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XXIII


Hipóteses e objeções


Em matéria de Espiritismo, são numerosas as objeções e teorias adversas. Temo-las, em sua maior parte, examinado no curso deste século. Vimos, por exemplo, que a teoria das alucinações é insustentável depois da obtenção de fotografias das aparições, dos moldes em parafina, dos fenômenos de escrita e assinatura, reconhecidamente autênticas, de sobrevivos. A teoria da subconsciência, também denominada inconsciente ou consciência subliminal, foi refutada nos capítulos XVIII e XIX, a propósito da grafia mediúnica e das incorporações. Certo é que também a aplicam aos fenômenos produzidos com a mesa, nomeadamente quanto aos fatos de tiptologia obtidos por Victor Hugo em sua própria casa e que referimos no capítulo XVIII. Não poucos são os críticos refratários a admitir nos versos ditados pela mesa outra coisa mais que inconscientes produções do grande vate. Aqueles versos, dizem, são de fatura idêntica à dele; anima-os a mesma vigorosa inspiração.


A insuficiência, porém, de semelhante explicação fica demonstrada pela análise dos fatos. Victor Hugo jamais se sentava à mesa. Confessava não poder improvisar, em verso, ao passo que os Espíritos pediam que os interrogassem desse modo e desse modo respondiam imediatamente, sem hesitação nem pausa de memória. Quando um dia, anuindo aos seus desejos, prepara de antemão uma pergunta endereçada ao Espírito Molière, este emudece; a “Sombra do Sepulcro” é que responde em termos acres, constituindo acerba lição para o poeta, que se retira da sala indignado com o desembaraço dos Espíritos.


Podia Victor Hugo ser ao mesmo tempo consciente e inconsciente e agir extrapessoalmente sem o querer? O inconsciente, que a si mesmo se ignora, não pode ser um determinativo de ação. Ora, todos os fenômenos espíritas representam formas de atividade reguladas pela consciência, em que não se podem associar dois princípios opostos, a ação e a inação. Pretendê-lo, não seria menos que resvalar no absurdo!


O mesmo acontecia aos assistentes. Nenhum deles cogitava de provocar o sono e, por conseguinte, o desdobramento. Ninguém previa as respostas da mesa. Todos aguardavam ansiosos as frases que iria ditar. O esperado era, Molière, que Victor Hugo acabava de interrogar. Se o inconsciente do poeta, estimulado por essa expectativa, tivesse que intervir, a resposta do grande satírico é que teria vindo. Ora, foi, como o dissemos, a “Sombra do Sepulcro”, numa linguagem áspera e solene, que se manifestou em termos deprimentes que Victor Hugo, em seu orgulho, jamais se lembraria certamente de a si mesmo dirigir em presença de testemunhas.


Nem somente em verso o misterioso Espírito se exprime. Sua prosa é também magnífica e austera, como se pode ajuizar por este fragmento, ditado pela mesa numa outra sessão:cclvii


“Dizes tu, imprudente: a sombra do sepulcro emprega a linguagem humana; serve-se de palavras, metáforas, figuras e mentiras, para dizer a verdade; a sombra do sepulcro não é um simulacro, tens razão; eu sou uma realidade. Se desço a falar vossa algaravia, é porque sois limitados. A palavra é o grilhão do Espírito; a imagem é a golilha do pensamento; vossa linguagem é um ruído enfeixado num dicionário; minha língua própria é a imensidade, é o oceano, é o tufão; minha biblioteca contém milhões de estrelas, milhões de planetas e de constelações. O infinito é o livro supremo e Deus é o leitor eterno. Agora, se queres que te fale a minha linguagem, sobe ao Sinai e me ouvirás nos relâmpagos; sobe ao Calvário e me verás em resplendores; desce ao túmulo e hás de sentir-me na clemência.”


Eis um fato, ao demais, que demonstra quão impotente é a teoria da subconsciência para explicar os fenômenos obtidos em casa de Victor Hugo. O “Gaulois”, de 10 de janeiro de 1906, publicou, sob a epígrafe “O canhenho de um materialista”, um trecho das memórias do Sr. E. Blum, de que destacamos a seguinte anedota:


“Victor Hugo confessava acreditar firmemente no Espiritismo e conservou essa crença até à morte. Seus dois filhos, bem como seus grandes amigos Augusto Vacquerie e Paulo Maurice nele também criam. Vacquerie me referiu uma coisa extraordinária:


Certa noite de Inverno, em Guernesey, faziam-se as experiências de mesa giratória. Estavam presentes o grande poeta, seus dois filhos e Vacquerie. Carlos Hugo é que servia de médium; interrogava a mesa e comunicava as respostas obtidas. De repente, deu um grito de dolorosa surpresa. – “Oh! – exclamou – Os Espíritos me dão uma horrível notícia: a Sra. De Girardin acaba de falecer neste momento.” Consultaram o relógio: eram 10 horas.


A Sra. De Girardin, justamente nessa manhã, escrevera comunicando que pretendia passar alguns dias em Guernesey com o seu grande amigo Hugo e era, portanto, esperada a sua visita. No dia seguinte chegou uma carta anunciando o falecimento da Sra. De Girardin. Ninguém o poderia saber em Guernesey, onde o telégrafo a esse tempo não funcionava.


Carlos Hugo o ignorava, como todos, e – coisa curiosa – a Sra. De Girardin falecera com efeito na véspera, às 10 horas. Essa história sempre me impressionou singularmente, porque era difícil pôr-lhe em dúvida a veracidade, com testemunhas semelhantes.”


