Capítulo 50: Resignação na Adversidade



   


O sofrimento é lei em nosso mundo. Em todas as condições, em todas as idades, sob todos os climas, o homem tem padecido, a Humanidade tem derramado lágrimas. Apesar dos progressos sociais, milhões de seres gravitam ainda sob o jugo da dor. As classes elevadas também não têm sido isentas desses males. Entre os Espíritos cultivados as impressões são mais dolorosas, porque a sensibilidade está mais esmerada, mais apurada. O rico, assim como o pobre, sofre material e moralmente. De todos os pontos do globo o clamor humano sobe ao espaço.


Mesmo no seio da abundância, um sentimento de desânimo, uma vaga tristeza apodera-se por vezes das almas delicadas. Sentem que neste mundo é irrealizável a felicidade e que, aqui, apenas se pode perceber dela um pálido reflexo. O Espírito aspira a vidas e mundos melhores; uma espécie de intuição diz-lhe que na Terra não existe tudo. Para o homem que segue a filosofia dos Espíritos, essa vaga intuição transforma-se em absoluta certeza. Sabe aonde vai, conhece o porquê dos seus males, qual a causa do sofrimento. Além das sombras e das angústias da Terra, entrevê a aurora de uma nova vida.


Para apreciar os bens e os males da existência, para saber em que consiste a verdadeira desgraça, em que consiste a felicidade, é necessário nos elevarmos acima do círculo acanhado da vida terrena. O conhecimento do futuro e da sorte que nos aguarda permite medir as conseqüências dos nossos atos e sua influência sobre os tempos vindouros.


Observada sob este ponto de vista, a desgraça, para o ser humano, já não é mais o sofrimento, a perda dos entes que lhe são caros, as privações, a miséria; a desgraça será então tudo o que manchar, tudo o que aniquilar o adiantamento, tudo o que lhe for um obstáculo. A desgraça, para aquele que só observar os tempos presentes, pode ser a pobreza, as enfermidades, a moléstia. Para o Espírito que paira no alto, ela será o amor do prazer, o orgulho, a vida inútil e culposa. Não se pode julgar uma coisa sem se ver tudo o que dela decorre, e eis por que ninguém pode compreender a vida sem conhecer o seu alvo e as leis morais. As provações, purificando a alma, preparam sua ascensão e felicidade; no entanto, as alegrias deste mundo, as riquezas e as paixões entibiam-na e atiram-na para uma outra vida de amargas decepções. Assim, aquele que é oprimido pela adversidade pode esperar e erguer um olhar confiante para o céu; desde que resgata a sua dívida, conquista a liberdade; porém, esse que se compraz na sensualidade constrói a sua própria prisão, acumula novas responsabilidades que pesarão extraordinariamente sobre as suas vidas futuras.


A dor, sob suas múltiplas formas, é o remédio supremo para as imperfeições, para as enfermidades da alma. Sem ela não é possível a cura. Assim como as moléstias orgânicas são muitas vezes resultantes dos nossos excessos, assim também as provas morais que nos atingem são conseqüentes das nossas faltas passadas. Cedo ou tarde essas faltas recairão sobre nós com suas deduções lógicas. É a lei de justiça, de equilíbrio moral. Saibamos aceitar os seus efeitos como se fossem remédios amargos, operações dolorosas que devem restituir a saúde e a agilidade ao nosso corpo. Embora sejamos acabrunhados pelos desgostos, pelas humilhações e pela ruína, devemos sempre suportá-los com paciência. O lavrador rasga o seio da terra para daí fazer brotar a messe dourada. Assim a nossa alma, depois de desbastada, também se tornará exuberante em frutos morais.


Pela ação da dor, larga tudo o que é impuro e mau, todos os apetites grosseiros, vícios e paixões, tudo o que vem da terra e deve para ela voltar. A adversidade é uma grande escola, um campo fértil em transformações. Sob seu influxo, as paixões más convertem-se pouco a pouco em paixões generosas, em amor do bem. Nada fica perdido. Mas, essa transformação é lenta e dificultosa, pois só pode ser operada pelo sofrimento, pela luta constante contra o mal, pelo nosso próprio sacrifício. Graças a estes, a alma adquire a experiência e a sabedoria. Os seus frutos verdes e amargos convertem-se, sob a ação regeneradora da prova, sob os raios do Sol divino, em frutos doces, aromáticos, amadurecidos, que devem ser colhidos em mundos superiores.


