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Primeira Parte



Vida e mediunidade de Joana d'Arc


I

Domremy


Encantador o vale; deslumbrante,


Ao vivo cintilar da luz esplendorosa,


Desliza e brinca uma torrente: o Mosa.


Saint-Yves d’Alveydre



Filho da Lorena, nascido, como Joana, no vale do Mosa, tive a acalentar-me a infância as recordações que ela deixou no país.


Durante a minha mocidade, visitei amiúde os lugares onde ela vivera. Aprazia-me vagar por sob as grandes abóbadas das nossas florestas lorenas, outros tantos destroços da antiga floresta das Gálias.


Como Joana, muitíssimas vezes prestei ouvido às harmonias dos campos e dos bosques. Posso dizer que também conheço as vozes misteriosas do espaço, as vozes que, na solidão, inspiram o pensador e lhe revelam as verdades eternas.


Homem feito, quis seguir-lhe as pegadas através da França. Refiz, quase que etapa a etapa, a dolorosa viagem. Vi o castelo de Chinon, onde Carlos VII a recebeu, reduzido hoje a ruínas. Vi, ao fundo da Touraine, a pequenina igreja de Fierbois, donde fez que retirassem a espada de Carlos Martel; vi as grutas de Courtineau, onde buscou refúgio durante uma tempestade; em seguida, Orleães e Reims, Compiègne, onde a prenderam. Em nenhum lugar por onde a virgem tenha passado deixei de ir meditar, orar, chorar em silêncio.


Mais tarde, na cidade de Ruão (Rouen), por sobre a qual adeja a sua sombra imensa, terminei a minha peregrinação. Como os cristãos que percorrem passo a passo o caminho que leva ao Calvário, assim perlustrei a via dolorosa que conduzia a grande mártir ao suplício.


Voltei depois a Domremy. Tornei a contemplar a humilde casinha que a viu nascer; o aposento, arejado por estreito respiradouro, cujas paredes seu corpo virginal, destinado à fogueira, roçou; o armário rústico, onde guardava as roupas, e o sítio onde, transportada, em êxtase, ouvia as suas vozes; finalmente, a igreja onde tantas vezes orou.


Daí, pelo caminho que trepa a colina, cheguei ao lugar sagrado, onde ela gostava de cismar; vi de novo a vinha de que foi dono seu pai, a árvore das fadas e a fonte de suaves murmúrios. Cantava o cuco no bosque pardacento; embalsamavam o ar os perfumes do espinheiro; a brisa agitava a folhagem e sussurrava um como lamento, ao fundo da balsa. A meus pés se desdobravam as campinas risonhas, esmaltadas de flores, irrigadas pelos meandros do Mosa.


Defronte, ergue-se abrupta a costa de Juliano, recordação da era romana e do César apóstata. Ao longe, outeiros cobertos de matas, grotas profundas se sucedem, até ao horizonte fugidio; penetrante doçura e serena paz dominam toda a região. É bem esse o lugar abençoado, propício às meditações; o lugar onde as vagas harmonias do céu se misturam com os longínquos e brandos rumores da terra. Oh! alma sonhadora de Joana! busco aqui as impressões que te envolviam e as encontro vívidas, empolgantes. Elas me enlaçam o espírito e o enchem de pungente embriaguez. E tua vida inteira, epopéia resplandecente, se desenrola ante o meu pensamento, como grandioso panorama, rematado por uma apoteose de chamas. Um instante viveu essa vida e o que meu coração sentiu nenhuma pena humana poderia descrever!...


Por trás de mim, como forasteiro monumento, nota discordante nesta sinfonia das impressões e das lembranças, se ostentam a basílica e a escultura teatral onde Joana figura ajoelhada aos pés de um São Miguel e de duas imagens de santas, opulentas e douradas. Só a estátua da virgem, rica de expressão, toca, interessa, prende o olhar. Um nome se lê gravado no soco, o de Allar. É obra, essa, de um espírita.


