Nota 2
Sobre a origem dos Evangelhos
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O Antigo Testamento é o livro sagrado de um povo – o povo hebreu; o Evangelho é o livro sagrado da Humanidade. As verdades essenciais que ele contém acham-se ligadas às tradições de todos os povos e de todas as idades.
A essas verdades, porém, muitos elementos inferiores vieram associar-se.
Nesse ponto de vista o Evangelho pode ser comparado a um vaso precioso em que, no meio da poeira e das cinzas, se encontram pérolas e diamantes. A reunião dessas gemas constitui a pura doutrina cristã.
Quanto à sua verdadeira origem, admitindo que os Evangelhos canônicos sejam obra dos autores de que trazem os nomes, é preciso notar que dois dentre eles, Marcos e Lucas, se limitaram a transcrever o que lhes fora dito pelos discípulos. Os outros dois, Mateus e João, conviveram com Jesus e recolheram os seus ensinos. Os seus evangelhos, porém, não foram escritos senão quarenta e sessenta anos depois da morte do mestre.
A seguinte passagem de Mateus (XXIII, 35) – a menos que se trate de uma interpolação bem verossímil – prova que essa obra é posterior à tomada de Jerusalém (ano 70). Jesus dirige esta veemente apóstrofe aos fariseus: “Para que venha sobre vós todo o sangue inocente que se tem derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vós matastes entre o templo e o altar”.
Ora, segundo todos os historiadores e, em particular, segundo Flávius Josefo, * esse assassínio foi praticado no ano 67, isto é, trinta e quatro anos depois da morte de Jesus.
* F, Josef. Guerra dos Judeus contra os romanos. Trad. de Arnald d'Andilly, edição de 1838, de Buchon, livro IV, cap. XIX. pág. 704.
Se atribuem ao Cristo a menção de um fato que ele não pudera conhecer, ao que se não terão animado acerca de outros pontos?!
Os Evangelhos não estão concordes sobre os fatos mais notáveis atribuídos a Jesus. Assim, cada um deles refere de modo diferente as suas derradeiras palavras. Segundo Mateus c Marcos, teriam sido: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” * Conforme Lucas, o Cristo, ao expirar, teria dito: “Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito” ** expressivo testemunho do amor filial que o unia a Deus. João, finalmente, põe na sua boca estas palavras: “Tudo está cumprido.” ***
* “Mateus”, XXVII, 46. - “Marcos”, XV, 34.
** "Lucas", XXIII, 46.
*** "João", XIX, 30.
O mesmo se verifica relativamente à primeira aparição de Jesus: ainda nisso os evangelistas não estão de acordo. Mateus fala de duas mulheres que, juntas, o teriam visto. No dizer de Lucas, foi aos dois discípulos que se dirigiam para Emaús que em primeiro lugar o Cristo se mostrou. Marcos e João assinalam unicamente Maria Madalena como testemunha de sua primeira aparição. *
*“Mateus”, XXVIII, 9. “Marcos”, XVI, 9. “Lucas”, XXIV, 15. - “João”, XX.
Notemos ainda uma divergência acerca da Ascensão: Mateus e João, os únicos companheiros de Jesus que escreveram sobre a sua vida, dela não falam. Marcos a indica em Jerusalém (XVI, 14,19), e Lucas declara que ela teve lugar na Betânia (XXIV, 50, 51), no próprio dia da ressurreição, ao passo que os Atos dos Apóstolos dizem ter sido quarenta dias depois (Atos, 1, 3).
Por outro lado, é evidente que o último capítulo do evangelho de João não é do mesmo autor do resto da obra.
Este terminava primitivamente no versículo 31 do cap. XX, e o primeiro versículo que se lhe segue indica um acréscimo.
João teria ousado dizer-se “o discípulo que Jesus amava?” Teria ele podido pretender que no mundo inteiro não caberiam os livros em que se descrevessem os fatos e os gestos de Jesus? (XXI, 25). Se reconhecemos que foi acrescentado um capítulo inteiro a esse evangelho, seremos levados a concluir que numerosas interpolações poderiam ter sido feitas igualmente.
Falamos do grande número de Evangelhos apócrifos. Deles contava Fabrício trinta e cinco. Esses evangelhos, hoje desprezados, não eram, entretanto, destituídos de valor aos olhos da Igreja, pois que num deles diz Nicodemos que ela vai buscar a crença na descida de Jesus aos infernos, crença imposta a toda a cristandade pelo símbolo do concílio de Nicéia, e de que não fala nenhum dos Evangelhos canônicos.
Em resumo, segundo A. Sabatier, decano da Faculdade de Teologia Protestante de Paris, * os manuscritos originais dos Evangelhos desapareceram, sem deixar nenhum vestígio certo na História. Foram provavelmente destruídos por ocasião da proscrição geral dos livros cristãos, ordenada pelo imperador Diocleciano (edito imperial de 303). Os escritos sagrados que escaparam à destruição não são, por conseguinte, senão cópias.
* Enciclopédia das ciências religiosas, de E Lichtenberger.
Primitivamente, não tinham pontuação esses escritos, mas, em tempo, foram divididos em perícopes, para comodidade da leitura em público – divisões às vezes arbitrárias e diferentes entre si. A divisão atual apareceu pela primeira vez na edição de 1551.
Apesar de todos os seus esforços, o que a crítica pôde cientificamente estabelecer de mais antigo foram os textos dos séculos V e IV. Não pôde remontar mais longe senão por conjeturas sempre sujeitas à discussão.
Orígenes já se queixava amargamente do estado dos manuscritos no seu tempo. Irineu refere que populações inteiras acreditavam em Jesus sem a intervenção do papel e da tinta. Não se escreveu imediatamente, porque era esperada a volta do Cristo.
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