Nota 7
Os fenômenos espíritas na Bíblia
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Muito se tem insistido sobre as proibições de Moisés, contidas no Êxodo, no Levítico e no Deuteronômio. É inspirado em tais proibições que certos teólogos condenam o estudo e a prática dos fatos espíritas. Mas o que Moisés condena são os mágicos, os adivinhos, os augures, numa palavra, tudo o que constitui a magia, e é o que o próprio espiritualismo moderno também condena. Essas práticas corrompiam a consciência do povo e lhe paralisavam a iniciativa; obscureciam nele a ideia divina, enfraquecendo a fé nesse Ente supremo e onipotente que o povo hebreu tinha a missão de proclamar. Por isso não cessavam os profetas de o advertir contra os encantamentos e sortilégios que o perdiam. *
* Ver, por exemplo, "Isaías", XLVII, 12-15.
As proibições de Moisés e dos profetas tinham apenas um fim: preservar os hebreus da idolatria dos povos vizinhos. É possível também que não visassem senão o abuso, o mau uso das evocações, porque, apesar dessas proibições, são abundantes na Bíblia os fenômenos espíritas. O papel dos videntes, dos oráculos, das pitonisas, dos inspirados de toda ordem é ali considerável. Lá não vemos Daniel, por exemplo, provocar, por meio da prece, fatos mediúnicos? (Daniel, IX, 21) O livro que traz o seu nome é, entretanto, reputado inspirado.
Como poderiam as proibições de Moisés servir de argumento aos crentes dos nossos dias, quando, nos três primeiros séculos da nossa era, nisso não viam os cristãos o menor obstáculo às suas relações com o mundo invisível?
Dizia S. João: “Não acrediteis em todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus.” (I João, IV, 1.) Não há aí uma proibição; ao contrário.
Os hebreus, cuja crença geral era que a alma do homem, depois da morte, era restituída ao scheol, para dele jamais sair (Job, X, 21, 22), não hesitavam em atribuir ao próprio Deus todas essas manifestações. Deus intervém a cada passo, na Bíblia, e às vezes mesmo em circunstâncias bem pouco dignas dele.
Era costume consultar os videntes sobre todos os fatos da vida íntima, sobre os objetos perdidos, as alianças, os empreendimentos de toda ordem. Lê-se em Samuel I, cap. IX, v. 9:
“Dantes, quando se ia consultar a Deus, dizia-se: Vinde, vamos ao vidente. – Porque os que hoje se chamam profetas, chamavam-se videntes.”
O sumo-sacerdote mesmo proferia julgamentos ou oráculos mediante um objeto de natureza desconhecida, chamado urim, que colocava sobre o peito. (Êxodo, XXVIII, 30. – Números, XXVII, 21)
Por uma singular contradição nos que negavam as manifestações das almas, ia-se muitas vezes evocar os mortos, admitindo desse modo os fatos, depois de haver negado a causa que os produzia. É assim que Saul faz evocar o Espírito de Samuel pela pitonisa de Êndor (1 Samuel, XXVII, 7-14.) *
* Ver também o fantasma do Livro de Jô, IV, 13-16.
De tais narrativas resulta que, não obstante a ausência de toda noção sobre a alma e a vida futura, a despeito das proibições de Moisés, entre os hebreus alguns acreditavam na sobrevivência e na possibilidade de comunicar com os mortos. Daí a explicar a desigualdade de inspiração dos profetas e seus frequentes erros, pela inspiração dos Espíritos mais ou menos esclarecidos, não há mais que um passo. Como o não deram os autores judaicos? E, entretanto, não havia outra explicação. Sendo Deus a infinita sabedoria, não é possível considerar proveniente dele uma doutrina que descura de fixar o homem sobre um ponto tão essencial como o dos seus destinos além-túmulo; ao passo que os Espíritos não são senão as almas dos homens desencarnados, mais ou menos puras e esclarecidas, não possuindo sobre as coisas senão limitado saber. Sua inspiração, projetando-se nos profetas, devia necessariamente traduzir-se por ensinos, ora opulentos e elevados, ora vulgares e eivados de erros.
Em muitos casos mesmo deveram eles ter em conta, em suas revelações, as necessidades do tempo e o estado de atraso do povo a que eram dirigidos.
Pouco a pouco as crenças dos judeus se ampliaram e se completaram ao contacto de outros povos mais adiantados em civilização. A ideia da sobrevivência e das existências sucessivas da alma, vinda do Egito e da índia, penetrou na Judéia. Os saduceus encrespavam os fariseus de terem assimilado dos orientais a crença nas vidas renascentes da alma. Esse fato é afirmado pelo historiador Josefo (Antig. Jud., I, XVIII). Os essênios e os terapeutas professavam a mesma doutrina. Talvez existisse mesmo, desde essa época na Judéia, como se provou mais tarde, ao lado da doutrina oficial, uma doutrina secreta, mais completa, reservada às inteligências de escol. *
* Ver Depois da morte, cap. 1°.
