Capítulo 8: A Crise Moral




   


Do exame precedente resulta que dois sistemas contraditórios e inimigos dividem atualmente o mundo do pensamento. Sob esse ponto de vista, a nossa época é de perturbação e transição. A fé religiosa entibia-se e as grandes linhas da filosofia do futuro não aparecem senão a uma minoria de pesquisadores.


Certamente, a época em que vivemos é grande pela soma dos progressos realizados. A civilização hodierna, potentemente aparelhada, transformou a face da Terra; aproximou os povos, suprimindo as distâncias. A instrução derramou-se, as instituições aprimoraram-se. O direito substituiu o privilégio; a liberdade triunfa do espírito de rotina e do princípio de autoridade. Uma grande batalha empenha-se entre o passado, que não quer morrer, e o futuro, que faz esforços por vir à vida. Em favor dessa luta, o mundo agita-se e marcha; um impulso irresistível arrasta-o, e o caminho percorrido, os resultados adquiridos fazem-nos pressagiar conquistas mais admiráveis, mais maravilhosas ainda.


Mas, se os progressos efetuados na ordem física e na ordem intelectual são notáveis, é, pelo contrário, nulo o adiantamento moral. Neste ponto, o mundo parece antes recuar; as sociedades humanas, febrilmente absorvidas pelas questões políticas, pelas atividades industriais e financeiras, sacrificam os seus interesses morais ao bem-estar material. Se a obra da civilização aparece-nos sob magníficos aspectos, nem por isso, como todas as coisas humanas, deixa de ter sombras por baixo. Sem dúvida, ela conseguiu, até certo ponto, melhorar as condições da existência, mas multiplicou as necessidades à força de satisfazê-las; aguçando os apetites, os desejos, favoreceu igualmente o sensualismo e aumentou a depravação. O amor do prazer, do luxo, das riquezas tornou-se mais e mais ardente. Quer-se adquirir; quer-se possuir a todo custo.


Daí essas especulações deprimentes que se ostentam à luz do dia. Daí esse rebaixamento dos caracteres e das consciências, esse culto fervoroso que se presta à fortuna, verdadeiro ídolo, cujos altares substituíram os das divindades derribadas.


A Ciência e a indústria centuplicaram as riquezas da Humanidade, porém tais riquezas só aproveitaram a uma insignificante parte de seus membros. A sorte dos pequenos ficou precária e a fraternidade ocupa maior espaço nos discursos do que nos corações. No meio das cidades opulentas ainda se pode morrer de fome. As fábricas, as aglomerações obreiras tornaram-se focos de corrupção física e moral, como se fossem infernos do trabalho.


A embriaguez, a prostituição, o deboche por toda parte derramam seus venenos, esgotam a vida em sua fonte e enervam as gerações, enquanto os jornais à farta semeiam a injúria, a mentira, e, simultaneamente, uma literatura criminosa vai excitando os cérebros e debilitando as almas.


Dia por dia, a desesperança e o suicídio fazem novas devastações. O número de suicídios, que, em 1820, era de 1.500, calculando-se só os da França, excede agora a 8.000. Oito mil seres, todos os anos, por falta de energia e de senso moral, desertam das lutas fecundas da vida, e refugiam-se no que crêem ser o nada! O número de crimes e delitos triplicou em relação há cinqüenta anos. E, entre os condenados, considerável é a proporção dos adolescentes. Deve-se ver nesse estado de coisas os efeitos do contágio do meio, dos maus exemplos recebidos desde a infância, a falta de firmeza dos pais e a ausência da educação na família? Há tudo isso e mais ainda.


Nossos males provêm de que, apesar do progresso da ciência e do desenvolvimento da instrução, o homem se ignora a si próprio. Sabe pouca coisa das leis do Universo, nada sabe das forças que estão em si. O “conhece-te a ti mesmo”, do filósofo grego, tornou-se, para a imensa maioria dos homens, um apelo estéril. Tanto como há vinte séculos, o ente humano ignora o que é, donde veio, para onde vai, qual o fim real da sua existência. Nenhum ensino veio dar-lhe a noção exata de seu papel neste mundo, de seus deveres e de seus destinos.


O Espírito humano flutua, indeciso, entre as solicitações de duas potências.


De um lado, as religiões, com seu cortejo de erros e superstições, seu espírito de dominação e intolerância, mas também com as consolações, de que são a origem, e os fracos lampejos que guardam das verdades primordiais.


Do outro, a Ciência, materialista em seus princípios como em seus fins, com frias negações e exagerada inclinação para o individualismo, mas também com o prestigio de seus trabalhos e descobertas.