A teoria da subconsciência deve ser considerada seriamente, pois que contribui para o esclarecimento de grande número de casos psíquicos; fez progredir a ciência do Ser, pondo em evidência os aspectos ocultos de nossa natureza, e tornou mais fácil e positiva a classificação dos fatos. Só é, todavia, aplicável a certos fenômenos de animismo, isto é, de exteriorização dos vivos, aos casos, por exemplo, de renovação da memória. Não poderia explicar os fatos de ordem física e intelectual, tudo que constitui o Espiritismo puro. A intervenção dos sobrevivos é a solução mais simples, mais lógica, a que melhor se adapta ao conjunto desses fatos. Não dão as Entidades que se manifestam outra explicação e seu testemunho é universal. Até os próprios erros que cometem não deixam de constituir elementos de certeza; porque o que não existe não pode deixar vestígio subconsciente e ser conhecido pelo médium ou pelos assistentes.


F. Myers, em seu magnífico livro “A Personalidade Humana”, deu uma definição magistral da subconsciência. Depois dele, porém, muitos sábios abusaram dessa teoria, tornando-a extensiva a fatos em que é completamente inadmissível. Na impossibilidade em que se encontram de explicar os fenômenos espíritas, recorrem a hipóteses que de modo algum se adaptam à realidade das coisas.


O recente livro do Sr. Th. Flournoy, “Espíritos e Médiuns”,cclviii é bem característico em tal sentido. Nele enfeixou o autor centenas de fatos colhidos numa pesquisa informativa que empreendeu. As explicações que dá são de pasmosa fragilidade e deixam intacta a interpretação espírita, que pretendem destruir. Sua idéia preconcebida é evidente, sobretudo quando procura relacionar com os fenômenos de inconsciência um caso vulgaríssismo de plágio (pág. 340).


Assinalemos, ainda, o caso Buscarlet (pág. 359). Trata-se de uma senhora (com esse nome), que sonhou em Paris, no dia 10 de dezembro de 1883, que a Sra. Nitchinoff, residente em Kazan (Rússia), deixaria no dia 17 o Instituto que dirigia, e isso com certas particularidades que indicavam a idéia de morte. Escreve, relatando esse sonho, à Sra. Moratief, também residente em Kazan. Esta lhe responde que a indicada pessoa deixara realmente seu Instituto no dia 17, mas no estado de cadáver, tendo sucumbido em três dias, vitimada pela difteria. O Sr. Flournoy vê nisso um caso típico de telepatia! A Sra. Moratief, estando relacionada com as duas outras pessoas, que mal se conheciam, percebeu subconscientemente, no dia 10, os primeiros sintomas da moléstia da Sra. Nitchinoff e transmitiu involuntariamente essas percepções à Sra. Buscarlet! Aí está um exemplo das explicações do Sr. Flournoy!


Se é pouco admissível semelhante hipótese, qual será, pela telepatia ou a subconsciência, a explicação possível do caso n° 15, em que a Srta. Sofia S., devendo encontrar-se em Mayens com o pastor H., para fazer uma excursão com ele e suas pensionistas, recebe pela mesa, 10 dias antes da catástrofe em que o pastor e uma de suas discípulas perderam a vida, o seguinte aviso: “Sofia não deve ir a Mayens; correria perigo de vida”? Ou ainda a explicação do caso nº 28 (previsão de morte em conseqüência de uma queda de bicicleta, com algumas semanas de antecipação)?


E fácil ao demais, nessa coletânea, em que tantas pessoas de boa-fé comunicaram os mais notáveis fatos de suas experiências, encontrar um número regular de fenômenos dos quais o Sr. Flournoy nem tenta mesmo dar explicação. Podem citar-se por exemplo: o caso nº 267 (comunicação anunciando o assassínio de Sadi Carnot, antes que fosse conhecido); o caso n° 190, em que o aviso de alteração num programa de viagem é de perto acompanhado pela chegada de uma carta com a notícia de uma imprevista enfermidade, que transtorna todos os planos de viagem; o caso nº 191, em que é obtida a redação de um cartão postal, que ninguém havia previamente lido; o caso nº 307, em que se faz alusão, na ausência da pessoa interessada, a fatos íntimos que somente ela e seu falecido marido conheciam.


O caso n° 322 é igualmente inexplicável pelos processos tão do agrado do Sr. Flournoy. A narradora recebeu certo dia uma comunicação de um Sr. Martinol, falecido na Austrália no momento em que embarcava de regresso à Europa. “Esse homem, cuja existência eu ignorava – diz ela – me fez uma aflita confissão, que me incumbia de transmitir a sua mulher. Havia pouco tempo que eu praticava a escrita mediúnica e, não conhecendo a senhora em questão, me abstive de a procurar. Vendo que eu não ia, o mesmo Martinol deu uma comunicação ainda mais insistente à minha amiga H., que conhecia a Sra. Martinol e com ela foi ter, levando as duas mensagens. Era tudo verdade, e as duas confissões esclareciam o motivo de atos até então incompreendidos para a família.”


A tática do Sr. Flournoy consiste, além de tudo, em abafar numa profusão de termos técnicos e pretensiosos os elementos probatórios que se destacam da experimentação: criptomnésia, complexos emotivos subjacentes, camadas hipnóides, etc. Por essa forma é que sempre a Ciência obscureceu as verdades primárias e os grandes problemas da vida e do destino. Sob esse ponto de vista, não é ela menos responsável que a ortodoxia religiosa pelo deplorável estado mental de nossos dias e pelas tremendas conseqüências que dele resultam. Ao cabo de séculos de predomínio religioso e de trabalho científico, a Humanidade ainda está à procura do caminho que pelo Espiritismo lhe é claramente indicado.


Força é, todavia, reconhecer que o Sr. Flournoy imprime aos seus argumentos uma perfeita cortesia. A moderação de sua linguagem, o talento de observação e de análise, que em toda circunstância patenteia, o tornam eminentemente simpático. Há mesmo ocasiões em que parece inclinar-se às probabilidades espiríticas, deixando escapar uma confissão como esta: “É possível que, entre os fatos, alguns haja autênticos, isto é, que tenham origem espírita; mas não me encarrego dessa escolha.” Sente-se que ele é tolhido por considerações de ordem pessoal. Seu livro terá para nós a vantagem de atrair grande número de investigadores para os nossos estudos, porque o autor insiste muitas vezes no dever que aos sábios e intelectuais se impõe de sondar os múltiplos problemas que a experimentação física vem pôr em foco.