A ignorância das leis universais faz-nos ter aversão aos nossos males. Se compreendêssemos quanto esses males são necessários ao nosso adiantamento, se soubéssemos saboreá-los em seu amargor, não mais nos pareceriam um fardo. Porém, todos odiamos a dor e só apreciamos a sua utilidade quando deixamos o mundo onde se exerce o seu império. Ela faz jorrar de nós tesouros de piedade, de carinho e afeição. Esses que não a têm conhecido estão sem méritos; sua alma foi preparada muito superficialmente. Nesses, coisa alguma está enraizada: nem o sentimento nem a razão. Visto não terem passado pelo sofrimento, permanecem indiferentes, insensíveis aos males alheios.


Em nossa cegueira, estamos quase sempre prontos a amaldiçoar as nossas vidas obscuras, monótonas e dolorosas; mas, quando elevamos nossa vista acima dos horizontes limitados da Terra, quando discernimos o verdadeiro motivo das existências, compreendemos que todas elas são preciosas, indispensáveis para domar os espíritos orgulhosos, para nos submeter a essa disciplina moral, sem o que não há progresso algum.


Livres em nossas ações, isentos de males, de cuidados. deixar-nos-íamos impulsionar pelo sopro das paixões, deixar-nos-íamos arrebatar pelo temperamento. Longe de trabalharmos pela nossa melhoria, nada mais faríamos do que amontoar faltas novas sobre as faltas passadas; no entanto, comprimidos pelo sofrimento, em existências humildes, habituamo-nos à paciência, ao raciocínio, adquirimos essa calma de pensamento indispensável àquele que quiser ouvir a voz da razão no crisol da dor que se depuram as grandes almas. Às vezes, sob nossa vista, anjos de bondade vêm tragar o cálice de amargura, como exemplificação aos que são assustados pelos tormentos da paixão. A prova é uma reparação necessária, aceita com conhecimento de causa por muitos dentre nós. Oxalá assim pensemos nos momentos de desânimo, e que o espetáculo dos males suportados com essas grandes resignações nos dê a força de conservarmo-nos fiéis aos nossos próprios compromissos, às resoluções viris que tomamos antes de encarnar.


A nova fé resolveu o grande problema da depuração pela dor. As vozes dos Espíritos animam-nos nas ocasiões críticas. Esses mesmos que suportaram todas as agonias da existência terrestre dizem-nos hoje:


“Padeci e só os sofrimentos é que me tornaram feliz. Resgataram muitos anos de luxo e de ociosidade. A dor levou-me a meditar, a orar e, no meio dos inebriamentos do prazer, jamais a reflexão salutar deixou de penetrar minha alma, jamais a prece deixou de ser balbuciada pelos meus lábios. Abençoadas sejam as minhas provações, pois finalmente elas me abriram o caminho que conduz à sabedoria e à verdade.” (xcvii)


Eis a obra do sofrimento! Não será essa a maior de todas as obras que se efetuam na Humanidade? Ela se executa em silêncio, secretamente, porém os seus resultados são incalculáveis. Desprendendo a alma de tudo o que é vil, material e transitório, eleva-a, impulsando-a para o futuro, para os mundos que são a sua herança. Fala-me de Deus e das leis eternas. Certamente, é belo ter um fim glorioso, morrer jovem, lutando por seu país. A História registrará o nome dos heróis, e as gerações renderão à sua memória um justo tributo de admiração. Mas, uma longa vida de dores, de males suportados pacientemente, é muito mais fecunda para o adiantamento do Espírito. Sem dúvida que a História não falará então a vosso respeito. Todas essas vidas obscuras e mudas, existências de luta silenciosa e de recolhimento, tombam no olvido, mas esses que as enfrentaram encontram na luz espiritual a recompensa. Só a dor pode abrandar o nosso coração, avivar os fogos da nossa alma. É o cinzel que lhe dá proporções harmônicas, que lhe apura os contornos e a faz resplandecer em sua perfeita beleza. Uma obra de sacrifício, lenta, contínua, produz maiores efeitos que um ato sublime, porém insulado.


Consolai-vos, pois, vós todos que sofreis, esquecidos na sombra de males cruéis, e vós que sois desprezados por causa da vossa ignorância e das vossas faculdades acanhadas. Sabeis que entre vós se acham Espíritos eminentes, que abandonaram por algum tempo as suas faculdades brilhantes, aptidões e talentos, e quiseram reencarnar como ignorantes para se humilharem. Muitas inteligências estão veladas pela expiação, mas no momento da morte esses véus cairão, deixando eclipsados os orgulhosos que antes as desdenhavam. Não devemos desprezar pessoa alguma. Sob humildes e disformes aparências, mesmo entre os idiotas e os loucos, grandes Espíritos ocultos na matéria expiam um passado tenebroso.