A alguma distância de Domremy, sobre um morro escarpado, em meio dos bosques, se oculta a modesta capela de Bermont. Joana aí vinha todas as semanas; seguia a vereda que, de Greux, se estira por sobre o planalto, se some por baixo das copas do arvoredo e passa perto da fonte de São Thiébault. Galgava a colina para se ajoelhar diante da antiga madona, cuja imagem, do século VIII, ainda se venera em nossos dias. Caminhei pensativo, recolhido, por essa pitoresca vereda e atravessei os copados bosques onde os pássaros gorjeiam. Toda a região está prenhe de lembranças célticas; lá erigiram nossos pais um altar de pedra. Aquelas fontes sagradas, aquelas austeras sombras da folhagem foram testemunhas das cerimônias do culto druídico. A alma da Gália vive e palpita em tais lugares. Sem dúvida essa alma falava ao coração de Joana d'Arc, como fala ainda hoje ao coração dos patriotas e dos crentes esclarecidos.


Levei meus passos mais longe; quis ver, nos arredores, tudo o que participara da vida de Joana, tudo o que no-la traz à memória: Vouthon, onde nascera sua mãe, e a pequena aldeia de Burey-la-Côte, que ainda guarda a casa onde morava seu tio Durant Laxart, que lhe facilitou o cumprimento da missão, levando-a à presença do Senhor de Baudricourt, em Vaucouleurs. A humilde habitação se mantém de pé, com os escudos de flores de lis, que lhe decoram o limiar, porém, transformada em estábulo. Uma simples corrente lhe segura a porta; abro-a e, a meus olhos, um cabrito, encolhido à sombra, faz ouvir sua voz fanhosa e plangente.


Errei em todos os sentidos por aquelas redondezas, embriagando-me com a contemplação dos sítios que serviram de quadro à infância de Joana. Percorri os apertados vales que ladeiam o Mosa, cavados por entre matas sombrias. Meditei na solidão, à noitinha, à hora em que canta o rouxinol, quando as estrelas se acendem na amplidão dos céus. Dava atenção a todos os ruídos, a todas as vozes misteriosas da Natureza. Sentia-me, em tais sítios, longe do homem; um mundo invisível me rodeava.


A prece, então, irrompeu das profundezas de meu ser; depois, evoquei o Espírito de Joana e logo percebi o amparo e a doçura de sua presença. O ar fremia; tudo à volta de mim parecia iluminar-se; imperceptíveis asas rufiavam na escuridão; desconhecida melodia, baixada dos espaços, embalava-me os sentidos e me fazia correr o pranto.


E o Anjo da França ditou-me palavras que, conforme a sua ordem, reproduzo aqui piedosamente:


Mensagem de Joana


“Tua alma se eleva e sente neste instante a proteção que Deus lança sobre ti.


Comigo, que a tua coragem aumente, e, patriota sincera, ames e desejes ser útil a esta França tão querida, que, do Alto, como Protetora, como Mãe, contemplo sempre com felicidade.


Não sentes em ti nascerem pensamentos de suave indulgência? Junto de Deus aprendi a perdoar, mas esses pensamentos não devem fazer com que em mim nasça a fraqueza, e – divino dom! – encontro em meu coração força bastante para procurar esclarecer, às vezes, aqueles que, por orgulho, me querem monopolizar a memória.


E quando, cheia de indulgência, peço para eles as luzes do Criador, do Pai, sinto que Deus me diz: “Protege, inspira, porém jamais faças fusão com os teus algozes. Os padres, recordando teu devotamento à pátria, não devem pedir senão perdão para aqueles cuja sucessão tomaram.”


Cristã piedosa e sincera na Terra, sinto no Espaço os mesmos arroubos, o mesmo desejo de oração, mas quero minha memória livre e desprendida de todo cálculo; não dou meu coração, em lembrança, senão aos que em mim não vêem mais do que a humilde e devota filha de Deus, amando a todos os que vivem nessa terra de França, aos quais procuro inspirar sentimentos de amor, de retidão e de energia.”


   

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