*


Temos indicado os perigos reais que oferece a prática da mediunidade. Também os há imaginários, inventados por gosto e estrepitosamente apregoados pelos adversários do Espiritismo, dando origem a duas teorias principais, que por seu turno examinaremos: a das larvas, ou elementais, e a dos demônios.


As manifestações espíritas, dizem cotidianamente certas revistas católicas,cclix quando não provêm consciente ou inconscientemente do médium ou dos assistentes, são obra do demônio.


Encontramos aí o argumento habitual da Igreja, o principal instrumento de sua dominação, que lhe permite resistir a todas as inovações, mantendo sob o terror o rebanho dos fiéis e assegurando o seu império através dos séculos.


Mesmo quando os Espíritos nos falam de Deus, de prece, de virtude e sacrifício, cumpre ver nisso a intervenção do demônio – dizem os teólogos –, porque Satanás, o pai da mentira, sabe revestir todas as formas, empregar todas as linguagens, fornecer todas as provas; e quando acreditamos estar em presença das almas de nossos parentes e amigos, de uma esposa ou de um filho falecidos, é ainda o grande impostor que se disfarça para nos enganar.


Tem-se visto – afirmam eles – o Espírito do mal revestir as mais dolorosas aparências, mesmo a da Virgem e dos santos, para melhor lograr os crentes. É o que assevera o Cônego Brettes na “Revue du Monde Invisible”, de 15 de fevereiro de 1902, após um estudo de Monsenhor Méric acerca das materializações de fantasmas:


“Os resultados – diz ele – me parece concluírem a favor da opinião que sustenta ser tudo diabólico nas aparições de Tilly. Se são verdadeiras estas deduções, é o diabo que ali se apresenta sob a forma aparente da santa Virgem, e recebe as homenagens dirigidas à mãe de Deus.”


Objetam outros críticos que em suas relações com o mundo invisível o homem não comunica somente com as almas dos mortos, mas também com ilusórias aparências de almas, com larvas, formas fluídicas animadas por uma sorte de vibração expirante do pensamento dos defuntos. Por outro lado, dizem eles, é condenável, é quase sacrilégio evocar as almas dos mortos, porque estas, abandonando a Terra, sobem às regiões superiores e toda volta aqui abaixo é um constrangimento, um sofrimento para elas. “O método espírita – diz um teósofo notável – oferece o grande inconveniente de ser prejudicial aos mortos, cuja evolução estorva.”


Vimos, com exemplos numerosos e provas de identidade, que a hipótese das larvas não é de modo algum justificável; os fatos demonstram ao contrário que é com almas de homens, outrora existentes na Terra, que confabulamos nas manifestações, pois que apresentam um caráter essencialmente humano. A ação dos manifestantes é humana, como também o são os desenhos, a escrita e a linguagem de que se servem. Os fenômenos intelectuais que produzem trazem o cunho das idéias, dos sentimentos, das emoções, numa palavra, de tudo que constitui a trama de nossa própria existência. De todas as ordens podem ser as suas manifestações, desde o trivial até o sublime, e é o que igualmente caracteriza as sociedades humanas. As formas dos fantasmas que se apresentam materializados, as fotografias obtidas, são de seres semelhantes a nós e nunca de demônios, elementares ou larvas. Acrescente-se a isso todos os fatos e particularidades com caráter positivo tendente a estabelecer que os manifestantes viveram entre as gerações humanas, e a certeza se impõe de que a intervenção atribuída aos demônios e às larvas nos fenômenos espíritas não é mais que o produto de um desvario da imaginação.


Quanto à segunda objeção, não tem maior consistência. Como poderiam ser condenáveis essas comunhões do Céu com a Terra, da qual sai a alma humana esclarecida, confortada, enlevada por todas as exortações, por todas as inspirações que lhe vêm do Alto? As práticas espíritas têm consolado e reanimado muitas criaturas combalidas sob a prova da separação; têm restituído a paz aos aflitos, provando-lhes que aqueles que julgavam perdidos estão apenas ocultos por algum tempo a suas vistas. E que influência moral exerce em toda a nossa vida o pensamento de que seres caros, seres invisíveis nos acompanham e observam, examinam e apreciam os nossos atos, e que os nossos bem-amados estão muitas vezes perto de nós, associando-se aos nossos esforços para o bem, regozijando-se com as nossas alegrias, com os nossos progressos, e entristecendo-se com os nossos desfalecimentos, como nos amparando nas situações difíceis! Quem haverá que, tendo perdido um ente caro, possa permanecer indiferente a esse pensamento?


Longe de estorvar a evolução das almas desencarnadas, sabemos, ao contrário, que os nossos chamados a favorecem em muitos casos. Não se trata de evocações imperiosas, como o pretenderiam insinuar. Os Espíritos são livres e vêm a nós se isso lhes agrada. Ao demais, que é em si mesma a evocação? É a frágil palavra humana ensaiando-se em articular a linguagem sublime do pensamento; é o balbuciar da alma que entra na comunhão divina e universal!


A experiência todos os dias o demonstra: graças aos conselhos dos humanos, muitas almas obscurecidas e atrasadas têm podido reconhecer-se e orientar-se em sua nova existência. Na maior parte, os materialistas passam pelo fenômeno da morte sem o perceber. Acreditam ainda participar da vida terrestre, muito tempo depois de haverem falecido. Os Espíritos elevados não têm ação sobre eles, em virtude das diferenças de densidade fluídica, ao passo que as evocações, as advertências, as explicações que eles recebem nos grupos espíritas os arrancam de seu torpor, de seu estado de inconsciência, e lhes facilitam o surto, em vez de o estorvar. Para nós, como para os desencarnados, a comunhão das duas humanidades é salutar, quando se efetua em condições sérias. É um ensino mútuo ministrado pelos Espíritos adiantados de ambos os planos, visando esclarecer, consolar e moralizar as almas sofredoras ou atrasadas dos dois mundos.


