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VI


Comunhão dos vivos e dos mortos


Certas pessoas consideram, sem razão, a mediunidade um fenômeno peculiar aos nossos tempos. A mediunidade, realmente, é de todos os séculos e de todos os países. Desde as idades mais remotas existiram relações entre a Humanidade terrestre e o mundo dos Espíritos.


Se interrogarmos os Vedas da Índia, os templos do Egito, os mistérios da Grécia, os recintos de pedra da Gália, os livros sagrados de todos os povos, por toda parte, nos documentos escritos, nos monumentos e tradições, encontraremos a afirmação de um fato que tem permanecido através das vicissitudes dos tempos; e esse fato é a crença universal nas manifestações das almas libertas de seus corpos terrestres. Veremos essas manifestações associadas de um modo íntimo e constante à evolução das raças humanas, a tal ponto que são inseparáveis da história da Humanidade.


É ao começo o culto dos antepassados, a homenagem prestada aos manes dos heróis e aos lares gênios tutelares da família. Erigem-lhes altares; dirigem-lhes invocações; depois o culto se estende a todas as almas amadas; ao esposo, ao filho, ao amigo falecido. Segundo Lucano, as sombras dos mortos se misturam com os vivos; deslizam pelas ruas e se introduzem nas habitações; aparecem, falam, na vigília como no sonho, e revelam o futuro. A telepatia, a premonição, a psicografia, as materializações de fantasmas são abundantes por toda parte e sempre.


Em Delfos, em Elêusis, o Espírito inspira a pítia convulsa e lhe dita seus oráculos. Nas praias da Jônia, sob a brancura dos mármores, ao murmúrio das vagas azuis, Pitágoras ensina aos iniciados os divinos mistérios e, pelos lábios de Teocléia adormecida, conversa com os gênios invisíveis.


Em Êndor, a sombra de Samuel responde às invocações de Saul. Um gênio previne a César, na véspera de sua morte, que não vá ao Senado, e mais tarde, quando Domiciano cai sob o ferro dos conjurados, da extremidade da Europa, Apolônio de Tiana assiste, em visão, a esse drama sangrento.


Nos círculos de pedra da Gália, sob a fronde sombria dos carvalhos ou nas linhas sagradas em torno das quais ruge espumante o oceano, e até nos templos da América Central, a comunhão das almas se efetua. Por toda parte a vida interroga a morte e esta responde.


Sem dúvida, os abusos, as superstições pueris, os sacrifícios supérfluos se misturam com o culto dos invisíveis; mas nesse íntimo comércio haurem os homens novas forças. Sabem que podem contar com a presença e o amparo dos que amavam e esta certeza os torna mais firmes em suas provações. Aprendem a não mais temer a morte.


Os laços de família se fortalecem com isso, intimamente. Na China, como na Índia, como no território céltico, havia reuniões em dia fixo, na “câmara dos antepassados”. São numerosos então os médiuns; ardente é sua fé, poderosas e variadas são as suas faculdades e os fenômenos obtidos ultrapassam em intensidade tudo o que observamos em nossos dias.


Em Roma eram instituídas cerimônias públicas em honra dos mortos. A multidão se aglomerava à entrada das criptas. As sibilas praticavam as encantações, e dos lugares obscuros, dizem os escritores da época,xxxvi tal como atualmente dos gabinetes de materialização, via-se emergirem sombras e se apresentarem em plena luz. Às vezes mesmo os camaradas, os amigos de outrora retomavam por momentos seu lugar à mesa e no lar comuns.


Nos mistérios órficos, dizem Porfiro e Próluz,xxxvii as almas dos defuntos apareciam sob a forma humana e conversavam com os assistentes. Ensinavam-lhes a sucessão das existências e a ascensão final do Espírito à luz divina, mediante vidas puras e laboriosas. Essas práticas comunicavam aos iniciados uma fé profunda no futuro, incutiam-lhes uma força moral, uma serenidade incomparáveis; transportavam seus pensamentos às regiões sublimes em que tanto se comprouve o gênio grego.


Eis que chega, porém, a época de decadência e aí temos a depressão dos estudos, as intrigas sacerdotais, as rivalidades dos potentados e, finalmente, as grandes invasões, a ruína e a morte dos deuses.


