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X



Ruão; a prisão


O escolhido por Deus para qualquer missão,


Mártir, soldado seja, apóstolo ou salvador,


D'alto valor precisa e muda submissão;


Que belo é o combater, nobre sofrer a dor.


Paul Allard


Joana está nas mãos dos ingleses. Amordaçada, para que não possa falar às populações, conduzem-na bem escoltada ao castelo do Ruão. Aí, lançaram-na num calabouço, encerrada numa gaiola de ferro: “Mandaram forjar para mim – diz-nos ela – uma espécie de gaiola em que me meteram e na qual fiquei extremamente comprimida; puseram-me ao pescoço umas grossas correntes, uma na cintura e outras nos pés e nas mãos. Teria sucumbido a tão horrível aflição, se Deus e meus Espíritos não me houvessem prodigalizado consolações. Nada é capaz de pintar a tocante solicitude deles para comigo e os inefáveis confortos que me deram. Morrendo de fome, seminua, cercada de imundícias, machucada pelos ferros, tirei de minha fé a coragem de perdoar a meus algozes.”


Procedimento atroz! Joana é prisioneira de guerra, é mulher e a enjaulam, como se fosse uma fera! Pouco mais tarde, é certo, os ingleses se contentaram com o prendê-la pelos pés a uma pesada trave por duas fortes correntes.


Assim começa uma paixão de seis meses, paixão sem exemplo na História, paixão mais dolorosa mesmo do que a do Cristo, pois que o Cristo era homem, ao passo que aqui se trata de uma moça de dezenove anos, posta à mercê de soldados brutos, estúpidos e lúbricos. Cinco deles, malfeitores, a escória do exército inglês, dizem todos os historiadores, vigiam-na dia e noite dentro do cárcere.


Imaginai o que pode uma donzela acorrentada esperar de homens vis e grosseiros, bêbedos de furor contra aquela que consideram a causadora de todos os reveses que sofreram. Os miseráveis a atormentavam com os maus tratos. Muitas vezes procuravam violentá-la e, como não o conseguissem, batiam-lhe brutalmente. Ela se queixava disso aos juízes no curso do processo e, freqüentemente, quando estes lhe entravam na prisão para interrogá-la, a encontravam banhada em lágrimas, com o rosto inchado e pisado pelas pancadas recebidas.(138)


Imaginai os horrores de semelhante situação, os pensamentos da mulher, os temores da virgem exposta a todas as surpresas, a todos os ultrajes, à privação contínua do repouso, do sono, o que lhe alquebrava o corpo e aniquilava as forças, em meio das ansiedades, das incessantes agonias. Sozinha entre aqueles infames, não consentia em abandonar as vestes masculinas e este ato de pudor lhe era profligado como um crime!


Os visitantes não se revelam menos abomináveis do que os guardas. O conde de Luxemburgo, que a vendera, lembrou-se um dia de ir escarnecê-la no cárcere. Acompanhavam-no os condes de Warwick e de Stafford e o bispo de Thérouanne, chanceler do rei da Inglaterra. “Vim aqui para te resgatar – diz-lhe ele –, porém sob a condição de prometeres que nunca mais pegarás em armas contra nós.” – “Escarneceis de mim – exclamou a donzela –. Sei perfeitamente que não tendes nem o desejo, nem o poder de fazê-lo.” E, como o conde insistisse, acrescentou: “Sei perfeitamente que estes ingleses me farão morrer, acreditando que depois da minha morte se apoderarão do reino da França. Sejam eles, porém, cem mil vezes mais numerosos do que são e ainda assim não terão o reino.” Estas palavras os põem furiosos, chegando o conde de Stafford a desembainhar a adaga para feri-la. Warwick obstou a que o fizesse. (139)


Depois, são os juizes que confiam a um padre indigno, traidor e espião, Loys-leur, a incumbência de penetrar na prisão em trajes de leigo e, dizendo-se loreno e prisioneiro dos ingleses, captar a confiança de Joana e decidi-la a tomá-lo por confidente. Durante seus colóquios com a virgem, escrivães postados à espreita ouviam, por uma abertura feita de propósito, e registravam todas as confidências da heroína.


Acreditavam os ingleses que um “encantamento” havia na virgindade de Joana e que, se esta a perdesse, eles nada mais tinham que recear dela. Um exame prático pela duquesa de Bedford, em companhia de lady Ana Bavon e de muitas matronas, demonstrara que aquela virgindade era real. Particularidade que revela a baixeza de um caráter: o duque de Bedford, regente da Inglaterra, assistia, oculto, ao exame.


Foi pouco depois desses fatos que o lorde condestável, conde de Stafford, levado tanto pela superstição, quanto por uma paixão hedionda, entrou no cárcere de Joana e tentou violenta-la. (140)


Quem poderia dizer o que ela sofreu nas trevas de sua enxovia! Abandonada de todos, traída e vendida a peso de ouro, experimentou os requintes da dor! Conheceu as horas de angústia, de tortura moral, em que tudo se nos escurece ao derredor, em que as vozes do céu parecem que se calam,(141) em que o invisível se conserva mudo, quando os furores, os ódios da Terra se desencadeiam e arremessam contra nós. Todos os missionários hão provado as amarguras dessas horas cruciantes e ela as amargou mais do que todos, ela, pobre menina, entregue indefesa às mais vis ofensas. Porque permite Deus tais coisas? Para sondar a alma e o coração de seus fiéis, para tirar a prova da fé que depositam n’Ele; para que os méritos dos que assim são feridos aumentem e para que a coroa que lhes reserva ganhe mais brilho e beleza.


Mas, dir-se-á, como é que Joana, extenuada, carregada de ferros, pôde escapar às tentativas ignóbeis de seus visitantes e guardas? Como pôde manter incólume a flor da pureza, que era sua salvaguarda, pois que, de acordo com a opinião corrente naquela época, a uma virgem não se podia imputar o crime de sortilégio?


Ora bem, eis aqui! Nessas horas terríveis, que lhe causavam mais horror do que a própria morte, o invisível intervém. Uma legião radiosa se introduz na gélida e sombria prisão. Seres que só ela vê e aos quais chama “seus irmãos do paraíso”, vêm cercá-la, ampará-la, dar-lhe as forças necessárias para resistir ao que teria sido um sacrilégio abominável.


Esses Espíritos a reconfortam e lhe dizem: “Sofrer é engrandecer-se, é elevar-se!” Em meio das trevas que a envolvem, uma claridade se produz; suaves cânticos lhe chegam aos ouvidos, como eco das harmonias do espaço.


As vozes a consolam e lhe repetem: “Tem coragem! serás libertada por uma grande vitória!” Na ingenuidade da sua fé, julga que essa libertação é a soltura. Ah! conforme o ensinavam nossos antepassados, os druidas, “era a libertação da morte”, a morte pelo martírio. O martírio era indispensável, para dar àquela santa figura toda a sublime radiosidade.


Não é privilégio das almas superiores ter por destino sofrer pelas causas nobres? Não é imprescindível que passem pelo cadinho das provações, para mostrarem todas as virtudes, todos os tesouros, todos os esplendores que encerram? Uma grande morte é o coroamento necessário de uma grande vida, de uma vida de devotamento, de sacrifícios; é a iniciação numa existência mais elevada. Porém, nas horas dolorosas, durante a suprema purificação, sobre-humana força sustenta essas almas, força que lhes permite tudo afrontar, tudo vencer!


    

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