As teorias dos ocultistas e teósofos tão justas no que se refere à lei do Carma, ou das reencarnações, claudicam por completo no ponto de que nos ocupamos. Apartando o investigador do método experimental, para o encerrar no domínio da metafísica pura, elas suprimiram a única base positiva de toda a verdadeira filosofia.


Graças às provas experimentais é que a imortalidade, mero conceito até agora, vaga esperança do espírito humano, se torna uma realidade palpitante. E com ela, muitas almas cépticas e desiludidas se sentem reviver em face dos destinos que lhes são patenteados. Longe de as depreciar, saibamos, conseguintemente, fazer justiça a essas práticas espíritas que têm enxugado tantas lágrimas, acalmado tantas dores e projetado tão abundantes claridades na noite das inteligências.


*


Voltemos à teoria do demônio e consideremos uma questão: se o Espírito maligno, como pretendem os teólogos, têm a facilidade de reproduzir todas as formas, todas as figuras, revelar as coisas ocultas, proferir as mais sublimes alocuções; se nos ensina o bem, a caridade, o amor, pode-se igualmente atribuir-lhe as aparições mencionadas nos livros santos, acreditar que foi ele quem falou a Moisés, aos outros profetas e ao próprio Cristo, e que toda ação espiritual oculta é obra sua.


O diabo, tudo sabendo e podendo, até mesmo fazer sábio e virtuoso o Espírito, pode muito bem ter assumido o papel de guia religioso e, sob o pálio da Igreja, nos conduzir à perdição. A História, com efeito, nos demonstra com irrefragável lógica que nem sempre a Igreja foi inspirada por Deus. Em muitas circunstâncias, os seus atos têm estado em absoluta contradição com os atributos de que nos apraz revestir a divindade. A Igreja é uma árvore colossal, cujos frutos nem sempre foram os melhores, e o diabo – pois que é tão hábil – pode muito bem se ter abrigado à sua sombra.


Se devemos admitir, com os teólogos, que em todos os tempos e lugares tenha Deus permitido as mais odiosas fraudes, o mundo se nos apresentará como imensa impostura e nenhuma segurança teremos de não ser enganados: tanto pela Igreja como pelo Espiritismo. A Igreja – ela própria o reconhece – apenas possui, relativamente ao que denomina “sobrenatural diabólico ou divino”, um critério de certeza puramente moral.cclx E daí, com tão restritas bases de apreciação, dado o talento de imitação que atribui ao inimigo do gênero humano, que crédito a ela própria podemos conceder em todas as matérias? É assim que o argumento do demônio, como arma de dois gumes, se pode voltar contra aqueles que o forjaram.


Cabe, entretanto, perguntar se de fato haveria tamanha habilidade da parte do diabo em proceder como os nossos contraditores o pretendem. Nas sessões espíritas, vê-lo-íamos convencer da sobrevivência da alma e da responsabilidade dos atos a indivíduos materialistas; libertar da dúvida os cépticos, e da negação e de todas as suas conseqüências, dizer às vezes duras verdades a pessoas desregradas e obrigá-las a cair em si e orientar-se no sentido do bem. Onde estaria, pois, em tudo isso a vantagem para Satanás? Não deveria, ao contrário, o papel do Espírito das trevas consistir em acoroçoar em suas tendências os materialistas, os ateus, os cépticos e os indivíduos sensuais?


É verdadeiramente pueril atribuir ao demônio o ensino moral que nos prodigalizam os Espíritos elevados. Acreditar que Satanás se esforce por desviar os homens do mal, ao passo que, deixando-os resvalar pelo declive das paixões, tornar-se-iam fatalmente presa sua; crer que pode ensiná-los a amar, a orar, a servir a Deus, a ponto de lhes ditar preces, é atribuir-lhe um procedimento ridículo extremamente inepto.


Se o diabo é hábil, podem imputar-lhe as respostas ingênuas, grosseiras, ininteligentes, obtidas nos círculos onde se experimenta sem critério? E as manifestações obscenas! Não são antes próprias a nos afastar do que a nos atrair para ele? Ao passo que, admitindo a intervenção de Espíritos de todas as ordens, desde a mais baixa à mais elevada, tudo se explica racionalmente. Os Espíritos malfazejos não são de natureza diabólica, mas de natureza simplesmente humana.


Não há na Terra, encarnadas entre nós, almas perversas, que se poderiam considerar demônios? Voltando ao Espaço, essas almas continuam a proceder do mesmo modo, até que venham a ser regeneradas pelas provações, subjugadas pelos sofrimentos. Aos investigadores prudentes compete pôr-se em guarda contra esses entes funestos e reagir contra sua influência.


Na maior parte dos círculos de experimentação, em lugar de proceder com cautela e respeito, desprezam-se os conselhos dos que nos precederam no caminho das investigações. Com intempestivas exigências e modos inconvenientes, repelem-se as influências harmônicas e atraem-se individualidades perversas e Espíritos atrasados. Daí tantas decepções, incoerências, obsessões, que têm feito acreditar na existência dos demônios e lançado sobre certo “espiritismo” de baixa classe o ridículo e o descrédito.

*


A teoria do demônio, em resumo, nem é positiva nem científica. É um argumento cômodo, que se presta às explorações, permite rejeitar todas as provas, todos os casos de identidade, e fazer tábua rasa dos mais autorizados testemunhos; pouco concludente, porém, e absolutamente em contradição com a natureza dos fatos.


A crença no demônio e no inferno tem sido combatida com argumentos de tal modo peremptórios que causa admiração ver inteligências esclarecidas ainda hoje a adotarem. Como se não compreende que opondo incessantemente Satanás a Deus, atribuindo-se-lhe sobre o mundo e sobre as almas um poder que, dia a dia, aumenta, diminui-se paralelamente o império de Deus, amesquinha-se o seu poder, aniquila-se a sua autoridade, põe-se em dúvida a sabedoria, a bondade, a previdência do Criador?


