Prefácio da Nova Edição Francesa


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Dez anos sucederam à publicação desta obra. A História desdobrou sua trama e consideráveis acontecimentos se realizaram em nosso país. A Concordata foi denunciada. O Estado cortou o laço que o prendia à Igreja Romana. Ressalvados alguns pontos, foi com uma espécie de indiferença que a opinião pública recebeu as medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituições católicas.


De que procede esse estado de espírito, essa desafeição não apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? – De não ter esta realizado esperança alguma das que havia suscitado. Nem soube compreender, nem desempenhar o seu papel e os deveres de guia e educadora de almas, que assumira.


Há um século, vinha a Igreja Católica atravessando uma das mais formidáveis crises que registra a sua história. Na França, a Separação veio acentuar esse estado de coisas e agravá-lo ainda mais.


Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol intelectual do mundo, em perpétuo conflito com o direito novo, que jamais aceitou; em contradição, portanto, quase em todos os pontos essenciais, com as leis civis de todos os países, repelida e detestada pelo povo e, principalmente, pelo operariado, já não resta à Igreja mais que um punhado de adeptos entre as mulheres, os velhos e as crianças. O futuro cessou de lhe pertencer, pois que a educação da mocidade acaba de lhe ser arrebatada, não sem alguma violência, pelas recentes leis da República francesa.


Aí está, no limiar do século XX, o balanço atual da Igreja romana. Desejaríamos, num estudo imparcial, mesmo respeito só, investigar as causas profundas desse eclipse do poder eclesiástico, eclipse parcial ainda, mas que, em futuro não remoto, ameaça converter-se em total e definitivo.


A Igreja é atualmente impopular. Ora, nós vivemos época em que a popularidade, sagração dos novos tempos, é indispensável à durabilidade das instituições. Quem lhe não possuir o cunho, arrisca-se a perecer em pouco tempo no insulamento e no olvido.


Como chegou a Igreja Católica a esse ponto? – Pela excessiva negligência que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja só foi verdadeiramente popular e democrática em suas origens, durante os tempos apostólicos, períodos de perseguição e de martírio; e é o que então justificava a sua capacidade de proselitismo, a rapidez de suas conquistas, o seu poder de persuasão e de irradiação. No dia em que foi oficialmente reconhecida pelo Império, a partir da conversão de Constantino, tornou-se a amiga dos Césares, a aliada e, algumas vezes, a cúmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou na era infecunda das argúcias teológicas, das querelas bizantinas e, desse momento em diante, tomou sempre ou quase sempre o partido do mais forte. Feudal na Idade Média, essencialmente aristocrática no reinado de Luiz XIV, só fez à Revolução tardias e forçadas concessões.


Todas as emancipações intelectuais e sociais se efetuaram contra a sua vontade. Era lógico, fatal, que se voltassem contra ela: é o que na hora atual se verifica.


Adstrita, na França, por muito tempo à Concordata, incessantemente se manteve em conflito sistemático e latente com o Estado. Essa união forçada, que durava de um século para cá, devia necessariamente terminar pelo divórcio. A lei da Separação acaba de o pronunciar. O primeiro uso que de sua liberdade, ostensivamente reconquistada, fez a Igreja foi lançar-se nos braços dos partidos reacionários, com esse gesto provando que nada, há um século, aprendeu nem esqueceu.


Empenhando solidariedade com os partidos políticos que já fizeram seu tempo, a Igreja Católica, sobretudo a de França, por isso mesmo se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo gênero de morte deles: a impopularidade. Um papa genial, Leão XIII, tentou por momentos desligá-la de todo compromisso direto ou indireto com o elemento reacionário; mas não foi escutado nem obedecido.


O novo pontífice, Pio X, reatando a tradição de Pio IX, seu antecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do Sílabo e da infalibilidade. Sob a vaga denominação de modernismo, acaba ele de anatematizar a sociedade moderna e combater qualquer tentativa de reconciliação, ou de conciliação com ela. A guerra religiosa ameaça atear-se nos quatro ângulos do país. O prestígio de grandeza que, a poder do gênio diplomático, Leão XIII havia assegurado à Igreja, desvaneceu-se em poucos anos. O catolicismo, restringido ao domínio da consciência privada e individual, nunca mais desfrutará a vida oficial e pública.