Oh! vidas simples e dolorosas, embebidas de lágrimas, santificadas pelo dever; vidas de lutas e de renúncia, existências de sacrifício para a família, para os fracos, para os pequenos, mais meritórias que as dedicações célebres, vós sois outros tantos degraus que conduzem a alma à felicidade. É a vós, é às humilhações, é aos obstáculos de que estais semeadas que a alma deve sua pureza, sua força, sua grandeza. Vós somente, nas angústias de cada dia, nas imolações da matéria, conferis à alma a paciência, a resolução, a constância, todas as sublimidades da virtude, para então se obter essa coroa, essa auréola esplêndida, prometida no espaço para a fronte dos que sofrem, lutam e vencem!


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Se há prova cruel, essa é a perda dos entes amados; é quando, um após outro, os vemos desaparecer, levados pela morte; é quando a solidão se faz pouco a pouco em torno de nós, cheia de silêncio e trevas. É quando a velhice, gelada, muda, se adianta e vai colocando o sinal em nossa fronte, amortecendo os nossos olhos, enrijando os nossos músculos, curvando-nos ao seu peso; é quando vem, em seguida, a tristeza, o desgosto de tudo e uma grande sensação de fadiga, uma necessidade de repouso, uma espécie de sede do nada. Oh! nessa hora atribulada, nesse crepúsculo da vida, como se rejuvenesce e reconforta o lampadário que brilha na alma do crente, a fé no futuro infinito, nas novas vidas renascentes, a fé na Justiça, na suprema Bondade!


Essas partidas de todos os que nos são caros são outros tantos avisos solenes; arrancam-nos do egoísmo, mostram-nos a puerilidade das nossas preocupações materiais, das nossas ambições terrestres, e convidam a nos prepararmos para essa grande viagem.


A perda de uma mãe é irreparável. Quanto vácuo em nós, ao nosso redor, assim que essa amiga, a melhor, a mais antiga e mais certa de todas, desce ao túmulo; assim que esses olhos, que nos contemplaram com amor, se fecham para sempre; assim que esses lábios, que tantas vezes repousaram sobre nossa fronte, se esfriam! O amor de uma mãe não será o que há de mais puro, de mais desinteressado? Não será como que um reflexo da bondade de Deus?


A morte dos filhos também é fonte de amargos dissabores. Um pai, uma mãe não poderiam, sem grande mágoa, ver desaparecer o objeto da sua afeição. É nessas ocasiões que a filosofia dos Espíritos é de grande auxílio. Aos nossos pesares, à nossa dor de ver essas existências promissoras tão cedo interrompidas ela responde que a morte prematura é, muitas vezes, um bem para o Espírito que parte e se acha livre dos perigos e das seduções da Terra. Essa vida tão curta – para nós inexplicável mistério – tinha sua razão de ser. A alma confiada aos nossos cuidados, às nossas caricias, veio para completar a obra que deixara inacabada em encarnação anterior. Não vemos as coisas senão pelo prisma humano e daí resultam os erros. A passagem desses entes sobre a Terra ter-nos-á sido útil, fazendo brotar do nosso coração essas santas emoções da paternidade, esses sentimentos delicados que nos eram desconhecidos, porém que, produzindo o enternecimento, nos tornarão melhores. Ela formará laços assaz poderosos que nos liguem a esse mundo invisível, onde todos nos deveremos reunir... É nisso que consiste a beleza da doutrina dos Espíritos. Assim, esses seres não estão perdidos para nós. Deixam-nos por um instante, mas, finalmente, deveremos juntar-nos a eles.


Mas, que digo eu, a nossa separação só é aparente. Essas almas, esses filhos, essa mãe bem-amada estão perto de nós. Seus fluidos, seus pensamentos envolvem-nos; seu amor protege-nos. Podemos mesmo comunicar-nos com eles, recebermos suas animações, seus conselhos. Sua afeição para conosco não ficou desvanecida, pois a morte tornou-a mais profunda, mais esclarecida. Eles exortam-nos a desviar para longe essa tristeza vã, essas mágoas estéreis, cujo espetáculo os torna infelizes. Suplicam-nos que trabalhemos com coragem e perseverança para o nosso melhoramento, a fim de tornarmos a encontrá-los, de nos reunirmos a eles na vida espiritual.