Deus, sendo justo e bom, como o declara o ensino católico, não pode ter criado um ser dotado de toda a ciência do mal, de toda sorte de sedução, e lhe haver concedido poder absoluto sobre o homem inerme e fraco.


Ou Satanás é eterno, ou não o é. Se o é, Deus não é único; há dois deuses – o do bem e o do mal. Ou então Satanás é uma criatura de Deus, e logo a Deus cabe a responsabilidade de todo o mal por ele praticado; porque, ao criá-lo, conheceu, viu todas as conseqüências de sua obra. E o inferno povoado da imensa maioria das almas, votadas por sua fraqueza original ao pecado e à condenação, é a obra de Deus, produto de sua vontade e por ele prevista!


Tais são as conseqüências da teoria de Satanás e do inferno. É de admirar que tenha produzido tantos materialistas e ateus? E é em nome do Cristo, de seus ensinos de amor, de caridade e de perdão que se preconizam tais doutrinas!


Mais conforme ao verdadeiro espírito das Escrituras não será essa revelação espírita, que nos apresenta, após o resgate e a reparação de suas culpas, em existências de provações, as almas a prosseguirem sua ascensão às regiões da luz? Assim o disse o apóstolo: “Deus não quer que homem algum pereça, mas que todos se convertam à penitência.” cclxi


O que se chamam demônios, como vimos, são simplesmente Espíritos inferiores, ainda propensos ao mal, submetidos, porém, como todas as almas, à lei do progresso. Não há diversas categorias de almas, destinadas umas à felicidade e outras à desgraça eterna. Todas se elevam pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento. A unidade perfeita e a harmonia reinam no Universo.


Cessemos, pois, de profanar a idéia de Deus com essas concepções indignas da grandeza e da bondade infinitas; saibamos despojá-la das desgraçadas paixões humanas que se lhe atribuem. Com isso a Religião ganhará prestígio. Pondo-a em harmonia com os progressos do espírito humano, dar-se-lhe-á maior vitalidade.


Acenar com o espectro de Satanás e toda a fantasmagoria do inferno, numa época em que a Humanidade já não crê nos mitos com que a embalaram na infância, é perpetrar um anacronismo, é expor-se a provocar o riso. Satanás não assusta mais ninguém. E os que mais dele falam são, talvez, os que nele menos crêem.cclxii Pode-se explorar o esvaecimento de uma quimera rendosa, de que por muito tempo se abusou, e soltar aos quatro ventos os ecos de sua queixa. Diante, porém, de tais recriminações, próprias de uma outra idade, o pensador desinteressado sorri e passa adiante.


Já não acreditamos num Deus colérico e vingativo, mas em um Deus de justiça e de infinita misericórdia. O Jeová sanguinário e terrível fez sua época. O inferno implacável fechou-se para sempre. Do Céu à Terra desce agora, com a nova revelação, o lenitivo para todas as dores, o perdão para todas as fraquezas, o resgate para todos os crimes, mediante o arrependimento e a expiação.


XXIV


Abusos da mediunidade


Na primeira ordem dos abusos que devemos assinalar, cumpre colocar as fraudes, as simulações.


As fraudes ou são conscientes e volitivas, ou inconscientes. Neste último caso são provocadas quer pela ação de Espíritos malfazejos, quer por sugestões sobre os médiuns exercidas pelos experimentadores e assistentes.


As fraudes conscientes provêm ora de falsos médiuns, ora de médiuns verdadeiros, mas pérfidos, que têm feito de sua faculdade uma fonte de proventos materiais. Desconhecendo a nobreza e a importância de sua missão, por natureza preciosa, eles a transformam num meio de exploração e não trepidam, quando falha o fenômeno, em o simular com artifícios.


Os falsos médiuns se encontram um pouco por toda parte. Uns não passam de péssimos farsistas que se divertem à custa do vulgacho e a si mesmos se traem cedo ou tarde. Outros há, industriosos, hábeis, para os quais o Espiritismo é apenas uma mercancia; esforçam-se por imitar as manifestações, tendo em mira o lucro a auferir. Muitos têm sido desmascarados em plena sessão; alguns já foram colhidos nas malhas de ruidosos processos. Nessa ordem de fatos, têm sido presenciadas as mais audaciosas falcatruas.cclxiii Certos indivíduos, abusando da boa-fé dos que os consultam, não têm hesitado em profanar os mais sagrados sentimentos e tornar suspeitas uma ciência e doutrinas que podem ser um meio de regeneração. Na maioria das vezes, são destituídos do sentimento de sua responsabilidade; mas na vida de além-túmulo bem desagradáveis surpresas lhes estão reservadas.


É incalculável o prejuízo por esses espertalhões causado à verdade. Com seus artifícios têm afastado muitos pensadores do estudo sério do Espiritismo. Por isso é dever de todo homem de bem desmascará-los, expôlos à merecida execração. O desprezo neste mundo, o remorso e a vergonha no outro – eis o que os espera. Porque, nós o sabemos, tudo se paga: o mal recai sempre sobre aquele que o pratica.


Não há coisa mais vil, mais desprezível, que bater moeda sobre as dores alheias, simular, a troco de dinheiro, os amigos, os entes caros que choramos, fazer da própria morte uma especulação desbriada, um objeto de falsificação.


O Espiritismo não pode ser responsabilizado por tais manejos. O abuso ou imitação de uma coisa nada pode fazer prejulgar contra a própria coisa. Não vemos freqüentemente imitados os fenômenos de Física pelos prestidigitadores? E que prova isso contra a verdadeira Ciência? Nada. O investigador inteligente deve estar precavido e fazer constante uso de sua razão. Se há alguns laboratórios em que, a pretexto de manifestações, se pratica um odioso tráfico, numerosos círculos existem, compostos de pessoas cujo caráter, posição e honorabilidade constituem outras tantas garantias de sinceridade, inacessíveis, em tais condições, a qualquer suspeita de charlatanismo.


