Capítulo 36: Os Espíritos Inferiores


 


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O Espírito puro traz em si próprio sua luz e sua felicidade, que o seguem por toda parte e lhe integram o ser. Assim também o Espírito culpado consigo arrasta a própria noite, seu castigo, seu opróbrio. Pelo fato de não serem materiais, não deixam de ser ardentes os sofrimentos das almas perversas. O inferno é mais que um lugar quimérico, um produto de imaginação, um espantalho talvez necessário para conter os povos na infância, porém que, neste sentido, nada tem de real. É completamente outro o ensino dos Espíritos sobre os tormentos da vida futura; aí não figuram hipóteses.


Esses sofrimentos, com efeito, são-nos descritos por aqueles mesmos que os suportam, assim como outros vêm patentear-nos a sua ventura. Nada é imposto por uma vontade arbitrária; nenhuma sentença é pronunciada; o Espírito sofre as conseqüências naturais de seus atos, que, recaindo sobre ele próprio, o glorificam ou acabrunham. O ser padece na vida de além-túmulo não só pelo mal que fez, mas também por sua inação e fraqueza. Enfim, essa vida é obra sua: tal qual ele a produziu. O sofrimento é inerente ao estado de imperfeição, mas atenua-se com o progresso e desaparece quando o Espírito vence a matéria.


A punição do Espírito mau continua não só na vida espiritual, mas, ainda, nas encarnações sucessivas que o levam a mundos inferiores, onde a existência é precária e a dor reina soberanamente; mundos que podemos qualificar de infernos.


A Terra, em certos pontos de vista, deve entrar nessa categoria. Ao redor desses orbes, galés rolando na imensidade, flutuam legiões sombrias de Espíritos imperfeitos, esperando a hora da reencarnação.


Vimos quanto é penosa, prolongada, cheia de perturbação e angústia, a fase do desprendimento corporal para o Espírito entregue às más paixões. A ilusão da vida terrena prossegue para ele durante anos. Incapaz de compreender o seu estado e de quebrar os laços que o tolhem, nunca elevando sua inteligência e seu sentimento além do círculo estreito de sua existência, continua a viver, como antes da morte, escravizado aos seus hábitos, às suas inclinações, indignando-se porque seus companheiros parecem não mais vê-lo nem ouvi-lo, errante, triste, sem rumo, sem esperança, nos lugares que lhe foram familiares. São as almas penadas, cuja presença já de há muito se tem suspeitado em certas residências e cuja realidade é demonstrada diariamente por muitas e ruidosas manifestações.


A situação do Espírito depois da morte é resultante das aspirações e gostos que ele desenvolveu em si. Aquele que concentrou todas as suas alegrias, toda a sua ventura nas coisas deste mundo, nos bens terrestres, sofre cruelmente desde que disso se vê privado. Cada paixão tem em si mesmo a sua punição. O Espírito que não soube libertar-se dos apetites grosseiros e dos desejos brutais torna-se destes um joguete, um escravo. Seu suplício é estar atormentado por eles sem os poder saciar.


Pungente é a desolação do avarento, que vê dispersar-se o ouro e os bens que amontoou. A estes se apega apesar de tudo, entregue a uma terrível ansiedade, a transportes de indescritível furor.


Igualmente digna de piedade é a situação dos grandes orgulhosoS, dos que abusaram da fortuna e de seus títulos, só pensando na glória e no bem-estar, desprezando os pequenos, oprimindo os fracos. Para eles não mais existem os cortesãos servis, a criadagem desvelada, os palácios, os costumes suntuosos. Privados de tudo o que lhes fazia a grandeza na Terra, a solidão e o abandono esperam-no no espaço. Se as massas novamente os seguem é para lhes confundir o orgulho e acabrunhá-los de zombarias.


Mais tremenda ainda é a condição dos Espíritos cruéis e raptores, dos criminosos de qualquer espécie que sejam, dos que fizeram correr sangue ou calcaram a justiça aos pés. Os lamentos de suas vítimas, as maldições das viúvas e dos órfãos soam aos seus ouvidos durante um tempo que se lhes afigura a eternidade. Sombras irônicas e ameaçadoras os rodeiam e os perseguem sem descanso.


Não pode haver para eles um retiro assaz profundo e oculto; em vão procuram o repouso e o esquecimento.


Somente a entrada numa vida obscura, a miséria, o abatimento, a escravidão lhes poderão atenuar os males.


Nada iguala a vergonha, o terror da alma que, diante de si, vê elevarem-se sem cessar as suas existências culpadas, as cenas de assassínios e de espoliação, pois se sente descoberta, penetrada por uma luz que faz reviver as suas mais secretas recordações. A lembrança, esse aguilhão incandescente, a queima e despedaça.