Um vento de barbaria sopra sobre os mistérios sagrados. Os Espíritos, os gênios tutelares desertaram. A divina Psique, banida dos altares, remontou às celestes regiões. Uma a uma, se vão extinguindo as luzes do templo. A grande noite, uma noite de dez séculos, se estende sobre o pensamento humano.


Surge, entretanto, o Cristianismo. Também ele se baseia nas manifestações de além-túmulo. O Cristo atravessa a existência, rodeado de uma multidão invisível, cuja presença se revela em todos os seus atos. Ele mesmo aparecerá, depois da morte, aos discípulos consternados, e sua presença lhes fortalecerá o ânimo. Durante dois séculos, comunicaram abertamente os primeiros cristãos com os Espíritos, deles recebendo instruções.xxxviii Cedo, porém, a Igreja, inquieta com as ingerências ocultas, muitas vezes em oposição com seus intuitos, procurará impedi-las.


Interditará aos fiéis todas as relações com os Espíritos, reservando-se direito exclusivo de provocar e interpretar os fenômenos.


A religião do Cristo é, todavia, portadora de uma noção inteiramente nova: a utilidade da dor, benéfica e purificadora divindade, cuja ação não foi pelo mundo pagão compreendida em toda a sua amplitude. Graças a essa noção, a alma lutará mais vantajosamente contra a matéria e suplantará a sensualidade. É de toda a vida essa luta, cujo objetivo é o triunfo alcançado pelo espírito sobre o corpo e a posse da virtude. Alguns clérigos ou leigos chegarão a adquirir o poder da fé que domina os sentidos e transporta a alma para além das regiões terrestres, às esferas em que se dilata e exalta o pensamento.


É esse ainda um meio de penetração no invisível. A alma, desprendida das coisas humanas, na contemplação e no êxtase, comunica-se com as potências superiores e lhes atribui as formas angélicas ou divinas, familiares à sua própria crença. Nesses fenômenos – simples lei da Natureza – verá milagres a Igreja e deles se apropriará. As outras manifestações dos mortos serão consideradas diabólicas e conduzirão os videntes ao suplício. Sob a cinza das fogueiras se há de procurar extinguir a idéia renascente.


Mas “o espírito sopra onde quer”. Fora da Igreja, entre os heréticos, prosseguem as manifestações. Com Joana d'Arc vêm revestir um caráter de grandeza tal que, diante delas, a crítica mais virulenta hesita, depõe as armas e emudece.


*


Mudaram-se os tempos. No passado, a comunhão das almas foi, sobretudo, o privilégio dos santuários, a preocupação de alguns limitados grupos de iniciados. Fora desses esclarecidos círculos – asilos da sabedoria antiga – as manifestações de além-túmulo eram muitas vezes consideradas sobrenaturais e associadas a práticas supersticiosas que lhes deturpavam o sentido. O homem, ignorante das leis da Natureza e da vida, não podia apreender o ensino que sob os fenômenos se ocultava.


Para preparar o atual movimento das idéias e a compreensão desses fatos, foram necessários o imenso trabalho dos séculos e as descobertas da Ciência. Esta realizou a sua tarefa. Posto que bem incompleta, ainda, pelo menos explorou o domínio material, desde as camadas profundas do solo aos abismos do espaço. Descreveu a história da Terra, sua gênese e evolução; enumerou os mundos que gravitavam no céu e lhes calculou o peso, as dimensões, a órbita. Ficou o homem conhecendo o mesquinho lugar que ocupa no Universo: se aprendeu a conhecer a grandeza de sua inteligência, pôde, em contraposição, medir a debilidade de seus sentidos.


A vida se patenteou por toda parte, no domínio dos seres microscópicos como na superfície dos globos que rolam na imensidade. O estudo do mundo invisível vem completar essa ascensão da Ciência; rasga ao pensamento novos horizontes, perspectivas infinitas. De ora em diante o conhecimento da alma e de seus destinos não será mais o privilégio dos iniciados e dos doutos. A Humanidade toda é chamada a participar dos benefícios espirituais que constituem seu patrimônio. Assim como o Sol se levanta visível para todos, a luz do Além deve irradiar sobre todas as inteligências, reanimando todos os corações.


 


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