E esses dois colossos, a Religião sem provas e a Ciência sem ideal, engalfinham-se, combatem-se, sem se poderem vencer, porque cada uma delas corresponde a uma necessidade imperiosa do homem: uma fala ao coração, a outra dirige-se ao espírito e à razão. Em torno de numerosas esperanças e de aspirações derribadas, os sentimentos generosos se enfraquecem, a divisão e o ódio substituem a benevolência e a concórdia.


No meio dessa confusão de idéias, a consciência perdeu sua bússola e sua rota. Ansiosa, caminha ao acaso e, na incerteza que sobre ela pesa, o bem e o justo se obscurecem. A situação moral dos humildes, de todos esses que se curvam ao fardo da vida, tornou-se intolerável entre duas doutrinas que, como perspectiva às suas dores, como termo aos seus males, somente oferecem, uma o nada, a outra um paraíso inacessível ou uma eternidade de suplícios.


As conseqüências desse conflito se fazem sentir por toda parte: na família, no ensino e na sociedade. Tanto a Ciência como a Religião não mais sabem fortalecer as almas nem armá-las para os combates da vida. A própria Filosofia, dirigindo-se somente a algumas inteligências abstratas, abdica a seus direitos sobre a vida social e perde toda a influência.


Como sairá a Humanidade desse estado de crise? Para isso só há um meio: achar um terreno de conciliação onde essas duas forças inimigas, o Sentimento e a Razão, possam unir-se para o bem e salvação de todos. Todo ser humano tem em si essas duas forças, sob cujo império pensa e procede; e tal acordo traz às faculdades o equilíbrio e a harmonia, centuplica os meios de ação e dá à vida a retidão, a unidade de tendências e de vistas, enquanto as contradições e lutas entre ambos acarretam a desordem. E o que se produz em cada um de nós manifesta-se na sociedade inteira, causa a perturbação moral de que ela sofre. Para terminar esse conflito, é necessário que a luz se faça aos olhos de todos, grandes e pequenos, ricos e pobres, homens, mulheres e crianças; é preciso que um novo ensino popular venha esclarecer as almas quanto à sua origem, aos seus deveres e destinos.


Tudo está nisso. Só essas soluções podem servir de base a uma educação viril, tornar a Humanidade verdadeiramente forte e livre. Sua importância é capital, tanto para o indivíduo a quem dirigem em sua tarefa cotidiana como para a sociedade, cujas instituições e relações elas regulam. A idéia que o homem faz do Universo, das suas leis, o papel que lhe cabe neste vasto teatro, reflete-se sobre toda a sua vida e influi em suas determinações. É segundo essa idéia que traça para si um plano de conduta, fixa um alvo e para ele caminha. Por isso procuraríamos em vão esquivar-nos a tais problemas, pois eles, por si só, se impõem ao nosso espírito, dominam-nos, envolvem-nos em suas profundezas e formam o eixo de toda a civilização.


Toda vez que uma concepção nova do mundo e da vida penetra o Espírito humano e, aos poucos, se infiltra em todos os meios, a ordem social, as instituições e os costumes ressentem-se logo.


As concepções católicas criaram a civilização da Idade Média e modelaram a sociedade feudal, monárquica, autoritária. Então, na Terra como no céu dominava o reinado da graça e do favor. Tais concepções já viveram; porém, hoje, não mais encontram lugar no mundo moderno. Abandonando as velhas crenças, a época presente não soube substituí-las. O Positivismo, materialista e ateu, não enxerga na vida mais que passageira combinação da matéria e da força; nas leis do Universo somente vê um mecanismo brutal. Noção alguma de justiça, de solidariedade, de responsabilidade. Daí um afrouxamento geral dos laços sociais. Daí um cepticismo pessimista, um desprezo a qualquer lei e a qualquer autoridade que nos pudesse erguer dos abismos.


As doutrinas materialistas levaram uns ao desânimo e outros à recrudescência da cobiça; por toda parte induziram ao culto do ouro e da carne. Sob sua influência, uma geração nasceu desprovida de ideal, sem fé no futuro, sem energia para a luta, sem perseverança nos atos, duvidando de si mesma e de todos.


As religiões dogmáticas, conduzindo-nos à arbitrariedade e ao despotismo, atiram-nos, lógica e inevitavelmente, à anarquia, ao niilismo. Eis por que devemos considerá-la um perigo, uma causa de decadência e de relaxamento.