Qual é – inda uma vez o inquiriremos – a causa profunda desse enfraquecimento da instituição mais poderosa do mundo? Em nossa opinião, há unicamente uma causa profunda capaz de explicar esse fenômeno. Acreditarão os políticos, filósofos e os sábios encontrá-la nas circunstâncias exteriores, em razão de ordem sociológica. Por nossa parte, iremos procurá-la no próprio coração da Igreja. De um mal orgânico é que ela deperece, atingida como nela se acha a sede vital.


A vida da Igreja era animada pelo espírito de Jesus. O sopro do Cristo, esse divino sopro de fé, caridade e fraternidade universal era, de fato, o motor desse vasto organismo, a peça motriz de suas funções vitais. Ora, há muito tempo o espírito de Jesus parece ter abandonado a Igreja. Não é mais a chama do Pentecostes que irradia nela e em torno dela; essa generosa labareda se extinguiu e nenhum Cristo há que a reacenda.


Grande e bela, entretanto, senão benéfica, foi outrora a Igreja de França, asilo dos mais elevados espíritos, das mais nobres inteligências. Nos tempos bárbaros, era ao mesmo tempo a ciência e a filosofia, a arte e a beleza, a oração e a fé. Os grandes mosteiros, as abadias célebres tornaram-se os refúgios do pensamento. Ali se conservaram os tesouros intelectuais, as relíquias do gênio antigo. No século XIII ela inspirou uma bela parte do que o espírito humano produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles indivíduos rudes, aqueles bárbaros mal polidos, e com um gesto os prosternava na atitude da oração.


E agora já não vive, já não brilha senão do reflexo de sua passada grandeza. Onde estão hoje, na Igreja, os pensadores e os artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de verdades divinas, os grandes místicos adoradores do belo, os sonhadores do infinito cederam lugar aos políticos combativos e negocistas.


A casa do Senhor se transformou em casa bancária e em tribuna. A Igreja tem um reino que é deste mundo e nada mais que deste mundo. Já não é o sonho divino o que alimenta, não mais que ambições terrestres e uma arrogante pretensão de tudo dominar e dirigir.


As encíclicas e os cânones substituíram o sermão da montanha e os filhos do povo, as gerações que se sucedem, apenas têm por guia um catecismo esdrúxulo, recheado de noções incompreensíveis, em que se fala de hipóstase, de transubstanciação; um catecismo incapaz de valer por eficaz socorro nos momentos angustiosos da existência. Disso procede à irreligião do maior número. O culto de uma determinada “Nossa Senhora” chegou a render até dois milhões por ano, mas não há uma única edição popular do Evangelho entre os católicos.


Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de ar e luz e um sopro dos novos tempos têm sido sufocadas, reprimidas. Lamennais, H. Loyson, Didon, foram obrigados a se retratar ou abandonar o “grêmio”. O abade Loisy foi expulso de sua cátedra.


Curvada, há séculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda iniciativa, toda a energia viril, toda veleidade de independência. É tal a organização do Catolicismo que nenhuma decisão pode ser tomada, nenhum ato consumado, sem o consentimento e o sinal do poder romano. E Roma está petrificada em sua hierática atitude qual estátua do passado.


O cardeal Meignan, falando do Sacro Colégio, dizia um dia a um seu amigo: “Lá estão eles, os setenta anciãos, vergados ao peso, não dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem um til seja tirado, nem um til acrescentado ao depósito sagrado.” Em tais condições a Igreja Católica já não é moralmente uma instituição viva, não é mais um corpo em que circule a vida, senão um túmulo em que jaz, como amortalhado, o pensamento humano.


longos séculos, não era a Igreja mais que um poder político, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a História com o fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e imperadores, com os quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia concebido um gigantesco plano: a cristandade, isto é, o conjunto dos povos católicos arregimentados, unidos como um exército formidável em torno do papa romano, soberano senhor e ponto culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente humano.


Ao Império Romano, solapado pelos bárbaros, tinha a Igreja substituído o império do Ocidente, vasta e poderosa instituição em torno da qual toda a Idade Média gravitou. Nessa confederação política e religiosa tudo desaparecia e dela unicamente duas cabeças emergiam: o papa e o imperador, “essas duas metades de Deus”.


Jesus não havia fundado a religião do Calvário para dominar os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e pregar, pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o Amor.


Silenciemos sobre os despotismos solidários dos reis e da Igreja; esqueçamos a Inquisição e suas vítimas e voltemos aos tempos atuais.


Um dos maiores erros da Igreja, no século dezenove, foi à definição do dogma da infalibilidade pessoal do pontífice romano. Semelhante dogma, imposto como artigo de fé, foi um desafio lançado à sociedade moderna e ao espírito humano.