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É um dever lutar contra a adversidade. Abandonar-nos, deixar-nos levar pela preguiça, sofrer os males da vida sem reagir seria uma covardia. Mas, quando os nossos esforços se tornam supérfluos, quando tudo é inevitável, chega então o momento de apelarmos à resignação. Nenhum poder seria capaz de desviar de nós as conseqüências do passado. Revoltar-nos contra a lei moral seria tão insensato como o querermos resistir às leis de extensão e gravidade. Um louco pode procurar lutar contra a ordem imutável das coisas, mas o espírito sensato acha na provação os meios de retemperar, de fortificar as suas qualidades viris. A alma intrépida aceita os males do destino, mas, pelo pensamento, eleva-se acima deles e daí faz um degrau para atingir a virtude.


As aflições mais cruéis, as mais profundas, quando são aceitas com essa submissão, que é o consentimento da razão e do coração, indicam, geralmente, o término dos nossos males, o pagamento da última fração do nosso débito. É o momento decisivo em que nos cumpre permanecer firmes, fazendo apelo a toda a nossa resolução, a toda a nossa energia moral, a fim de sairmos vitoriosos da prova e recolhermos os benefícios que ela nos oferece.


Muitas vezes, nos momentos críticos, o pensamento da morte vem visitar-nos. Não é repreensível o solicitar a morte; ela, porém, só é realmente desejável quando se triunfa de todas as paixões. Para que desejar a morte, quando, não estando ainda curados os nossos vícios, precisamos novamente voltar para nos purificarmos em penosas encarnações? Nossas faltas são como túnica de Nesso apegada ao nosso ser, e de que somente nos poderemos desembaraçar pelo arrependimento e pela expiação.


A dor reina sempre como soberana sobre o mundo; todavia, um exame atento mostra-nos com que sabedoria e previdência a vontade divina regulou os seus efeitos. Gradativamente, a Natureza encaminha-se para uma ordem de coisas menos terrível, menos violenta. Nas primeiras idades do nosso planeta, a dor era a única escola, o único aguilhão para os seres. Mas, pouco a pouco, atenua-se o sofrimento; males medonhos – a peste, a lepra, a fome – desaparecem. Já os tempos em que vivemos são menos ásperos do que os do passado. O homem domou os elementos, reduziu as distâncias, conquistou a Terra. A escravidão não mais existe. Tudo evolve, tudo progride. Lentamente, mas com segurança, o mundo e a própria Natureza aprimoram-se. Tenhamos confiança na potência diretora do Universo. Nosso espírito acanhado não poderia julgar o conjunto dos meios de que ela se serve. Só Deus tem noção exata dessa cadência rítmica, dessa alternativa necessária da vida e da morte, da noite e do dia, da alegria e da dor, de que se destacam, finalmente, a felicidade e o aperfeiçoamento das suas criaturas. Deixemos-lhe, pois, o cuidado de fixar a hora da nossa partida e esperemo-la sem desejá-la e sem temê-la.


Enfim, o ciclo das provas está percorrido; o justo sente que o termo está próximo. As coisas da Terra empalidecem pouco a pouco aos seus olhos. O Sol parece-lhe suave, as flores sem cor, o caminho mais desbastado. Cheio de confiança, vê aproximar-se a morte. Não será ela a calma após a tempestade, o porto depois de travessia procelosa?


Como é grande o espetáculo oferecido à alma resignada que se apresta para deixar a Terra após uma vida dolorosa! Atira um último olhar sobre seu passado; revê, numa espécie de penumbra, os desprezos suportados, as lágrimas concentradas, os gemidos abafados, os sofrimentos corajosamente sustentados. Docemente, sente-se desprender dos laços que a prendiam a este mundo. Vai abandonar seu corpo de lama, deixar para bem longe todas as podridões materiais. Que poderia temer? Não deu ela provas de abnegação, não sacrificou seus interesses à verdade, ao dever? Não esgotou, até o fim, o cálice purificador?


Também vê o que a espera. As imagens fluídicas dos seus atos de sacrifício e de renúncia, seus pensamentos generosos, tudo a precedeu, assinalando, como balizas brilhantes, a estrada da sua ascensão. São esses os tesouros da vida nova.


Ela distingue tudo isso e seu olhar eleva-se ainda mais alto, lá, aonde ninguém vai senão com a luz na fronte, o amor e a fé no coração. Perante esse espetáculo, uma alegria celeste penetra-a; quase lastima não ter sofrido por mais tempo. Uma derradeira prece, uma espécie de grito de alegria irrompe das profundezas do seu ser e sobe ao Pai e ao seu Mestre bem-amados. Os ecos no espaço perpetuam esse grito de liberdade, ao qual se juntam os cânticos dos Espíritos felizes que, em multidão, se apressam a recebê-la.