*


Tem-se dado o fato – observemos – de certos médiuns, dotados de notáveis faculdades, não terem vacilado em misturar, nas sessões que realizam, as simulações com os fatos reais, visando aumentar os proventos ou a fama que desfrutam.


Perguntarão talvez por que anuem os desencarnados a prestar o seu concurso a indivíduos de tal sorte indignos. A resposta é fácil. Esses Espíritos, em seu vivo desejo de se manifestarem aos que na Terra amaram, encontrando em tais médiuns os elementos necessários para se materializarem, tornando-se visíveis, e, assim, demonstrarem a própria sobrevivência, não hesitam em utilizar os meios que se lhes oferecem, não obstante a indignidade dos intermediários.


Foi o que sucedeu em 1906, 1907 e 1908, no curso de sessões efetuadas em Paris por um médium estrangeiro, de que já falei no prefácio desta obra.


No dia 18 de junho de 1908, em casa do Sr. David, no Boulevard des Batignolles, estando sentado o médium fora do gabinete de materializações, à meia-luz, no círculo dos assistentes, foi visto formar-se um braço, que parecia surgir de um ângulo da sala. Descreveu um movimento circular e nos veio tocar a cabeça, a mim e ao reverendo Benezech, pastor protestante, sentado ao pé de mim. Do soalho saiu um fantasma vaporoso, que se ergueu à vista de todos, e uma voz se fez ouvir, proferindo um nome bem conhecido. Em seguida se foi abaixando e dissipou-se gradualmente no soalho. O médium, bem desperto, assinalava esses fenômenos, ao mesmo tempo em que se produziam em lugares da sala que não teria podido alcançar.


Na sessão de 12 de julho, em casa da Sra. Cornély, estava eu colocado à entrada do gabinete, em frente à abertura das cortinas. Um Espírito, com estatura de criança, desprezando essa abertura, atravessou o pano, à minha esquerda, junto ao Sr. Debrus, sentado atrás de mim, e pronunciou estas palavras: “Maria, Rosa”, e em seguida: “papá, mamã!” Tocou o Sr. Debrus, e o seu lindo braço roliço foi visto alongar-se por cima da sua e da minha cabeça. O Sr. e a Sra. Debrus ficaram convencidos de ter visto a aparição de sua própria filha, falecida em Valence, a 4 de novembro de 1902, a quem me referi em “O Problema do Ser, do Destino, e da Dor”. Em semelhante caso, nos pareceu impossível a simulação, pois que o médium jamais tinha visto a menina.


A autenticidade desses fenômenos é incontestável, por terem sido produzidos em excelentes condições de verificação. O mesmo já se não deu posteriormente. Logo que o médium se ocultava atrás das cortinas e fazia-se a obscuridade, ouviam-se ruídos significativos. No curso de 11 sessões a que assisti, pude adquirir a certeza de que o médium se despia, tirava os sapatos e pintava o rosto, para simular as aparições.


Numa das sessões, efetuada em casa da Sra. Nceggerath, à rua Milton, duas senhoras favoravelmente colocadas para bem observar, estando eu sentado mais distante, viram distintamente o médium despido, agachado e, depois, estendido no soalho, a erguer-se pouco a pouco para levantar a gaze flutuante que lhe servia para imitar os fantasmas. As aludidas senhoras, uma das quais era a Sra. Nceggerath, me comunicaram separadamente suas impressões, que concordavam, antes de conversarem acerca do fato observado.


No dia 9 de setembro, o Sr. Drubay, espírita íntegro e convicto, ao desmanchar o gabinete de materializações, no dia seguinte ao de uma sessão efetuada em sua casa, encontrou um retalho de filó de seda, muitíssimo fino, que parecia despregado ou arrancado de um pedaço maior. Dias depois, na sede da Sociedade de Estudos Psíquicos, no arrabalde de Saint-Martin, apanhou nas mesmas condições um trapo negro, muito comprido, fortemente impregnado de um cheiro de rosa e sândalo combinados, que se fazia sentir em certos momentos nas sessões e que o médium pretendia ser proveniente dos Espíritos. Mais de vinte testemunhas, em resumo, verificaram as fraudes, em sessões ulteriores.cclxiv O compromisso formal que haviam tomado de observar o regulamento foi o que unicamente as impediu de desmascarar o culpado.


Tendo os “Annales des Sciences Psychiques” denunciado tais artifícios, julguei dever a meu turno intervir, para salvar as nossas responsabilidades e a de uma causa comprometida por essas divulgações,cclxv com o que pôde ficar o público inteirado de que os espíritas não se deixam ludibriar e sabem discernir a verdade da impostura. Denunciar, com efeito, as fraudes, onde quer que se produzam, é o meio mais seguro de fazer desacoroçoar os seus autores.


Procedendo como o fiz, desempenhei uma tarefa ingrata, mas necessária, que me valeu a aprovação das pessoas honestas. Se, de um lado, fui alvo de críticas malévolas, do outro recebi elevados e calorosos aplausos. Um eminente psiquista, que ocupa saliente posição na magistratura, escreve-me a tal respeito:


“Paris, 8 de abril de 1910.


Admirei vossa coragem no incidente M., porque adivinho quanto deveis ter sofrido, sendo obrigado a protestar.


Fizestes bem e vos revelastes mais uma vez o homem sincero e honrado que de fato sois. Sei que certos grupos ficaram um tanto descontentes convosco, mas cumpristes um dever, expelindo “os mercadores do templo”. O que lança o desprestígio no movimento de que sois um dos mais respeitáveis chefes é justamente a cegueira de certos grupos que, com a sua indiferença pela sinceridade dos fenômenos, favorecem os médiuns fraudulentos e os que se rejubilam com tais fraudes.