Como quer que seja, voltemos aos fatos espíritas mencionados na Bíblia, os quais estabelecem as relações dos hebreus com os Espíritos dos mortos, em condições análogas às que são hoje observadas.
Do mesmo modo que em nossos dias, os seus médiuns, a que eles chamavam profetas, eram como tais reconhecidos em razão de uma faculdade especial (Números, XII, 6), às vezes latente e que exigia um desenvolvimento particular semelhante ao ainda hoje praticado nos grupos espíritas, como o vemos a respeito de Josué, que Moisés “instrui” pela imposição das mãos (Números, XXVII, 15-23.) Esse fato se reproduz muitas vezes na história dos apóstolos.
Semelhante à dos médiuns, a lucidez dos profetas era intermitente. “Os mais esclarecidos profetas – diz Le Maistre de Sacy, em seu comentário do livro I dos Reis – nem sempre possuem a faculdade de arroubo na profecia.” (Ver também Isaías, XXIX, 10.) Tal qual hoje, as relações mediúnicas custavam por vezes a se estabelecer: Jeremias espera dez dias uma resposta à sua súplica. (Jer., XLII, 7.)
Outros exploravam sua pretensa lucidez, dela fazendo tráfico e ofício. Lê-se em Ezequiel, capítulo XIII, 2, 3 e 6:
“Filho do homem, dirige as tuas profecias aos profetas de Israel que se metem a profetizar, e dirás a estes que profetizam por sua cabeça: Aí dos profetas insensatos que seguem o seu próprio espírito e não veem nada!”.
“...Eles veem coisas vãs e adivinham a mentira, dizendo: o Senhor assim o disse, sendo que o Senhor os não enviou: e eles perseveram em afirmar o que uma vez disseram.” (Ver também Miquéias, III, 11 e Jeremias, V, 31.)
Na antiguidade judaica, muitas vezes se recorria à música para facilitar a prática da mediunidade. Eliseu reclama um tocador de harpa para poder profetizar (II Reis, 111,15), e a obscuridade era considerada propícia a essa ordem de fenômenos.
“O eterno quer assistir na obscuridade”, diz Salomão, falando do lugar santo, por ocasião da consagração do Templo (Crôn., li, VI, 1), e é, com efeito, no santuário que se dão muitas vezes as manifestações: aí se mostra a “nuvem” (II, Paralip., v, 13, 14), e nele vê Zacarias o anjo que lhe prediz o nascimento de seu filho. (Lucas, I, 10 e seguintes.)
A música era igualmente empregada para acalmar as pessoas atuadas por algum mau Espírito, como o vemos com Saul, que a harpa do jovem David aliviava. (I, Samuel, XVI, 14-23.)
Apreciando em seu valor o dom da mediunidade, aplicavam-se então, como ainda hoje, a desenvolvê-la, com a diferença apenas de que o que hoje se faz limitadamente entre os espíritas, se praticava outrora em maior escala. Já no deserto, Moisés, aquele grande iniciado, havia comunicado o dom da profecia a setenta anciãos de Israel (Números, XI), e mais tarde, na Judéia, se contavam diversas escolas de profetas, ou, por dizer diversamente, de médiuns em Betel, Jericó, Gargala etc.
A vida que aí se levava, toda de recolhimento, de meditação e prece, predispunha para as influências espirituais. Certos profetas prediziam o futuro; outros, falando ao povo por inspiração, lhe excitavam o zelo religioso e o exortavam a uma vida moralizada.
As expressões de que se serviam para indicar que se achavam possuídos pelo Espírito fazem lembrar o modo pelo qual esses fenômenos continuam a produzir-se em nossos dias. “O peso, ou o Verbo do Senhor está sobre mim. O Espírito do Senhor entrou em mim. Eu vi, e eis o que diz o Senhor.” Recordemos que, nessa época, toda inspiração era considerada diretamente proveniente da Divindade. “O espírito caiu sobre ele”, diz ainda a Escritura a respeito de Sansão, cuja mediunidade tinha o característico da impetuosidade. (Juízes, XV, 14.)
Quanto aos fenômenos em si mesmo, um exame, por pouco demorado que seja, das narrativas bíblicas, nos provará que eram idênticos aos que hoje se obtêm.
Passemo-los rapidamente em revista, começando pelos que, tendo primeiro chamado a atenção em nossos dias sobre o mundo invisível, simbolizam, ainda, aos olhos de certos observadores muito superficiais ou pouco iniciados, o fato espírita em si mesmo; queremos falar dos movimentos de objetos sem contacto. A Bíblia (IV Reis, VI, 6), nos refere que Eliseu faz vir à superfície, lançando um pedaço de madeira à água, o ferro de um machado que nela havia caído.
