preparada no cemitério de Saint-Ouen. Aí, à vista do povo e dos ingleses, diante dos juízes reunidos, tendo à frente um cardeal e quatro bispos, intimam Joana a declarar que se submete à Igreja. Exortam-na e pedem-lhe que se compadeça de si mesma, que não se condene ao suplício do fogo. Lá está com efeito, na sua carreta sinistra, bem junto do estrado para o qual a mandaram subir, o carrasco que, em caso de recusa, a conduzirá ao Vieux-Marché, onde uma fogueira a espera.


Nesse instante, à luz merencória de um dia sombrio, como que velado pelos crepes do luto de que se cobrira a Natureza, sob a impressão de tristeza que se desprende dos túmulos, das sepulturas que a rodeiam, ela se sente presa de imenso desânimo.


Pelo pensamento, foge daquele campo mortuário e revê a terra que lhe fora berço, a velha Lorena, com seus frondosos bosques onde canta o passaredo, todos os amados lugares de sua meninice. Parece-lhe ouvir as canções das fiandeiras e dos pastores, escuta as modulações cheias de doçura e de queixumes que de tão longe o vento lhe traz nas asas. Torna a ver a choupana em que habitava, a mãe, o velho pai que encontrara em Remos todo encanecido, uma e outro destinados a sofrer duramente, quando souberem de sua morte! Nasce-lhe no íntimo a saudade da vida! Morrer aos vinte anos! Que coisa cruel!


Pela primeira vez, o anjo fraqueja. O Cristo, o próprio Cristo, também teve seus momentos de fraqueza. No monte das Oliveiras não desejou afastar de si o cálice das amarguras? Não disse: “Que se afaste de mim este cálice!”?


Joana, sem mais forças para resistir, assina o papel que lhe apresentam. Lembremos que ela não sabe ler, nem escrever. Além disso, o papel que lhe deram para assinar não é o que ficará arquivado. Operou-se uma substituição infame. Nem mesmo diante desse ato odioso recuaram. Hoje, a prova está feita de que é falsa a fórmula de abjuração que figura no processo, assinada com uma cruz. Difere, quer no contexto, quer na extensão, da que Joana subscreveu. Nenhuma só pessoa das que depuseram na revisão do processo atestou a identidade de tal documento: cinco a negaram. A fórmula que se encontra apensa aos autos é extremamente longa. Três testemunhas, Delachambre, Taquel, Monnet, disseram “Estávamos muito perto, vimos o papel, não continha mais do que seis ou sete linhas”.(161) A leitura da fórmula durou tanto quanto a recitação de um “Padre-nosso”, acrescenta Migiet. (162) Outra testemunha declarou: “Sei positivamente não ser a que se menciona no processo a fórmula que li a Joana e que ela assinou”(163). Ora, esta testemunha não é outra senão o escrivão Massieu, que foi quem leu, para que Joana repetisse, a fórmula de abjuração.


A donzela, aturdida, não ouviu nem compreendeu o que se achava escrito no papel. Assinou-o sem fazer juramento, sem ter plena consciência de seu ato. Afirma-o ela própria aos juízes, alguns dias depois, dizendo: “O que estava na fórmula de abjuração eu não compreendi. Não entendi desdizer-me, senão do que fosse do agrado de Deus que eu desdissesse”. (164)


Assim, o que as ameaças, as violências e todo o instrumental das torturas não puderam obter da heroína, conseguiram-no as súplicas, as solicitações hipócritas. Aquela alma tão meiga se deixou levar pelas refalsadas aparências de simpatia, pelas fementidas demonstrações de benevolência.


Mas, na mesma noite, as vozes se fizeram ouvir imperiosas na prisão e, a 28 de maio, Joana o declara aos juizes: “A voz me disse que abjurar é uma traição. A verdade é que Deus me enviou. O que fiz está bem feito”. E retomou as vestes masculinas, que fora obrigada a trocar pelas de seu sexo.


Que é o que se passara depois da abjuração, quando, com menosprezo das promessas de a porem numa “prisão da Igreja” e de lhe darem por guarda uma mulher, a reconduziram à enxovia abjeta, onde até então estivera? Os testemunhos seguintes no-lo vão dizer.


“Joana me referiu que, depois da abjuração, a atormentaram violentamente na prisão, que a molestaram e lhe bateram e que um milorde inglês tentara forçá-la. Dizia publicamente e me disse a mim que por esse motivo é que retomara as vestes de homem”. (165)


“Em minha presença perguntaram a Joana porque retomara os trajes de homem e ela respondeu que o fizera para defender seu pudor, pois, vestida de mulher, não se considerava em segurança, na companhia de guardas que já tinham querido atentar contra sua honra”. (166)


“Muitas pessoas e eu estávamos presentes na ocasião em que ela se justificava de haver retomado aquele trajo, dizendo e afirmando publicamente que os ingleses lhe tinham feito na prisão toda espécie de ofensas e de violências, quando usava roupas de mulher. De fato, eu a vi acabrunhada, com o rosto banhado em lágrimas, desfigurado e de tal modo ultrajado, que tive piedade e compaixão”. (167)


Na prisão dos ingleses, Joana esgotou o cálice de amarguras; pôde medir a profundidade do abismo das misérias humanas. Todos os seus sofrimentos se acham resumidos nestas palavras que dirigiu aos juizes: “Prefiro morrer, a suportar por mais tempo o martírio do cárcere”. (168)


E durante essas horas de horror, lá no castelo do Loire, Carlos VII, ao lânguido som das violas e das rabecas, se entrega aos prazeres da dança, a todos os gozos da volúpia. No burburinho das festas, esquece aquela que lhe dera a coroa!