Acharão talvez excessivas estas expressões e tentarão tachar-nos de exagerados. Mas, em tal caso, bastará referirmo-nos às obras dos materialistas eminentes e citar as suas próprias conclusões. Eis, por exemplo, entre outros, o que escreve o Sr. Jules Soury:(lxxv)


“Há alguma coisa de vão e inútil no mundo: é o nascimento, a existência e a morte de inumeráveis parasitas, faunas e floras, que medram como o mofo e agitam-se na superfície deste ínfimo planeta. Indiferente em si, necessária em todo o caso, pois existe, a vida desses seres tem por condição a luta encarniçada de uns contra os outros, a violência e a astúcia; o amor, mais amargo que a morte, parecerá, ao menos a todos os seres conscientes, um sonho sinistro, uma alucinação dolorosa, ao preço da qual o nada seria um bem.


“Mas, se somos todos filhos da Natureza, se esta nos criou e nos deu a vida, por nossa vez somos nós que a temos dotado com todas as qualidades ideais que a embelezam aos nossos olhos; somos nós que tecemos o véu luminoso sob o qual ela nos aparece. Portanto, é realmente obra nossa a eterna ilusão que encanta ou atormenta o coração do homem.


No Universo, onde tudo são trevas e silêncio, só ele vela e sofre sobre este planeta, porque talvez somente ele, entre seus irmãos inferiores, medita e pensa. Apenas agora começa a compreender a verdade de tudo que tinha acreditado, de tudo o que amou, o nada da beleza, a impostura da bondade, a ironia de toda a essência humana. Após ter ingenuamente adorado os que julgava seus deuses e seus heróis, quando não tem mais fé nem esperança, ei-lo sentindo que a própria Natureza lhe falta, pois, como tudo o mais, ela não passava de uma aparência e de um engano.”


Também uma escritora materialista, poetisa de grande talento, a Sra. Ackermann, não hesitou em usar da seguinte linguagem:


“Não direi à Humanidade: Progride! Dir-lhe-ei:


Morre! porque nenhum progresso jamais te arrancará às misérias da condição terrestre.”


Tais idéias não são compartilhadas somente por alguns escritores. Graças a uma literatura que desonra o belo nome de Naturalismo, por meio de romances, de folhetins sem-número, essas mesmas noções penetram até aos mais obscuros ambientes.


Vista essa opinião de que o nada é preferível à vida, pode alguém se admirar de que o homem se desgoste da existência e do trabalho? Poderá recusar-se a compreender por que o desânimo e a desmoralização se infiltram pouco a pouco nos ânimos? Não, não é com tais doutrinas que se inspirará aos povos a grandeza da alma, a firmeza nos maus dias, a coragem na adversidade!


Uma sociedade sem esperança, sem fé no futuro, é como um homem perdido no deserto, como uma folha seca que vagueia à feição dos ventos. É bom combater a ignorância e a superstição, mas cumpre substituí-las por crenças racionais. Para seguirmos na vida com passo firme, para nos preservarmos dos desfalecimentos e das quedas, é preciso uma convicção robusta, uma fé que nos eleve acima do mundo material: é necessário ver-se o alvo e para ele nos encaminharmos. A mais segura arma no combate terrestre é uma consciência reta e esclarecida.


Mas, se nos domina a idéia do nada, se acreditamos que a vida não tem seqüência e que tudo termina com a morte, então, para sermos lógicos, cumpre sobrepor, a qualquer outro sentimento, o cuidado da existência material, o interesse pessoal. Que nos importa um futuro que não devemos conhecer? A que título falar-nos-ão de progresso, de reformas, de sacrifícios? Se há para nós somente uma existência efêmera, nada mais nos resta fazer do que aproveitar a hora atual, gozar-lhe as alegrias e abandonar-lhe os sofrimentos e os deveres! Tais são os raciocínios em que forçosamente terminam as teorias materialistas, raciocínios que ouvimos formular e vemos aplicar todos os dias em nosso círculo.


Que desordens não serão de esperar como conseqüência dessas doutrinas, no meio de uma civilização rica e já muito desenvolvida no sentido do luxo e dos gozos?


Entretanto, nem todo o ideal está morto. A alma humana tem, ainda, algumas vezes, o sentimento de sua miséria, da insuficiência da existência presente e da necessidade da sobrevivência. No pensamento do povo uma espécie de intuição subsiste. Iludido durante séculos, o povo tornou-se incrédulo a todos os dogmas, mas não é céptico. Vaga e confusamente, crê, aspira à Justiça. E esse culto da saudade, essas manifestações comoventes do 2 de novembro, que impelem as multidões para junto dos túmulos dos mortos, denotam também um instinto confuso da imortalidade. Não, o povo não é ateu, pois crê na Justiça imanente, como crê na Liberdade, porque a Justiça e a Liberdade existem pelas leis eternas e divinas. Esse sentimento, o maior, o mais belo que se pode achar no fundo da alma, esse sentimento salvar-nos-á!


