Capítulo 40: Livre-arbítrio e Providência



   


A questão do livre-arbítrio é uma das que mais têm preocupado filósofos e teólogos. Conciliar a vontade e a liberdade do homem com o exercício das leis naturais e a vontade divina afigurava-se tanto mais difícil quanto a fatalidade cega parecia, aos olhos de muitos, pesar sobre o destino humano. O ensino dos Espíritos veio elucidar esse problema. A fatalidade aparente, que semeia males pelo caminho da vida, não é mais que a conseqüência do nosso passado, que um efeito voltado sobre a sua causa; é o complemento do programa que aceitamos antes de renascer, atendendo assim aos conselhos dos nossos guias espirituais, para nosso maior bem e elevação.


Nas camadas inferiores da criação a alma ainda não se conhece. Só o instinto, espécie de fatalidade, a conduz, e só nos seus tipos mais evoluídos é que aparecem, como o despontar da aurora, os primeiros rudimentos das faculdades do homem. Entrando na Humanidade, a alma desperta para a liberdade moral. Seu discernimento e sua consciência desenvolvem-se cada vez mais, à proporção que percorre essa nova e imensa jornada. Colocada entre o bem e o mal, compara e escolhe livremente. Esclarecida por suas decepções e seus sofrimentos, é no seio das provas que obtém a experiência e firma a sua estrutura moral.


Dotada de consciência e liberdade, a alma humana não pode recair na vida inferior, animal. Suas encarnações sucedem-se na escala dos mundos até que ela tenha adquirido os três bens imorredouros, alvo de seus longos trabalhos: a Sabedoria, a Ciência e o Amor, cuja posse liberta-a, para sempre, dos renascimentos e da morte, franqueando-lhe o acesso à vida celeste.


Pelo uso do seu livre-arbítrio, a alma fixa o próprio destino, prepara as suas alegrias ou dores. Jamais, porém, no curso de sua marcha – na provação amargurada ou no seio da luta ardente das paixões –, lhe será negado o socorro divino. Nunca deve esmorecer, pois, por mais indigna que se julgue; desde que em si desperta a vontade de voltar ao bom caminho, à estrada sagrada, a Providência dar-lhe-á auxílio e proteção.


A Providência é o espírito superior, é o anjo velando sobre o infortúnio, o consolador invisível, cujas inspirações reaquecem o coração gelado pelo desespero, cujos fluidos vivificantes sustentam o viajor prostrado pela fadiga; é o farol aceso no meio da noite, para a salvação dos que erram sobre o mar tempestuoso da vida. A Providência é, ainda, principalmente, o amor divino derramando-se a flux sobre suas criaturas. Que solicitude, que previdência nesse amor! Não foi para a alma somente, para modelar a sua vida e servir de cenário aos seus progressos, que ela suspendeu os mundos no espaço, inflamou os sóis, preparou os continentes e formou os mares? Só para a alma toda essa grande obra foi executada, só para ela é que forças naturais combinam-se e universos desabrocham no seio das nebulosas.


A alma é criada para a felicidade, mas para poder apreciar essa felicidade, para conhecer-lhe o justo valor, deve conquistá-la por si própria e, para isso, precisa desenvolver as potências encerradas em seu íntimo. Sua liberdade de ação e sua responsabilidade aumentam com a própria elevação, porque quanto mais se esclarece, mais pode e deve conformar o exercício de suas forças pessoais com as leis que regem o Universo.


A liberdade do ser se exerce, portanto, dentro de um círculo limitado: de um lado, pelas exigências da lei natural, que não pode sofrer alteração alguma e mesmo nenhum desarranjo na ordem do mundo; de outro, por seu próprio passado, cujas conseqüências lhe refluem através dos tempos, até à completa reparação. Em caso algum o exercício da liberdade humana pode obstar à execução dos planos divinos; do contrário a ordem das coisas seria a cada instante perturbada. Acima de nossas percepções limitadas e variáveis, a ordem imutável do Universo prossegue e mantém-se. Quase sempre julgamos um mal aquilo que para nós é o verdadeiro bem. Se a ordem natural das coisas tivesse de amoldar-se aos nossos desejos, que horríveis alterações daí não resultariam?


O primeiro uso que o homem fizesse da liberdade absoluta seria para afastar de si as causas de sofrimento e para se assegurar, desde logo, uma vida de felicidade. Ora, se há males que a inteligência humana tem o dever de conjurar, de destruir – por exemplo, os que são provenientes da condição terrestre –, outros há, inerentes à nossa natureza moral, que somente dor e compressão podem vencer; tais são os vícios. Nesses casos, torna-se a dor uma escola, ou, antes, um remédio indispensável: as provas sofridas não são mais que distribuição eqüitativa da justiça infalível. Portanto, é a ignorância dos fins a que Deus visa que nos faz recriminar a ordem do mundo e suas leis. Criticamo-las porque desconhecemos o modo por que se cumprem.


O destino é resultante, através de vidas sucessivas, de nossas próprias ações e livres resoluções.


No estado de Espírito, quando somos mais esclarecidos sobre as nossa imperfeições e estamos preocupados com os meios de atenuá-las, aceitamos a vida material sob forma e condições que mais nos parecem apropriadas a esse cometimento. Os fenômenos do hipnotismo e da sugestão mental explicam-nos o que sucede em tal caso, sob a influência dos nossos protetores espirituais. No estado de sonambulismo, a alma, sob a sugestão do magnetizador, obriga-se a executar tal ou qual ato em um tempo dado. Voltando ao estado de vigília sem haver conservado aparentemente recordação alguma desse compromisso, ela executa, sem discrepância de um ponto, tudo o que havia prometido. Do mesmo modo, o homem não parece ter guardado memória das resoluções tomadas antes de renascer; mas, chegando a ocasião, colocar-se-á ele à frente dos acontecimentos premeditados, a fim de executar a parte que lhe compete e que se torna necessária ao seu progresso e à observância da inevitável lei.