Proclamar, no século vinte, em face de uma geração febricitante, atormentada da ânsia de infinito, perante homens e povos que aspiram à verdade sem a poder atingir, que procuram a justiça, a liberdade, como o veado sequioso procura e aspira à água da fonte, o manancial do rio, proclamar – dizemos – num mundo assim, em adiantada gestação, que um único homem na Terra possui toda a verdade, toda a luz, toda a ciência, não será – repetimos – lançar um desafio a toda a Humanidade, a essa Humanidade condenada, na Terra, ao suplício de Tântalo, às dilacerações de Prometeu?


Dificilmente se reabilitará dessa gravíssima falta a Igreja Católica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedora da encrespação de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quando, ao lhe ser comunicada, no leito de morte, a definição da infalibilidade pontifícia, exclamou: “Nunca hei de adorar o ídolo do Vaticano!” Será exagerado o termo “ídolo”? – Como os Césares romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz questão de ser chamado pontífice e rei. Que é ele senão o sucessor dos imperadores de Roma e de Bizâncio? Seu próprio vestuário, seus gestos e atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cúria, tudo recorda as pompas cesarianas dos piores dias, e foi o eloquente orador espanhol, o religioso Emílio Castelar, que exclamou um dia, vendo Pio IX carregado na seda, em forma de procissão, a caminho de S. Pedro: “Aquele não é o pescador da Galileia, é um sátrapa do Oriente!”


causa íntima da decadência e impopularidade da Igreja Romana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. O espírito do Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a sustentava, a Igreja caiu nas mãos da política humana. Já não é uma instituição de ordem divina; o pensamento de Jesus não mais a inspira e os maravilhosos dons que o Espírito de Pentecostes lhe comunicava desapareceram.


Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga Sinagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo da sua liturgia e dos seus mistérios. Os padres já não conhecem a oculta significação das coisas; perderam o segredo da iniciação. Seus gestos se tornaram estéreis, suas bênçãos não mais abençoam, seus anátemas já não amaldiçoam. Foram apeados até ao nível comum e o povo, compreendendo que é nulo o seu poder e ilusório o seu mistério, encaminhou-se a outras influências e foi a outros deuses que passou a incensar.


Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha Sinagoga o Talmude havia desnaturado a Lei. E são os cultores da letra que atualmente a dirigem. Uma coletividade de fanáticos mesquinhos e violentos acabará por tirar à Igreja os últimos vestígios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistiremos provavelmente à ruína progressiva dessa instituição que foi durante vinte séculos a educadora do mundo, mas que parece haver falido à sua verdadeira vocação.


Daí se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade esteja comprometido irrevogavelmente e que o mundo inteiro deva soçobrar no materialismo como num oceano de lama? Longe disso. O reinado da letra acaba, o do espírito começa. A chama de Pentecostes, que abandona o candelabro de ouro da Igreja, vem acender outros archotes. A verdadeira revelação se inaugura no mundo pela virtude do invisível. Quando em um ponto o fogo sagrado se extingue, é para se atear noutro lugar. Jamais a noite envolve completamente em treva o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma estrela.


A alma humana, mediante suas profundas ramificações, mergulha no infinito. O homem não é um átomo isolado no imenso turbilhão vital. Seu espírito sempre está, por algum lado, em comunhão com a Causa eterna; seu destino faz parte integrante das harmonias divinas e da vida universal. Pela força das coisas há de o homem se aproximar de Deus. A morte das Igrejas, a decadência das religiões formalistas, não constituem sintoma de crepúsculo, mas, ao contrário, a aurora inicial de um astro que desponta. Nesta hora de perturbação em que nos encontramos, grande combate se trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma tempestade se forma sobre o vale; mas as culminâncias do pensamento continuam sempre imersas no azul e na serenidade.


Sursum corda! E de fato a vida eterna ante nós se descerra ilimitada e radiosa! Assim como no infinito milhares de mundos são arrebatados por seus sóis, rumo do incomensurável, num giro harmonioso, ritmado qual dança antiga e nem astro nem terra alguma torna a passar jamais pelo mesmo ponto, as almas, por seu turno, arrastadas pela atração magnética do seu invisível centro, prosseguem evolvendo no espaço, atraídas incessantemente por um Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o alcançar.


Força é reconhecer que esta doutrina é bem mais ampla que os dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro pertence a alguém ou alguma coisa, há de o ser indubitavelmente ao espiritualismo universal, a esse Evangelho da eternidade e do infinito!


Fevereiro, 1910.


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