Para isto, basta fazer compreender a todos que esta noção de Justiça, gravada em nós, é a lei do Universo, que rege todos os seres e todos os mundos, e que, por ela, o Bem deve finalmente triunfar sobre o Mal, e a Vida sair da Morte.


Ao mesmo tempo em que aspira à Justiça, busca o ente humano vê-la realizada. Procura-a no terreno político como no terreno econômico, no princípio de autoridade. O poder popular começou a estender sobre o mundo uma vasta rede de associações operárias, um agrupamento socialista que abraça todas as nações, e, sob um só estandarte, faz ouvir por toda parte os mesmos apelos, as mesmas reivindicações. Há aí, ninguém se engane, ao mesmo tempo em que um espetáculo cheio de ensinamentos para o pensador, uma obra repleta de conseqüências para o futuro. Inspirada pelas teorias materialistas e atéias, ela se tornaria um instrumento de destruição, porque sua ação resolver-se-ia em tempestades violentas, em resoluções dolorosas. Contida nos limites da prudência e da moderação, ela muito pode para a felicidade humana. Que um raio de luz desça a esclarecer essas multidões em trabalho; que um ideal elevado venha reanimar essas massas ávidas de progresso, e, graças a tal benefício, veremos todas as antigas pátrias, todas as velhas formas sociais se dissolverem e se fundirem em um mundo novo, baseado no direito de todos, na solidariedade e na justiça.


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A hora presente é de crise e de renovação. O mundo está em fermentação, a corrupção se acresce, a noite estende-se, o perigo é grande, mas, por detrás da sombra, vemos a luz, por detrás do perigo, a salvação. Uma sociedade não pode perecer. Se traz em si elementos de decomposição, também possui germes de transformação e de ressurgimento. A decomposição anuncia a morte, mas também precede o renascimento. Pode ser o prelúdio duma outra vida.


De onde virão a luz, a salvação, o reerguimento? Da Igreja, não; porque ela é impotente para regenerar o Espírito humano.


Da Ciência também não, pois esta não se preocupa com os caracteres nem com as consciências, mas tão-só com o que fere os sentidos; e tudo o que faz grandes os corações, fortes as sociedades, a dedicação, a virtude, a paixão do bem, não podem apreciar-se pelos sentidos.


Para levantar o nível moral, para deter a dupla corrente da superstição e do cepticismo, que arrastam igualmente à esterilidade, é preciso uma nova concepção do mundo e da vida que, apoiando-se no estudo da Natureza e da consciência, na observação dos fatos, nos princípios da razão, fixe o alvo da existência e regule a nossa marcha para adiante. O que é preciso é um ensino do qual se deduza um incentivo de aperfeiçoamento, uma sanção moral e uma certeza para o futuro.


Ora, essa concepção e esse ensino existem já e vulgarizam-se todos os dias. Por entre as disputas e as divagações das escolas, uma voz fez-se ouvir: a voz solene dos mortos. Ergueram-se, do outro lado do túmulo, mais vivos do que nunca, e, perante suas instruções, descerrou-se o véu que nos ocultava a vida futura. O ensino que nos dão vem reconciliar todos os sistemas inimigos, fazendo brotar uma chama nova dos escombros, das cinzas do passado. Na filosofia dos Espíritos encontramos a doutrina oculta que abrange todas as idades. Ela faz reviver esta doutrina debaixo das maiores e das mais puras formas. Reúne os destroços esparsos, cimenta-os com uma forte argamassa para reconstituir um monumento grandioso, capaz de abrigar todos os povos, todas as civilizações. Para assegurar a sua duração, assenta-o sobre a rocha da experiência direta do fato, que se renova sem cessar. E, graças a ela, eis que se desenrola aos olhos de todos, na espiral infinita dos tempos, o drama imenso da vida imortal, com as existências inumeráveis e os progressos incessantes que reserva a cada um de nós na escala colossal dos mundos.


Tal doutrina poderá transformar povos e sociedades, levando claridades a toda parte onde for noite, fazendo fundir ao seu calor o gelo e o egoísmo que houver nas almas, revelando a todos os homens as leis sublimes que os unem nos laços de uma estreita, de uma eterna solidariedade. Estabelecerá conciliação com a paz e a harmonia. Por ela aprenderemos a agir com um mesmo espírito e um mesmo coração. E a Humanidade, consciente de sua força, caminhará com passo mais firme para os seus magnificentes destinos.


É esse ensino que exporemos, em seus princípios essenciais, na segunda parte desta obra, depois do que indicaremos as provas experimentais, os fatos de observação sobre os quais eles repousam.