Quando se experimenta esse sofrimento, devemos compreender e louvar a Providência Divina, que, no-lo poupando durante a vida terrena, nos dá assim, com a calma de espírito, uma liberdade maior de ação, para trabalharmos em nosso aperfeiçoamento.


Os egoístas, os homens exclusivamente preocupados com seus prazeres e interesses, preparam também um penoso futuro. Só tendo amado a si próprios, não tendo ajudado, consolado, aliviado pessoa alguma, do mesmo modo não encontram nem simpatias nem auxílios nem socorro nessa nova vida. Insulados, abandonados, para eles o tempo corre uniforme, monótono e lento. Experimentam triste enfado, uma incerteza cheia de angústias. O arrependimento de haverem perdido tantas horas, desprezado uma existência, o ódio dos interesses miseráveis que os absorveram, tudo isso devora e consome essas almas. Sofrem na erraticidade até que um pensamento caridoso os toque e luza em sua noite como um raio de esperança; até que, pelos conselhos de um Espírito, rompam, por sua vontade, a rede fluídica que os envolve e decidam-se a entrar em melhor caminho.


A situação dos suicidas tem analogia com a dos criminosos; muitas vezes, é ainda pior. O suicídio é uma covardia, um crime cujas conseqüências são terríveis. Segundo a expressão de um Espírito, o suicida não foge ao sofrimento senão para encontrar a tortura. Cada um de nós tem deveres, uma missão a cumprir na Terra, provas a suportar para nosso próprio bem e elevação. Procurar subtrair-se, libertar-se dos males terrestres antes do tempo marcado é violar a lei natural, e cada atentado contra essa lei traz para o culpado uma violenta reação. O suicídio não põe termo aos sofrimentos físicos nem morais. O Espírito fica ligado a esse corpo carnal que esperava destruir; experimenta, lentamente, todas as fases de sua decomposição; as sensações dolorosas multiplicam-se, em vez de diminuírem. Longe de abreviar sua prova, ele a prolonga indefinidamente; seu mal-estar, sua perturbação persistem por muito tempo depois da destruição do invólucro carnal. Deverá enfrentar novamente as provas às quais supunha poder escapar com a morte e que foram geradas pelo seu passado. Terá de suportá-las em piores condições, refazer, passo a passo, o caminho semeado de obstáculos e, para isso, sofrerá uma encarnação mais penosa ainda que aquela à qual pretendeu fugir.


São espantosas as torturas dos que acabam de ser supliciados e as descrições que delas nos fazem certos assassinos célebres podem comover os corações mais duros, mostrando à justiça humana os tristes efeitos da pena de morte. A maioria desses infelizes acha-se entregue a uma excitação aguda, a sensações atrozes que os tornam furiosos. O horror de seus crimes, a visão de suas vítimas, que parecem persegui-los e trespassá-los como uma espada, alucinações e sonhos horrendos, tal é a sorte que os aguarda.


Muitos, buscando um derivativo a seus males, lançam-se aos encarnados de tendências semelhantes e os impelem ao crime. Outros, devorados pelo fogo inextinguível dos remorsos, procuram, sem tréguas, um refúgio que não podem encontrar. Sob seus passos, ao seu redor, por toda parte, eles julgam ver cadáveres, figuras ameaçadoras e lagos de sangue.


Os Espíritos maus sobre os quais recai o peso acabrunhador de suas faltas não podem prever o futuro; nada sabem das leis superiores. Os fluidos que os envolvem privam-nos de toda relação com os Espíritos elevados que queiram arrancá-los à sua inércia, às suas inclinações, pois isso lhes é difícil por causa de sua natureza grosseira, quase material, e do limitado campo de suas percepções; resulta daí uma ignorância completa da própria sorte e uma tendência para acreditarem que são eternos os seus sofrimentos. Alguns, imbuídos ainda de prejuízos católicos, supõem e dizem viver no inferno. Devorados pela inveja e pelo ódio, muitos, a fim de se distraírem de suas aflições, procuram os homens fracos e inclinados ao mal. Apegam-se a eles e insuflam-lhes funestas aspirações. Destes excessos, porém, advêm-lhes, pouco a pouco, novos sofrimentos. A reação do mal causado prende-os numa rede de fluidos mais sombrios. As trevas se fazem mais completas; um círculo estreito forma-se e à sua frente levanta-se o dilema da reencarnação penosa, dolorosa.


Mais calmos são aqueles a quem o arrependimento tocou e que, resignados, vêem chegar o tempo das provas ou estão resolvidos a satisfazer a eterna justiça. O remorso, como uma pálida claridade, esclarece vagamente sua alma, permite que os bons Espíritos falem ao seu entendimento, animando-os e aconselhando-os.


 


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