No que me diz pessoalmente respeito, estou convosco. Desde as primeiras sessões me foi patente a fraude de M., e compreendi facilmente os seus processos, que são grosseiros. Nada articulei publicamente, em atenção às pessoas que me acolhiam em sua casa, tendo-me, ao demais,


M. prometido sessões sérias. Mas não cumpriu a promessa.”


Como epílogo desses fatos, os espíritas, reunidos no Congresso Internacional de Bruxelas, em maio de 1910, aprovaram a seguinte moção:


“O Congresso Espírita de Bruxelas, impressionado com as fraudes numerosas e repetidas que se têm produzido.nas sessões efetuadas, na obscuridade, por médiuns profissionais, impressionado com o prejuízo moral que assim causam à Doutrina:


Convida os grupos de estudos e os experimentadores que procuram os fatos de ordem física, os transportes e os fenômenos de materialização, a só admitirem sessões obscuras ou à meia-luz em condições de rigorosa verificação;


Recomenda especialmente, que sejam as mãos e os pés dos médiuns seguros por dois assistentes experimentados, enquanto durar a sessão, ou que seja isolado o médium por meio de um fio tenso e sem solução de continuidade; ou ainda, que seja ele metido numa jaula cuidadosamente fechada e cuja chave fique em poder de uma pessoa de confiança;


As sessões à meia-luz são muitíssimo preferíveis, por serem os fenômenos verificados por todos os assistentes. Com isso deve contentarse um médium bem dotado, ao passo que se torna suspeito quando exige a obscuridade, embora esta aumente a força física, porque pode fazer recear que dela se aproveite para fraudar, o que tem ocorrido em certos casos. Cumpre satisfazer-se com resultados menores, porém mais seguros;


O Congresso dirige, além disso, uma instante exortação aos médiuns honestos e desinteressados. Pede-lhes que intensifiquem o zelo por bem servir uma verdade sagrada, verdade comprometida por desbriados simuladores, e lhes recorda que, se a fraude acarreta uma justa e severa reprovação, a dedicação e a sinceridade, ao contrário, lhes granjeiam a estima e o reconhecimento de todos, bem como a assistência das elevadas Inteligências invisíveis, que velam pelo progresso de nossas crenças neste mundo.”


Há – dissemos – fraudes inconscientes, que se explicam pela sugestão. Os médiuns são extremamente sensíveis à ação sugestiva, tanto dos vivos como dos desencarnados.cclxvi O estado de espírito das pessoas que tomam parte nas experiências reage sobre eles e exerce uma influência que os médiuns não distinguem, mas que é às vezes considerável.


Médiuns perfeitamente honestos e desinteressados confessam que são impelidos à fraude, em certos meios, por uma força oculta. Na maior parte, resistem a tais sugestões, prefeririam renunciar ao exercício de suas faculdades a se deixarem arrastar por esse resvaladouro. Alguns cedem a essas influências; e um momento de fraqueza bastará para levantar dúvidas sobre todas as experiências em que houverem figurado.


Certas fraudes, verificadas com diversos médiuns, podem ser atribuídas a sugestões exteriores, quer humanas, quer espíritas. Às vezes coincidem e se combinam as duas influências. Os cépticos mal-intencionados são secundados por auxiliares do Além. E então o poder sugestivo será tanto mais irresistível quanto mais impressionável for o médium e estiver mais profundamente imerso no transe e insuficientemente protegido. Vê-se a que perigos está este exposto; em certas sessões, mal constituídas, mal dirigidas, pode tornar-se vítima das forças exteriores combinadas. Não era esse o caso do médium M., de que acabamos de falar e que consigo trazia o filó e os outros objetos necessários às simulações. A premeditação era nele evidente; os artifícios eram calculados, previamente preparados.


Acontece que o médium, principalmente o médium escrevente, se sugestiona a si mesmo e, num impulso automático, escreve comunicações que abusivamente atribui a Espíritos desencarnados. Essa auto-sugestão é uma espécie de indução do “ego” normal ao “ego” subconsciente, que não é um ser distinto, como vimos precedentemente, mas uma modalidade mais extensa da personalidade. Nesse caso, com a mais perfeita boa-fé, o médium responde a suas próprias perguntas; exterioriza seus pensamentos ocultos, seus próprios raciocínios, os produtos de uma vida psíquica mais intensa e profunda. Allan Kardec, Davis, Hudson Tuttle, Aksakof, etc., ocuparam-se em suas obras dessa categoria de médiuns, que o Sr. Delanne denomina “automatistas”. Diz ele: cclxvii


“O automatismo da escrita, o esquecimento imediato das idéias enunciadas, que incute no escrevente a ilusão de estar sob a influência de uma vontade estranha, a personificação das idéias, as noções que jazem na memória latente, as impressões sensoriais inconscientes, todos esses fatos se compreendem e têm sua explicação em causas reconhecidas no estudo mais completo da inteligência humana, e de modo algum supõem a necessidade de intervenção dos Espíritos.”


A credulidade ilimitada e a ausência de todo princípio elementar de verificação, que predominam em certos meios, favorecem e alimentam esses abusos. Há, em diversos países, grupos espíritas ingênuos, em que pseudomédiuns automáticos escrevem extensas elucubrações sob a inspiração de Santo Antônio de Pádua, de S. José, da Virgem. Ou ainda neles se incorporam Sócrates e Maomet, que em linguagem vulgar vêm declarar mil absurdos a ouvintes extasiados, proibindo-lhes ler e instruir-se, a fim de os subtrair a toda influência esclarecida, a toda averiguação séria.