Fatos tais contristam o pensamento e atribulam os corações. Chega-se a duvidar da justiça eterna. Semelhante ao grito de angústia de Joana, enviamos dolorosas queixas aos céus imensos. Ao nosso apelo, porém, um morno silêncio responde. Entretanto, desçamos ao fundo de nós mesmos e sondemos o grande mistério da dor. Não é ela necessária à beleza das almas e à harmonia do Universo? Que seria o bem sem o mal, que lhe serve de contraste e lhe realça o brilho? Apreciaríamos os benefícios da luz, se não tivéssemos que sofrer a treva? Sim, a Terra é o calvário dos justos, mas é também a escola do heroísmo, da virtude e do gênio; é o vestíbulo dos mundos felizes, onde todas as penas aqui passadas, todos os sacrifícios feitos nos preparam compensadoras alegrias. As almas se depuram e embelezam pelo sofrimento. Só mediante a dor se conquistam todas as felicidades. Os que não são imolados partilham delas em maior escala. Todos os corações puros sofrem na Terra: o amor nunca é desacompanhado de lágrimas. No âmago das sociedades humanas, não há senão o vazio e o amargor e por entre os nossos mais belos sonhos se insinuam espectros.


Mas, tudo neste mundo é passageiro. O mal pouco dura, enquanto que no Alto, nas esferas superiores, o reino da justiça se desdobra numa duração eterna. Não, a confiança dos crentes, o devotamento dos heróis, as esperanças dos mártires não são quimeras vãs! A Terra é um degrau para subir-se aos céus.


Que essas almas sublimes nos sirvam de exemplo e que sobre nós irradie, através dos séculos, a fé que as sustentou. Expulsemos de nossos corações as tristezas e os desânimos. Saibamos tirar das provações e dos males todo o fruto que nos oferecem para nossa elevação. Saibamos tornar-nos dignos de renascer em mundos mais belos, lá onde não vicejam o ódio, nem a injustiça, nem a secura dos corações, onde as existências correm numa harmonia cada vez mais penetrante e numa luz cada vez mais viva.


*


Após a retratação, Joana foi declarada relapsa, herética, cismática e condenada sem remissão. Só lhe restava morrer, morrer pelo fogo! Tal a sentença proferida por seus juizes!


Esses juizes, esses crentes do décimo quinto século não quiseram reconhecer a missão de Joana d'Arc. Acreditam nas longínquas manifestações de que falam as Bíblias; apraz-lhes reportarem-se pelo pensamento às épocas em que os enviados do Alto descem à Terra e entram na sociedade dos homens. Crêem num Deus que imobilizaram nas profundezas do céu e ao qual dirigem cotidianamente estéreis louvores.


Mas, ao Deus que vive, obra e se manifesta no mundo, na espontaneidade, na frescura, na juvenilidade da vida; aos grandes Espíritos que diante deles bafejam os missionários com o sopro de uma inspiração poderosa, só votam ódio, só reservam o insulto e a ignomínia!


Os juízes de Ruão e os doutores da Universidade de Paris declaram Joana inspirada pelo inferno. Por que? Porque os defensores, os representantes da letra, da fórmula, da rotina, somente dispõem de um saber superficial, de um saber que esteriliza o coração, priva de nutrição o pensamento e, em certos casos, pode levar até à injustiça e ao crime.


É assim que em todas as épocas os homens de letra se constituíram, incidentemente, os algozes do ideal e do divino. É assim que, com a roda de ferro da tirania, se tem esmagado o que de mais belo, de mais grandioso, de mais generoso há neste mundo. Os resultados não se fizeram esperar e para a Igreja foram terríveis. Dilo Henri Martin pelas seguintes palavras: (169)


“Condenando Joana, a doutrina da Idade Média, a doutrina de Inocêncio III e da Inquisição proferiu a condenação de si mesma. Essa doutrina primeiramente queimou sectários, depois dissidentes que ensinavam a pura moral cristã; agora, acaba de queimar um profeta, um messias! O Espírito se retirou dela. Daqui por diante, a seu mau grado e em seu desfavor, é que se operarão os progressos da Humanidade e as manifestações do governo da Providência da Terra.”


Sim, a Humanidade caminhou; o mundo progrediu. Não mais se pode dar a morte na cruz ou na fogueira aos enviados de Deus. Fecharam-se as masmorras e as salas de torturas, desapareceram os patíbulos. Entretanto, outras armas se levantam contra os inovadores, contra os porta-vozes da idéia nova. Essas armas são a chacota, o sarcasmo, a calúnia, a luta surda e contínua.


Mas, se as temíveis instituições da Idade Média, se todo o arsenal dos suplícios, se os patíbulos e as piras foram impotentes para deter a marcha da verdade, como poderiam hoje embaraçá-la? Soou a hora em que o homem não mais admite, no domínio do pensamento, outro soberano que não seja a sua consciência e a razão. Por isso, devemos conservar-nos fiéis ao eterno direito que nos assiste de julgar e de compreender.


Aproxima-se, chegou mesmo, o momento em que todos os erros do passado têm que comparecer, em plena luz, à barra do tribunal da História. Já se reconsideram e explicam as palavras e as ações dos grandes missionários, dos mártires e dos profetas. A todos os olhos elas apresentam um brilho novo. Breve, o mesmo sucederá com as sociedades e instituições de outrora. Umas e outras serão julgadas por sua vez e só conservarão o ascendente moral, a autoridade, aquelas que souberam dar ao homem mais meios e recursos para pensar, mais liberdade para amar, elevar-se e progredir.


    

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