Da levitação, esse mesmo Eliseu transportado “para o meio dos cativos que viviam junto do rio Chobar” (Ez., III, 14, 15), e Filipe que subitamente desaparece aos olhos do eunuco e se encontra novamente em Azot (Atos, VIII, 39, 40), são exemplos notáveis. A propósito de escrita mediúnica, pode-se citar a das tábuas da lei (Êxodo, XXXII, 15, 16; XXXIV, 28). Todas as circunstâncias em que essas tábuas foram obtidas provam exuberantemente a intervenção do mundo invisível.
Não menos comprovativa é a inscrição traçada, por uma mão materializada, em uma das paredes do palácio durante um festim que dava o rei Baltasar. (Daniel, capítulo V.)
Poder-se-ia considerar como fenômenos de transporte o maná de que se alimentam os israelitas em sua jornada para Canaã, o pão e vaso d'água, colocados ao pé de Elias, quando despertou, por ocasião de sua fuga pelo deserto (I Reis, XIX, 5 e 6), etc.
Todos os fenômenos luminosos hoje observados têm igualmente seus paralelos na Bíblia, desde a simples irradiação perispirítica notada em Moisés (Êx., XXXIV, 29, 30), e no Cristo (transfiguração), e a produção de luzes (Atos, II, 3, e IX, 3), até as aparições completas que não se contam na Bíblia, tão frequentes são. *
* Ver, entre outros fatos, no livro II dos Macabeus a aparição do profeta jeremias e do sumo-sacerdote Onias a Judas Macabeu.
A mediunidade auditiva tem numerosos representantes na Judéia: os repetidos chamados dirigidos ao jovem Samuel (I Reis, III), a voz que fala a Moisés (Êxodo, XIX, 19) a que se faz ouvir na ocasião do batismo do Cristo (Lucas, III, 22), como a que o glorifica pouco antes da sua morte (João, XII, 28), são outros tantos fatos espíritas.
As curas magnéticas são inúmeras. Ora a prece e a fé reforçam a ação fluídica, como no caso da filha de Jairo (Lucas, VIII, 41, 42, 49-56), ora a força magnética intervém só por si, sem participação da vontade (Marcos, V, 25-34), ou ainda se obtém a cura por imposição das mãos, ou por meio de objetos magnetizados (Atos, XIX, 11-12).
A mediunidade com o copo d'água igualmente se encontra nessas antigas narrativas. Que é, de fato, a taça de que José se servia (Gênesis, XLIV, 5) “para adivinhar”, senão o vulgar copo d'água, ou a esfera de cristal, ou qualquer outro objeto que apresente uma superfície polida em que os médiuns atuais veem desenhar-se quadros que são os únicos a perceber?
Na Bíblia podem-se ainda notar casos de clarividência, compreendendo, então, como hoje, sonhos, intuições, pressentimentos, formas ou derivados da mediunidade que, em todos os tempos, foram grandemente numerosos e se reproduzem agora às nossas vistas.
Digamos ainda uma palavra da inspiração, esse afluxo de elevados pensamentos que vem do alto e imprime às nossas palavras algo de sobre-humano. Moisés, que apresentava todos os gêneros de mediunidade, profere, em diferentes lugares, cânticos inspirados ao Eterno, como por exemplo, o do capítulo XXXII do Deuteronômio.
Um caso notável, assinalado nas Escrituras, é o de Balaão. Esse mago caldeu cede às reiteradas solicitações do rei de Moab, Balac, e vem dos confins da Mesopotâmia para amaldiçoar os israelitas. Sob a influência de Jeová é obrigado, repetidas vezes, a elogiar e abençoar esse povo, com decepção cada vez maior de Balac. *
* "Números" XXII, XXIII, XXIV.
Os homens da Judéia, esses profetas de ânimo impetuoso, experimentaram também os benefícios da inspiração, e graças a esse dom, a esse sopro que anima os seus discursos, é que a antiga Bíblia hebraica deve ter sido muito tempo considerada o produto de uma revelação divina. Pretendeu-se desconhecer as numerosas falhas que nela se patenteiam aos olhos de um observador sem preconceitos, a insuficiência, a puerilidade dos conselhos, ou dos ensinos implorados a Deus (Gên., XXV, 22; I Reis, IX, 6; IV Reis, I, 1-4; I Reis, XXX, 1-8), quando nos censurariam, com razão, de tratar dessas coisas nos grupos espíritas. Esquecem-se as crueldades aprovadas, mesmo quase recomendadas por Jeová, os escabrosos detalhes, finalmente tudo o que, nesse livro, nos revolta ou provoca a nossa reprovação, para não ver senão as belezas morais que nele se contêm e sobretudo a expressão de uma fé viva e passional, que espera o reino da justiça, senão para a geração contemporânea, que só a esperança ampara e fortifica, ao menos para as gerações futuras.
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