Em tais meios, já não têm conta as mistificações. Conheci um jardineiro corajoso que, a conselho de um Espírito, ia cavar, à meia-noite, num sítio deserto, um enorme buraco, à procura de um imaginário tesouro. Uma senhora de 55 anos, muito devota, esposa de um oficial reformado, levava a ingenuidade a ponto de preparar o enxoval de uma criança que ela devia dar à luz, e que seria a reencarnação do Cristo – diziam seus instrutores invisíveis. Uns vêem por toda parte a intervenção dos Espíritos, até mesmo nos fatos mais triviais. Outros consultam os invisíveis sobre as menores particularidades da vida, sobre seus negócios comerciais e suas operações na Bolsa.


Atribuem-se geralmente essas aberrações a Espíritos embusteiros. Sem dúvida, as mistificações de além-túmulo são freqüentes; explicam-se facilmente pelo fato de se perguntarem muitas vezes aos Espíritos coisas que eles não podem ou não querem dizer. Fazem do Espiritismo um meio de adivinhação e atraem, com isso, Espíritos levianos. Não raro, porém, cabe à sugestão mental uma grande parte em tais embustes.


É por isso que no domínio arriscado, e tantas vezes obscuro, da experimentação, cumpre examinar, analisar as coisas com sereno critério e extrema circunspeção, e só admitir o que se apresenta com um caráter de autenticidade perfeitamente definido. O nosso conhecimento das condições da vida futura, como o próprio Espiritismo, assenta sobre os fenômenos mediúnicos. Convém estudar seriamente estes e eliminar inflexivelmente tudo o que não traga o cunho de uma origem extra-humana. É preciso não substituir, a pretexto de progresso, a incredulidade sistemática por uma cega confiança, por uma credulidade ridícula, mas separar com cuidado o real do fictício. Disso está dependendo o futuro do Espiritismo.


Abordemos agora uma questão extremamente delicada: a da mediunidade profissional. Pode a mediunidade ser retribuída? ou deve ser exercida com desinteresse absoluto?


Notemos antes de tudo que a faculdade mediúnica é, por natureza, variável, inconstante, intermitente. Não estando os Espíritos às ordens nem à mercê dos caprichos de ninguém, nunca se está de antemão seguro do resultado das sessões. Pode o médium estar indisposto, mal preparado, e a assistência mal composta, no ponto de vista psíquico. Por outro lado, a proteção dos Espíritos adiantados não se conforma de modo algum com esse fato do Espiritismo a preço fixado. Por isso, o médium profissional, aquele que se habituou a viver do produto das sessões, está exposto a muitas decepções. Como fará ele dinheiro de uma coisa cuja produção jamais é certa? Como satisfará os curiosos, quando os Espíritos não atenderem ao seu chamado? Não será tentado, mais dia menos dia, quando forem numerosos os assistentes e sedutora a perspectiva do ganho, a provocar fraudulentamente os fenômenos? Aquele que uma vez resvalou por esse declive dificilmente conseguirá voltar atrás. É levado a empregar habitualmente a fraude e cai pouco a pouco no mais desbragado charlatanismo.


Os delegados americanos ao Congresso Espírita de 1900, em Paris, entre outros, a Sra. Addi-Balou, declararam que mediunidade profissional e os embustes a que dá ensejo têm sido há alguns anos motivo de retrogradação e descrédito para o Espiritismo nos Estados Unidos. A melhor garantia de sinceridade que pode um médium oferecer é o desinteresse. É também o meio mais seguro de obter o auxílio do Alto.


Para conservar seu prestígio moral, para produzir frutos de verdade, deve a mediunidade ser praticada com elevação e desprendimento, sem o que se torna uma fonte de abusos, instrumento de contradição e desordem, de que se utilizarão as entidades malfazejas. O médium venal é como o mau sacerdote, que introduz no santuário suas paixões egoísticas e seus interesses materiais. A comparação não é destituída de propriedade, porque também a mediunidade é uma espécie de sacerdócio. Todo ser humano distinguido com esse dom deve preparar-se para fazer sacrifício de seu repouso, de seus interesses e mesmo de sua felicidade terrestre; mas, assim procedendo, obterá a satisfação de sua própria consciência e se aproximará de seus guias espirituais.


Mercadejar com a mediunidade é dispor de uma coisa de que se não é dono; é abusar da boa-vontade dos mortos, pô-los ao serviço de uma obra indigna deles e desviar o Espiritismo do seu fim providencial. É preferível para o médium procurar noutra parte os meios de subsistência e só consagrar às sessões o tempo que lhe ficar disponível. Com isso ganhará em estima e consideração.


Cumpre, todavia, reconhecer que médiuns públicos e remunerados têm prestado reais serviços. As pessoas que só dispõem de modestos recursos pecuniários nem sempre podem atender aos convites dos sábios, ausentar-se, empreender viagens, como o exige o interesse da causa que servem.


A esse respeito, Stainton Moses, que foi um experimentador consciencioso e um excelente juiz em tal matéria, diz o seguinte:cclxviii


“Alguns dentre os médiuns públicos não vêem mais que os lucros a auferir e nem sempre recuam diante das fraudes para alcançar seus fins. Muitos há, entretanto, dos quais só se pode dizer bem e que são muitíssimo úteis. Nove vezes sobre dez, os que em tão grande número a eles se dirigem, incapazes de compreender e acompanhar uma experiência científica, unicamente exigem que em troca dos dez francos que pagam se lhes dê a prova da imortalidade. A multidão esgota rapidamente as faculdades do médium que, para não fazer fiasco, cede à tentação de recorrer à fraude. Apesar dessas detestáveis condições, fiquei muitas vezes admirado dos resultados obtidos e das magníficas provas fornecidas”


Que deduzir de tudo isso? É que haja uma justa medida, que o médium consciencioso, esclarecido acerca do valor de sua missão, pode facilmente observar. Se, em certos casos, é obrigado a aceitar uma indenização pelo tempo consumido e as excursões efetuadas, que o seja em limites de não comprometer sua dignidade neste mundo e sua situação no outro. O uso da mediunidade deve ser sempre um ato grave e religioso, isento de todo caráter mercantil, de tudo que a possa amesquinhar e deprimir.


 


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